domingo, 11 de março de 2018

Uma noite no Campeche



Capela São Sebastião, no Campeche. A missa terminou, mas boa parte das gentes não foi embora. E, pelos caminhos, outras pessoas chegavam. Vinham para um encontro importante demais: um encontro com a história. Dentro do salão foram se agrupando. Famílias inteiras, cheias de expectativa e orgulho. Amigos se encontravam e trocavam abraços. Crianças corriam e alguns moradores, bem velhinhos, vinham amparados por filhos e netos. Aquela seria uma noite de lembranças e de belezas. A comunidade viva do Campeche vinha reviver suas velhas histórias.

O responsável por tudo isso é Hugo Adriano Daniel, nascido e criado nas veredas do Campeche, que, agora, professor de história, decidiu que era chegada a hora de registrar para a eternidade a vida pulsante que deu origem ao bairro. Mas não aquela história fria, de documentos e datas. Sua opção foi pela memória das gentes. Na conversa com os mais velhos do bairro, ele foi desenterrando a história viva, essa que é feita do sangue e do suor de homens e mulheres que, na força do braço, constroem o mundo. E a teia de vida tecida por Hugo se materializou num livro, que foi apresentado a todos.

Por uma hora Hugo Daniel mostrou velhas fotos e foi tecendo a colcha de lembranças. Lugares, pessoas, causos. E da boca foram brotando nomes, datas, histórias engraçadas, histórias tristes. Muitos dos personagens ali estavam, cerimoniosos, ouvindo suas próprias histórias com reverência. E Hugo foi apontando e agradecendo um a um, uma a uma. E a comunidade respondia com palmas, risos, gritos e lágrimas. Seu Erasmo, velho comerciante na loja de quem quase todas as famílias do lugar se abasteciam, o primeiro ônibus, o padeiro que deixava o pão nas sacolinhas que ficavam penduradas nas portas das casas, a dona Nicota, os cantores da festa do Divino.

O tempo passou num átimo, e quase ninguém se deu conta, mergulhados que estavam no Campeche de antes. As origens do bairro, a raiz de quase todos os que ali estavam.

Poucas vezes na vida pude viver algo assim. Uma comunidade inteira abraçada em si mesma, se reconhecendo e reconhecendo sua própria história. Ali estava o gurizinho que sujava os pés em bosta de vaca nos potreiros do bairro, agora recompondo os caminhos que foram apagados pelo asfalto e pela expansão imobiliária. “Não podemos deixar que nos tirem a memória”, insistiu. E suas conversas com os velhos agora imortalizando a história.

O livro “Campeche – um lugar no sul da ilha” é uma história de amor. E nas suas páginas saltam personagens inesquecíveis, histórias para guardar no fundo da memória e para serem contadas aos filhos e netos. Porque uma comunidade só pode avançar se lembra de si mesma, de suas raízes. O Hugo desenterra cada uma delas, deixa à flor da terra. E, assim, garante que a lembrança seja o adubo capaz de manter forte o fruto.

O Campeche é um bairro de luta, um bairro jardim, um lugar onde a vida simples, do jeito açoriano, ainda resiste. E quando a gente vê o que viu ontem, fica cada vez mais claro de que a história e a cultura local seguirão preservadas e protegidas, porque vivem na memória.

O lançamento do livro do Hugo, editado pela Insular, essa editora da ilha, do Nelson Rolim de Moura, o Nelsinho, que insiste em acreditar nos escritores locais, foi um desses momentos estelares, inesquecíveis. Bem do jeito campechiano, com refrigerante e bolo, com riso de criança, com o passo lento dos velhos, com a alegria daqueles que se conhecem e se amam. Uma noite para ficar guardada nas retinas. Um momento que fortalece e une todos os que seguem vivendo nesse bairro e cuidando dele.

Foi bonito demais! Obrigada Hugo.

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