quinta-feira, 19 de março de 2020

O pai e o corona

Comendo amendoim e fazendo graça

O ambiente na casa é como um acampamento de guerra. Desde há pouco mais de um mês, quando o pai sofreu duas quedas seguidas no quarto onde ainda dormia sozinho, o cenário mudou. Entendi que já não era mais possível dar a ele a autonomia do sono. Era preciso vigiar de perto. Então, como o quarto é pequeno, tive de improvisar uma cama de campanha para ficar do seu lado. Foram dias confusos. Ele sem dormir, rodando pelo quarto a noite toda, agitado, violento. Quando me via ali, do seu lado, ficava brabo. Um caos. 

Pouco depois rearranjei o quarto, tirei a cama de casal, botei duas de solteiro. Agora ele dorme numa e eu na outra. Mas, aí, como estava acostumado a se espalhar, ficava a noite toda quase caindo da cama. Então, mesmo quando ele dormia eu tinha de ficar vigiando para ele não cair. A solução foi juntar as camas e deixar que ele ocupe a minha quando se espalha. Ainda assim, se ele acorda e me vê do lado, é um deus nos acuda.

Tive então que desenvolver a técnica de me acordar quando ele se mexe. É só ele levantar a cabeça e eu já salto da cama para que ele não me veja ao seu lado. Por isso já me deito de roupa e tudo e sem sequer tirar o chinelo. Então, ele se levanta e sai em busca do banheiro. Mas, como acorda confuso, não sabe bem em que direção está, então vai pra qualquer lado e já tira o bilau pra fora, jorrando o líquido, bem à vontade. De vez em quando consigo guiá-lo até o vaso, mas não é sempre. Aí, desenvolvi outra técnica. Levo um baldinho e quando ele mira em outro lugar que não o vaso eu surjo, feito um  fantasma, com  o balde, bem onde está indo a urina. No geral consigo aparar tudo, mas sempre cai alguma coisa no chão. Então, é hora de limpar, para que não fique com mau odor. 

Esse acordar na madrugada é sempre uma incógnita. Além de toda a aventura do xixi tem a volta para a cama. Por vezes ele não quer voltar e aí começa todo o bailado da madrugada. Ele fica mexendo na cama, revira os lençóis, tira a fronha do travesseiro, faz uma maçaroca e fica rodeando a cama por horas. Eu tenho de ficar bem quietinha, pois se falo algo a violência explode. Agarro-me ao celular e fico vendo filme na Netflix. Ô, glória. Mas, se ele resolve sair porta afora aí o bicho pega. Ele abre a porta num átimo e se lança pelo quintal. Deus me livre se tento impedir. O que faço é seguir atrás dele, como uma sombra. Ele caminha, vai até o portão, mexe aqui e ali, roda, roda, até que volta.  Nessa hora os cachorros despertam e entram pelo quarto adentro. É um furdunço danado, pois o pai fica tentando enxotá-los e eles não saem de jeito nenhum. Tenho que ir até a geladeira e pegar mortadela, para acenar para os bichos, aí eles vêm correndo e saem do quarto. É pior do que novela mexicana. 

Agora, com essa do isolamento, estou em casa desde sábado, sem sair. Valham-me todos os deuses do Tahuantinsuyo. Temos uma rotina que é a de sair todos os dias, quando ele começa com o mantra de “eu quero ir embora”. Nessa hora ele fica muito nervoso e precisa sair a todo custo sob pena de quebrar o portão. Aí eu abro e vou com ele até o mercado, ou dou uma volta na rua. Ele se acalma e a gente volta. Só que agora não posso fazer isso. Calculem o tamanho do problema. Vivo em estado permanente de estresse, que se amplia ainda mais por conta da falta de sono. Fora isso tem o medo do vírus, pois se ele chegar pode ser fatal para o meu velhinho. 

A vida na casa gira em torno dele. Há que manter a casa limpa e garantir as refeições em horários certinhos. Nos intervalos – poucos  - quando ele sossega, posso ler um livro, escrever um texto, mas a concentração é bem difícil. Ainda teremos mais dias pela frente na quarentena. Cuidar do gajo em dias normais já não é bolinho, agora então, complicou. 

E assim vamos vivendo, enredados na atmosfera da demência e do amor. Sobreviveremos? 

segunda-feira, 16 de março de 2020

Sobre o vírus e os trabalhadores

Como sobreviver fora do mundinho burguês


Quem está acostumado a ver filmes de tragédias biológicas de roliúde sabe qual é a fórmula da desgraça: governos corruptos, um maluco que fez a merda, milhões de pessoas morrendo, um pequeno grupo de heróis tentando salvar o mundo. Ao final, os heróis revertem a coisa, salvam seus ente queridos, salvam os governantes, mas os milhões que pereceram parecem não ter qualquer importância e a vida segue normal com os que sobraram. 

Agora, estamos vivendo como num desses filmes com o surto no novo vírus. E nada escapa do roteiro. É exatamente como na arte. Há uma parcela da população que simplesmente não importa pra ninguém. Ouvindo as orientações para a população logo se percebe que os médicos e governantes estão falando para um grupo bem específico de pessoas, excluindo A maioria. 

Simón Rodríguez, o educador venezuelano já anunciava lá no começo do 1800 que aos latino-americanos era preciso inventar ou morrer. Pois é disso que se trata agora. O que essa parcela gigantesca de gente, que não tem qualquer possibilidade de proteção contra o vírus, precisa fazer para sobreviver? Há que inventar. 

Eu gostaria de ver algum médico ou cientista dizendo a essas pessoas como reduzir os danos para não morrer na epidemia. 

Há milhões de pessoas que seguirão tendo de ir ao trabalho nos ônibus e trens lotados? O que fazer?

Há milhares que precisarão trabalhar em espaços lotados de outros trabalhadores, sem a possibilidade de ficarem dois metros de distância. Que fazer?

Milhares de pessoas ficarão infectadas em casas pequenas, apartamentos ou barracos  sem condições de manter a regras de isolamento. Que fazer?

Há centenas de moradores de rua, sem qualquer possibilidade de prevenção. Que fazer?

E se a pessoa cuida de um velho ou de uma criança e pega o vírus, não tendo com quem deixar a pessoa cuidada, que fazer?

Ou seja, é necessário que os médicos, governantes e cientistas encontrem respostas para essa gente que não se enquadra na lógica burguesa/classe média de lavar as mãozinhas, passar álcool gel e fazer isolamento social. 

Por que não o fazem? Porque não importam. Esse é o ponto. Sendo assim, é mais do que necessário que nós mesmos comecemos a testar formas de proteção nessas condições adversas das quais não sairemos. E aí, talvez as redes nos ajudem, com um ajudando o outro nas suas invenções. 

Nos espaços da produção capitalista alguns trabalhadores já estão dando o tom. Fábricas e empresas estão parando por decisão dos trabalhadores, que organizam paralisações e greves. Mas, e os serviços essenciais, que precisam ser feitos: o tratamento de água, a manutenção da energia, os trabalhadores da saúde e outros. Esses precisam se deslocar e estão à descoberto. Para eles temos de ter estratégias. 

Não creio que elas venham do governo ou dos cientistas que se limitam a regras genéricas. Vejam que no Brasil o presidente da nação foi o primeiro a quebrar as regras da proteção, incentivando atos públicos e compartilhando secreções com centenas de pessoas na porta do palácio, numa irresponsabilidade que pode ser considerada crime de lesa-pátria. 

Por isso que a proteção da massa abandonada tem de vir dela mesma. Que a gente possa compartilhar e se proteger. Porque não há ninguém por nós a não ser nós mesmos. Isso em tempos de epidemia como em qualquer tempo. Esses momentos dramáticos servem para nos fazer lembrar. A mudança do mundo está na nossa capacidade de inventar e caminhar juntos. Só a solidariedade entre os esquecidos pode nos salvar.