quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Para o ano...


E eis que vem um ano novo, embora nada de novo venha... Nos tempos antigos, os povos celebravam a cada estação. Havia o tempo de plantar, de colher, de descansar e de amar. Em cada equinócio e solstício se dançava e festejava, cantando com os deuses, sempre muitos...


Então vieram outras crenças, outros modos de vida, veio a dominação da igreja, um deus único, as festas piedosas... As gentes esqueceram da alegria, a simples e doida alegria de se estar vivo.


Neste primeiro de ano eu desejo que todos possam recuperar essa antiga tradição, de se celebrar em cada momento da vida, de se cantar aos deuses, aos tantos deuses que por aí circulam no coração das gentes. Essas nossas divindades inventadas pelo nosso medo e pela angústia de se saber mortal...


No calendário romano é o deus Jano que abre a fieira de deuses, o deus com duas faces, o guardião dos portões. O deus que é sombra e luz, verdade e mentira, amor e ódio, início e fim, um deus dialético, mesclado de tudo o que é humano.


Aqui na nossa Abya Yala celebra-se com Inti, o deus sol, e outros tantos das mais variadas culturas. E aqui, como nos tempos antigos, ainda se baila nos equinócios e solstícios em grandes festas populares. É só uma celebração, uma orgiástica celebração desta vida que temos, para a qual somos chamados a plantar, colher, descansar e amar.


Em 2011 nada vai mudar se não nos pusermos a caminho, porque a estrada se faz assim, ao andar... Então, eu os convido ao borbulhar da champanhe, ao doce da cana, ao perfume do vinho ou ao simples gosto da água pura. Eu os conclamo para o ritualístico momento do primeiro momento dos restos de nossas vidas, neste primeiro de janeiro e em cada amanhecer.


Que venham todas as dádivas e todos os obstáculos... Nós os enfrentaremos com riso, prazer e luta!

Uma rua perdida em Florianópolis


Gosto da minha rua de areia, na qual afundo meus pés. Gosto do cheiro doce de dama da noite que se esparrama quando o dia vai embora. Encantam-me os risos de criança que se fazem ouvir a toda hora. Há sempre algum menino a brincar, jogando bola, empurrando carrinho, saltando de bicicleta. Há sempre uma guriazinha a saltitar, pulando corda, gargalhando, jogando taco. Estão sempre pela rua, em liberdade, com os pés no chão e cabelos ao vento.

Pela rua também circulam, soltos e livres, os cachorros. Vez ou outra algum deles encrespa e ataca, com os dentes arreganhados, mas uma voz de comando os aquieta. São inofensivos. No geral andam por ali sem maiores alardes. Alguns nos seguem até o mercado, como se fossem velhos companheiros. Também passeiam pela areia as galinhas, crias do Luis, e entram pelas casas sem causar qualquer turbação. Todo mundo as respeita e algumas até já têm nome. Duvido que o Luis possa matá-las um dia para comer.

Pelos muros igualmente voejam as grandes corujas, sempre alertas para o caso de algum gato pular e transformá-las em almoço ou jantar. Nos fios de luz posicionam-se os passarinhos, de vários tipos, com seus cantos inebriantes. E pela diversidade de árvores outros tantos oferecem seus trinados nestes dias quentes de verão.

Minha rua tem essa aura de rua de cidade pequena, na qual os vizinhos se conhecem, se cumprimentam com sorrisos, frases de cortesia e pedem arroz ou linha branca. Tem também muitos buracos por onde as bicicletas saltitam, malucas. E, quando chove, formam-se pequenos lagos em alguns pontos, nos quais alguns carros velhos acabam ficando. Quando a noite vem pode-se ficar admirandos os vagalumes e seu bailado, enquanto a gurizada se junta na frente de alguma casa para conversar e dar altas risadas.

A minha rua é assim, ainda não contaminada pelo ideia do progresso. Contam alguns que já vem vindo o calçamento e quando penso nisso, entristeço demais. Com o calçamento lá se vão os jogos de bola e os pés afundados na areia. Tomara que demore... tomara que demore....


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Música e A Noite

O ouvido, o órgão do medo, pôde desenvolver-se tanto como se desenvolveu apenas na noite e na penumbra de cavernas e bosques sombrios, consoante o modo de viver da época do medo, isto é, a mais longa época da humanidade: no claro, o ouvido não é tão necessário. Daí o caráter da música, uma arte da noite e da penumbra. (Nietzsche)

A propósito....

Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário para o homem e de que do ilógico nasce muito de bom. Ele está tão firmemente implantado nas paixões, na linguagem, na religião e em geral em tudo aquilo que empresta valor à vida, que não se pode extraí-lo sem com isso danificar irremediavelmente essas belas coisas. São somente os homens demasiado ingênuos que podem acreditar que a natureza do homem possa ser transformada em uma natureza puramente lógica; mas se houver graus de aproximação desse alvo, o que não haveria de se perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa outra vez, de tempo em tempo, da natureza, isto é, de sua postura fundamental ilógica diante de todas as coisas.
(Nietzsche)