quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Agosto, mês da Pachamama


O mês de agosto é um tempo sagrado na América andina. É o mês no qual se rendem homenagens à Pachamama, a mãe terra. Por todos os rincões deste espaço geográfico, lugar dos collas, aymaras, quéchuas e tantas outras etnias, os amautas (sacerdotes) preparam oferendas, as wajt´as, que vão desde doces e comidas típicas até fetos de llamas e ovelhas. Com as oblações vão os pedidos de saúde, dinheiro e trabalho. Apesar de mais de 500 anos de colonização e domínio da religião católica, não há quem não ofereça seu presente a Pachamama neste agosto que já começou.

Para os amautas ayamras este é considerado o período de “lakan paxi”, o mês da boca, porque é nesse período que a grande mãe abre sua boca para receber as oferendas dos seres humanos que sobre ela andam, vivem e amam. Muitas são as cerimônias celebradas por todo o território. Algumas são bem simples, feitas em casa, pelas famílias. Outras, realizadas pelos yatiris relembram os ritos ancestrais e invocam os antigos deuses do mundo andino, os achachilas, que moram nos cerros nevados do Illimani, Huayna Potosí, Mururata, Sajama e Chijcha. Nestes dias de agosto também é hora de invocar as forças que vivem nos rios e os espíritos dos animais.

Para quem crê nas formas anímicas e nos deuses antigos, nada melhor do que preparar uma boa cerimônia nestes dias de frio. O mês de agosto inteiro se presta a estas homenagens.

Em tempos de grande destruição da natureza, provocada pelo modelo de desenvolvimento do modo capitalista de produção, talvez seja hora de uma boa reflexão e de um encontro com o sagrado. Das montanhas nevadas dos Andes ecoam os cantos e sobe a fumaça dos incensos. Os deuses antigos esperam dos homens e das mulheres o respeito e a harmonia. E a Pachamama quer, ora quieta, ora em ebulição, que os seres humanos compreendam que são apenas uma espécie a mais pisando o lugar.

Neste dia primeiro de agosto, seguindo a tradição, fiz bolinhos de chuva e ofereci a mãe terra. Pedi proteção, saúde, alegria, para mim e para todos no mundo. Pedi que ela abrisse os olhos daqueles que a golpeiam para que possam ver o grande presente que é estar vivo, e pisando neste chão. Pedi piedade para os que não compreendem e pedi forças para enfrentar mais um ano, até que chegue o novo agosto.

Que viva a Pachamama, toda a honra a grande mãe!!!


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O relógio-ponto eletrônico e a universidade


O trabalho, nos tempos antigos, sempre foi gerido pelo tempo da natureza. O sol era quem determinava a hora de fazer esta ou aquela tarefa. Todo mundo sabia de seus afazeres e não havia motivo algum para que alguém controlasse o tempo. De qualquer forma sabe-se que o relógio, como um mecanismo de marcação do tempo, existe desde há cinco mil anos, e naqueles tempos eram chamados relógio de sol. No ano de 250 depois de Cristo surgem as ampulhetas, um jeito de marcar o tempo que podia ficar sobre a mesa de trabalho dos grandes sábios, que se perdiam em divagações e já não acompanhavam o tempo da natureza. Desde então a engenharia do relógio só evoluiu, a ponto de em 1500 já existirem relógios portáteis. Já o relógio de pulso foi inventado por um velho conhecido nosso, Santos Dumont. Hoje, a indústria do relógio chega a produzir mais de 250 milhões de unidades.

Mas o famoso relógio-ponto, que controla a hora e a vida dos trabalhadores só surgiu na Inglaterra, no auge da revolução industrial, no início do sistema capitalista. Os patrões entendiam que o livro-ponto era passível de fraudes e a idéia de um equipamento que controlasse entrada e saída de forma mecânica se espalhou. Era a marca de uma racionalidade a serviço do capital e da exploração humana, uma vez que o relógio servia apenas para escravizar o trabalhador e não para garantir-lhe direitos.

O tempo passou e as relações de trabalho foram mudando. A luta dos trabalhadores conseguiu avançar muito na discussão dos processos de controle e, hoje, em pleno século XXI, apesar de o nível de exploração continuar tão alto como no século XIX, já se pode vislumbrar algumas mudanças significativas na relação trabalho x tempo. As negociações entre patrões e empregados conseguiram, em muitos casos, estabelecer acordos importantes nessa área. O tipo de trabalho específico de determinadas categorias também permitem que o tempo possa ser trabalhado com flexibilidade, sem prejuízo para a produção.

Agora, o governo decide lançar uma portaria que nada mais é do que uma grande “mão-na-roda” para os empresários que produzem equipamentos eletrônicos, particularmente relógios. Mais uma vez interferindo nas relações do capital x trabalho pró-capital, o governo torna obrigatório o uso do relógio-ponto eletrônico em todas as empresas do país. A alegação é até singela. Serviria para melhor controlar a exploração a que são submetidos os trabalhadores que cumprem jornadas de sobretrabalho. E, em tese, parece ser para proteger o trabalhador. Mas, com uma análise mais apurada, já se pode perceber que essa medida é um tremendo retrocesso nas relações de produção, um retorno ao início da revolução industrial.

Marx já mostrou desde há muito tempo que no sistema capitalista não há meio termo nas relações de trabalho. Elas sempre são de exploração do trabalhador. Não importa quão bonzinho possa ser o empresário, todo o seu objetivo é voltado para o lucro, e este lucro só pode ser garantido com a mais-valia do trabalhador, ou seja, com a sua exploração. Não há formas de mudar isso, a não ser mudando o sistema todo. O que os trabalhadores conseguem, no mais das vezes, dentro do capitalismo, é afrouxar um pouco a corda, e esse tem sido o papel dos sindicatos desde o início da sua existência. Lutar contra o capital para dar um pouco de conforto ao trabalhador, permitindo que ele não seja “tão” explorado. Mas a exploração segue, ora maior, ora menor, pois é da natureza do capital.

O processo de luta pela redução das horas trabalhadas faz parte deste contexto. Com os avanços tecnológicos, os trabalhadores conseguem produzir o mesmo, senão mais, em menos horas trabalhadas, daí a grande batalha que tem sido travada pelas 30 horas semanais. Seis horas de trabalho por dia garantem, com folga, uma boa produção e ainda o lucro do patrão. Ou seja, a exploração continua, mas o trabalhador poderia dispor de um tempo livre através do qual cuidaria da família, curtiria um lazer, estudaria etc...

Mas, apesar dessa luta ter se espalhado pelo planeta, ao que parece, governos e patrões sequer tomam conhecimento da mesma. Então, voltar a coisas tão antigas como o controle dos trabalhadores via relógio, agora eletrônico, só mostra que muito pouca coisa avançou no mundo do trabalho.

O relógio-ponto no serviço público

As idéias “bem-intencionadas” do governo para proteger os trabalhadores, não bastassem estar gerando crise no mundo do trabalho privado, também já aparecem na esfera pública. A Universidade Federal de Santa Catarina, querendo ser mais real que o rei, decidiu “sair na frente” e impor o relógio-ponto eletrônico aos seus trabalhadores. Tal e qual o governo, os dirigentes universitários dizem que é para o bem dos trabalhadores, para trazer isonomia num ambiente onde muitos trabalhadores não cumprem a jornadas de trabalho. Os argumentos, pífios, só conseguem mostra uma profunda incompetência administrativa.
Na verdade, ao se aprofundar nas diretivas da medida da UFSC, percebe-se que a proposta de controle eletrônico muda tudo, para que tudo continue como está. Diz o reitor Álvaro Prata que os trabalhadores com cargo de chefia não estarão submetidos ao ponto. E não é de estranhar, já que nesta gestão foram criados dezenas de cargos, todos estratégicos, para consolidar o velho esquema de poder que vige na UFSC desde há 50 anos. A lógica é sempre a mesma. Coloca-se um pouco de poder na mão de um pequeno exército e estes “empoderados” garantem a continuidade das políticas conservadoras da universidade. Para se ter uma idéia, nestes 50 anos de existência, a UFSC teve um único sopro de democracia, no curto período do mandato de Diomário Queiróz, e ainda assim, o conservadorismo não permitiu grandes arroubos.

Agora, na gestão de Álvaro Prata, chega-se a essa situação: implantação de relógio-ponto, retrocesso medieval, para que o grupo político que se perpetua no poder siga dominando através do segundo escalão que ficará livre do elemento escravizante. Aos demais trabalhadores, sobrará a lógica privada de produção, talvez um ensaio para a privatização que segue vindo a galope nas universidades brasileiras. O reitor (que vem da área da produção), quem sabe, esteja querendo entrar para a história como aquele que abriu caminho para o processo de produção privada dentro da UFSC.

Os trabalhadores da universidade tem um fazer muito específico, completamente diferente de uma fábrica. Eles não estão submetidos a processos de produção que exijam contagem de tempo limitante. Estes trabalhadores mexem com o trabalho imaterial. Fazem pesquisa, atuam na extensão, auxiliam nas atividades do ensino. É toda uma dinâmica bastante diferente de uma produção mecânica e, mesmo essa, como já vimos, com as novas tecnologias, tampouco precisariam deste controle proposto pelo estado.

Ninguém nega que é preciso controlar a assiduidade dos trabalhadores, afinal, o serviço público é de fundamental importância para a comunidade e nada pode justificar que alguma atividade não seja oferecida à população. Mas os trabalhadores tem propostas para isso e não é de hoje. Estas propostas estão continuamente na mesa dos dirigentes, e são eficazes e exeqüíveis. No caso da UFSC, desde 2003 que os trabalhadores apresentam a proposta de seis horas de jornada, com garantia de atendimento de 12 horas ininterruptas. Chegando a alguns casos ao total de 18h, considerando os cursos que funcionam também à noite. Eles propõem que os nomes dos trabalhadores de turno sejam afixados nos locais de trabalho para que o público possa cobrar em caso de ausência. Além disso, existem os trabalhadores que exercem atividades de campo, cujas horas também devem ser de conhecimento público, portanto, tudo muito definido, sem possibilidades de falha, salvos as eventuais, humanas.

Assim, segue a velha luta dos trabalhadores contra aqueles que insistem na exploração. No setor privado é a mesma luta capital x trabalho, mas, no serviço público, o que seria o motor de administradores de plantão? Essa é uma pergunta que exige resposta! No caso da UFSC não é difícil de chegar a uma conclusão. A medida do relógio-ponto é excludente, discriminatória e reforça os mecanismos de controle dos trabalhadores, e não é do horário, é do controle mesmo, político. É só uma forma “mais moderna” de manter sob o cabresto os técnico-adminsitrativos, já que os professores estão fora deste mecanismo do relógio-ponto. Ou seja, na UFSC, é o mais do mesmo. As mesmas velhas práticas truculentas e predatórias, só que revestidas de um caráter de “modernidade”.

Outra pergunta que fica no ar é sobre a reação dos trabalhadores? O que farão? Como está se posicionando a CUT, as demais centrais, os sindicatos? Na UFSC os trabalhadores estão se mobilizando por conta própria, em ações nos centros. Começou agora e pode se transformar numa onda gigante. Há que esperar. A apatia ainda é um grande entrave, mas, quem sabe, quando setembro chegar...

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Iraque: um massacre cotidiano


Segundo o jornal El País, o número de civis mortos no Iraque duplicou no mês passado. Foram 396 contra os 204 do mês de junho e os 275 de maio. Mas, fora os civis, ainda tem as mortes dos chamados insurgentes, que ninguém sabe se são insurgentes mesmo, ou assim chamados para que as estatísticas de mortes de civis não engordem. Foram mais de mil em junho. Além disso, o saldo de feridos foi de 1.043. Diz ainda o jornal que mais de 100 mil pessoas morreram violentamente desde a invasão em março de 2001. E assim vai a vida no Iraque. Todos os dias são dezenas de mortos. E o mundo quieto.

Segue a luta pelo Bar do Chico


Novo ato político acontece no domingo, dia 8 de agosto

Era a metade dos anos 80, a democracia brasileira andava com pernas bambas, a vida saía da escuridão, mas as coisas ainda estavam muito confusas. A luta popular conseguia se fazer às claras, mas persistia o medo, assim como o preconceito. Para quem atuava no movimento de esquerda em Florianópolis havia um lugar onde era possível se encontrar e sentir-se em casa. Era um pequeno barraco de madeira na praia do Campeche, que havia deixado de ser uma cabana de pesca para virar um bar. Ali, nas tardes de domingo, o povo se reunia para conversar, discutir política ou apenas tomar sol. Nas noites de inverno, ao redor da fogueira, o povo também se juntava para dançar e celebrar a vida.

Para quem era da comunidade, o lugar igualmente passou a ser uma espécie de porto seguro. Não havia nada na praia e a cabana de madeira passou a ser uma referência. Como o seu Chico, que cuidava do lugar, era pessoa conhecida no Campeche, de família tradicional, o bar foi virando espaço comunitário também. Ali eram celebrados os aniversários, as festas do bairro, por ali passava a Dona Nicota, a bandeira do divino, a folia de reis, e ali terminava a alegria do carnaval. Localizado ao lado da capela, no coração histórico do Campeche, o Bar do Chico rapidamente se entranhou no cotidiano. Não era só um bar, era lugar do povo campechiano e de boa parte dos militantes populares da cidade. Território liberado para a festa e para a política. Não foram poucas as lutas e ações populares que nasceram das conversas ali naquele trecho de areia.

No início dos anos 90 um filho do Campeche se elegeu vereador. Lázaro Daniel. Não por acaso, filho do seu Chico, o dono do bar tombado agora em 2010. E este foi um vereador que muito incomodou ao poder. Na época, a cidade fervilhava na luta pela moradia e eram constantes as ocupações de área urbana e as mobilizações populares. Lázaro estava metido nesta briga até o pescoço. Sua voz na Câmara de Vereadores estava a serviço do povo em luta e ninguém conseguiu dobrá-lo. Foi aí que começou a perseguição ao Bar do Chico. Aquele era um lugar que subvertia a ordem, que acolhia os “malditos”, que servia de espaço para a organização comunitária. E, não bastasse isso, era do pai do Lázaro. O poder encontrava um ponto por onde atacar o vereador.

Desde aí, a batalha foi grande. Longos anos de discussão na justiça e neste meio tempo, a comunidade foi consolidando o espaço como o seu lugar. O Bar do Chico virou patrimônio cultural, assim como o espectro de Saint Exupéry ou a capela São Sebastião. Já não era só um bar, era parte da alma campechiana. Tanto que a comunidade entrou com um processo de tombamento para o bar. Daí soar muito estranho o argumento do juiz Hélio do Valle Pereira ao dizer que o povo do Campeche não tinha se importado com o processo. Ora, pedir o tombamento como patrimônio histórico imaterial não é se importar?

Nos últimos anos o Campeche tem sido a ponta de lança na luta por um Plano Diretor que não seja predador, que respeite o ambiente, que se faça em harmonia com os recursos naturais. E o Campeche foi além, organizou seu povo e construiu seu próprio plano, o qual apresentou ao poder público. Os governantes se fizeram surdos, inventaram outros planos e o Campeche lutou. Agora, na era Dário, aconteceu o Plano Diretor Participativo e o Campeche de novo se organizou, melhorou seu plano e tem lutado para fazer valer sua palavra. É um bairro que tem tradição de luta, que mantém movimentos articulados e atuantes, que incomoda demais o poder. Por isso era preciso quebrar a espinha desta gente. Nada melhor então do que atacar um velho de mais de 80 anos, que teve a ousadia de colocar no mundo alguém como Lázaro e ainda criar um espaço onde o povo pode se organizar e conspirar.

É por isso que as pessoas que vivem no Campeche e que militam nos movimentos da cidade estão irmanadas na luta pela reconstrução do Bar do Chico. A pequena cabana de madeira foi derrubada numa manhã fria de julho, sem aviso, sem nada. Vieram os homens da Comcap, arrombaram a porta, tiraram as coisas de dentro e destruíram o lugar. Estraçalharam parte da cultura do bairro, pisaram na memória, destroçaram o patrimônio das gentes.

Mas esse crime cultural não ficará sem resposta. Uma delas já foi dada. Num ato público realizado sábado, dia 24 de julho, o velho bar ressurgiu numa obra de arte produzida pelo artesão Paulo Renato Venuto. Um gesto poético, simbólico, que serviu para impulsionar outras ações e idéias. A comunidade quer de volta o mesmo bar, concreto, real. Por isso, no último dia 31 o grupo de mobilização pela reconstrução do Bar do Chico esteve reunido, planejando ações para que o velho espaço comunitário possa ressurgir dos escombros.

Duas frentes de luta foram abertas. Uma delas será na justiça. Como estava em andamento o processo pelo tombamento do lugar, a Associação dos Moradores do Campeche vai dar seguimento ao pleito, exigindo, portanto, a reconstrução. A outra é política e de ação direta do povo. Uma nova manifestação está sendo organizada para o domingo, dia 8 de agosto, às 10h, com partida dos escombros do Bar do Chico. A comunidade mobilizada fará uma caminhada, pela praia, até um empreendimento imobiliário (Essence Life Residence) que está sendo erguido nas dunas do Campeche. Vão protestar contra essa invasão e exigir da justiça o mesmo tratamento que deu ao casebre de madeira que era o Bar do Chico.

O povo do Campeche discutiu e decidiu que se a cidade de Florianópolis é conhecida pela alcunha do “já teve”, por conta de já ter deixado sumir coisas importantes e históricas, como o Miramar, o Expresso, o Grupo Sul, o mesmo não vai se dar ali no bairro. As gentes não aceitam conviver com a idéia de que o bar do Chico não existirá mais. E vão reconstruir. Se quem mandou derrubar o bar achou que iria quebrar a espinha do Campeche, se enganou. Aqui vive uma gente-peixe, mágica, feita de areia, mar e sol. Uma espinha se quebra, outra vem, mais forte, mais viva...