terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sobre a tristeza e o pai



Desde bem pequena fui apegada à tristeza. Meu pai tinha o hábito de comprar livros dos vendedores ambulantes que batiam na nossa porta e eu vivia escondida dentro deles, tentando entender o mundo. Aluísio Azevedo, José de Alencar, Lima Barreto eram meus companheiros. Com eles eu aprendia sobre a luta dos trabalhadores, sobre o poder do dinheiro, a pobreza. Depois, nas coleções sobre América Latina, fui sabendo da destruição e da barbárie que destruíram nossas famílias ancestrais e mais tarde os Cadernos do Terceiro Mundo abriram meus olhos para a África e o Oriente Médio. Tanta dor nesse planetinha. Era impossível não se tapar de tristeza. Por vezes me parecia difícil até dormir. Como era possível que houvesse tanta miséria e sofrimento?  

Mas, apesar de todo esse caminhar com a tristeza acho que não estava preparada para o que tenho vivido com o pai. Não é coisa fácil observar cotidianamente uma pessoa ir se extinguindo de uma forma tão cruel. Minha mãe morreu cedo, vítima de doença do pulmão. Eu morava longe, não vivi sua dor. Isso coube aos meus irmãos que acompanharam seus últimos respiros agônicos. Agora, com o pai, tocou a mim. E é devastador. Durante o dia as coisas até que ficam sob certo controle e com cuidado e carinho a gente vai contornando as pequenas “loucurinhas”. Mas, quando chega a noite parece que entramos num universo paralelo no qual nenhum gesto ou palavra cabe.  

No geral o sono demora demais a chegar. E quando vem é entrecortado. Ele acorda muitas vezes durante a madrugada. Não creio que consiga entrar em alfa. E isso cobra no dia seguinte porque quando não dorme direito fica muito mais desequilibrado e fora do ar. Praticamente todos os remédios já foram tentados, mas causam sofrimento demais. A coisa fica pior. Ele não dorme e acaba ficando mais agitado ainda. Todos os chás também são tentados. Não surtem efeito. Só os seres da noite sabem o que acontece naquele quartinho nas madrugadas. 

Com muito custo consegui fazer com que use fralde de noite, o que, pensei, iria diminuir a necessidade de levantar. Ledo engano. Mudou de  problema. Agora, quando ele quer fazer xixi, não levanta, mas senta na cama e não há cristo que o faça deitar outra vez. Fica sentado na beirinha do colchão, dormitando sentado, enquanto o corpo cai para um lado e para o outro conforme o peso. Se eu puxo, forçando para que se deite, vira no Jiraya, pateando e soqueando com uma força extraordinária. Fica duro feito um pau. Há noites que fica assim, sentando, bambeando por mais de quatro horas. E no dia seguinte acaba ficando fraco e tonto, creio eu que por falta do sono e do descanso corporal. Já tentei de tudo. Nada funciona. E é profundamente triste vê-lo assim. Não desejo pra ninguém nesse mundo essa imagem de desequilíbrio e sofrimento. É avassaladora. Porque a gente tem de ficar parada diante dela, impotente, sem absolutamente saída alguma. Não há o que fazer nem a quem clamar. Há que segurar as lágrimas, empinar o corpo e ficar ali, sentada ao seu lado, em silêncio, esperando que a exaustão o derrube. Aí há que ser rápida para erguer as pernas e esticar o corpinho para que descanse. Nem sempre consigo. 

Hoje, acossada por esse governo de merda, de morte e de dor, sigo me entristecendo por conta das injustiças do mundo. Contra essas dores eu me insurjo, luto, batalho, saio às ruas, me rebelo. Há uma sensação de que pelo menos algo estamos fazendo. Mas, essa tristeza que sinto ao ver o pai nesse sofrimento noturno não tem igual. Por que diante dela sou incapaz, inútil, sem potência. 

E assim, a tristeza vai obscurecendo tudo, ficando tão densa quanto a própria noite a qual temo. Por isso escrevo. Não espero piedade, compaixão ou comiseração. Não. Apenas compartilho para não sufocar. A demência é uma carga pesada. Ela nos ensina sobre nossa pequenez nesse universo. Mas, não precisava ser assim. Se há alguma sorte nisso é que quando o dia vem e o pai levanta, ele não se lembra do que aconteceu durante, na sua luta insana contra o descansar. E quando o vejo assomar à porta, batendo as mãos e dizendo: vamos! Volto a sorrir... E lá vamos nós para mais uma jornada.