sábado, 9 de abril de 2022

Homenagem aos vivos/ Ângela Dalri


Quando eu entrei na UFSC como trabalhadora, logo no primeiro mês já estava metida nas assembleias do sindicato. Imediatamente percebi que o grupo de esquerda ali era o Movimento Alternativa Independente (MAI), liderado por Helena Dalri, uma gigante, no tamanho e na força política. Passei a acompanhar as reuniões e discussões do grupo. Foi quando conheci a outra Dalri, uma pequenininha, mais preciosa que um diamante: Angela Dalri. Ela tinha aquele olhar de passarinho que bateu na janela que era arrasador. Impossível dizer não para a Ângela. Quando íamos fazer campanha para a eleição do sindicato, ela me ligava para acompanhar nas passagens de setor. Íamos de salinha em salinha, nos lugares mais recônditos da UFSC. Nunca vi alguém tão persistente. 

Depois, quando ganhamos as eleições, ela tinha por prática fazer essas visitas cotidianas e tirava sempre um tempinho do dia para andar pela UFSC, falando sobre as lutas, colhendo demandas. Aparecia lá na Agecom com aquele olharzinho de passarinho e lá ia eu atrás dela. Com Ângela aprendi que um sindicalista é como o artista, tem de estar onde estão os trabalhadores, não só no tempo da eleição, mas todo dia e sempre. Nas atividades do sindicato ela era a primeira a chegar, última a sair, e como uma formiguinha andava pra lá e pra cá colando cartazes, enchendo balões e passando nos setores. Imparável e incansável, sempre arranjando alguma coisa pra gente fazer. 

Ela também acreditava que conversando com o povo pessoalmente, a galera iria para a greve. E dava certo. Ela chegava, com aquele seu jeitinho, e falava, e falava e falava. E se encontrava alguém furando a greve lá ia convencer o vivente, numa paciência de Jó. Os furões fugiam dela como o diabo da cruz. Também se achegava nos pelegos e nos adversários que se obrigavam a ouvir a pequenina, mesmo a contragosto. Estando ou não estando na direção do sindicato a Ângela fazia esse trabalho de contato pessoal, cotidiano. E só parou quando uma dor tão grande a sufocou. Mas, se deixou o trabalho na UFSC, ela mesma não parou. Passou a se ocupar dos famintos, dos sem casa, dos da rua, levando sopa, pão, carinho. E a sua carinha de passarinho passou a ser esperança para os sem-nada. 

Até há pouco tempo ali estava ela acolhendo os haitianos, africanos e os venezuelanos migrantes, garantindo casa e alimentação. Está sempre fazendo algo por alguém. Acolher é o verbo que a identifica. Ângela foi sempre meu sul, minha direção segura. É minha “ídala”, meu amor.  Hoje, na celebração dos 30 anos do Sintufsc eu tive a alegria de vê-la de novo na UFSC, apesar de toda a dor que eu sei que significa estar ali. Foi porque é o nosso passarinho, porque suas pegadas estão cravadas nos caminhos da universidade, em cada salinha, em cada jardim. Foi porque sabe que é parte imensa dessa construção que é o sindicato dos trabalhadores. Foi porque ama cada um de nós. 

Nesse abraço registrado por Rubens Lopes, eu deixo registrada essa homenagem à mulher mais linda, mais querida, mais comprometida, mais persistente, mais tudo que eu já conheci. Te amo a perder de vista Angela Dalri, obrigada por tanto que me ensinou pequenininha, meu passarinho, minha amiga, meu amor....

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Etarismo ou a merda de ser velho no capitalismo



Tenho observado muita gente falando nas redes sociais sobre o lance da velhice e sobre o direito de se parecer velho. Li textos e vi vídeos de mulheres discutindo a beleza de envelhecer e de seguir o rumo da vida, libertas de tintas e estereótipos estéticos. Embutido nesse discurso, claro, a crítica de um mundo no qual o velho é totalmente esquecido e dispensado de atuar como sujeito criador. Ao velho, dizem, é relegado o papel passivo de aposentar e abrir espaço para os jovens. E, diante disso, faz-se essa defesa do direito de envelhecer com dignidade, aceitando o processo.

Quero me permitir um pitaco.

Já faz sete anos que cuido do meu pai, que é velho e tem a doença de Alzheimer. Posso afirmar sem medo de errar que ser velho é foda. E ser um velho doente, mais foda ainda. Já ser velho, doente e empobrecido, aí é o inferno de Dante. Então, creio que há que se ter muito cuidado com esse elogio da velhice desvinculado da condição de classe. 

Ficar velho é condição natural da vida. Mas, a condição de classe da pessoa determina situações muito diferentes. Tiro isso por conta da experiência com o pai. Faço parte de grupos de familiares que têm Alzheimer e observo o drama das famílias de trabalhadores empobrecidos para dar um mínimo de qualidade de vida para seus velhos doentes. É uma batalha inglória tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado. As famílias hoje são pequenas e não há gente suficiente para cuidar, já que o cuidado é de 24h. Daí é comum recorrer a remédios que dopam ou asilos. Isso não é falta de amor. É falta de condição. 

Hoje ficamos mais velhos que há décadas passadas. E com tanto de vida pela frente sentimos necessidade de ser criador, seguir contribuindo com a sociedade. Mas, nos pedem que saiamos, para dar lugar aos jovens. E, apesar de todo esse discurso sobre a “terceira-idade”, “melhor idade” e o escambau, o velho é jogado para o esquecimento. Se ele não se mantiver ligado nas redes sociais, fazendo dancinhas ou qualquer outro espetáculo, está fora, esquecido. Não importa se foi alguém que fez coisas importantes, na vida, no trabalho, na cultura da sua comunidade. Se ele saiu, pronto. Esquecido. 

Outro dia me surpreendi vendo um ator famoso, lindo e jovem, ser escalado para fazer um velho num filme. E todos os atores velhos que estão aí esperando um papel? Não importa. Estão velhos. Não dá mais. Então, caracteriza um novo para ficar velho. E se o ator velho, que já foi grande, faz um papel pequeno ou bobo num filme, lá vêm críticas... Não há paz para o velho. O velho que vá pra casa descansar. Bueno, há velhos que conseguiram juntar grana e podem curtir a aposentadoria, viajando, fazendo coisas legais. Mas a maioria dos velhos – que são da classe trabalhadora – não consegue juntar dinheiro para viagens ou curtição. As aposentadorias minguadas servem para comprar remédios que vão tratar doenças adquiridas nessa vida de sacrifício. O capital lhes tira tudo, a vida produtiva e depois a alegria da aposentadoria. Essa é a realidade. Assim as coisas são. 

Então, por isso que ao falar sobre a velhice a gente tem de pensar sobre o modo de vida que produz essa sociedade egoísta, produtivista, capitalista. O velho, nesse mundo, está fadado ao sofrimento. Porque ele já não produz mais para o capital, porque ele não é útil para mais ninguém, porque ele vira um incômodo. 

Não é de espantar então atitudes como a do nosso querido Flávio Migliaccio, ou Walmor Chagas, ou agora o lindo Alan Delon. O velho, doente e incapacitado, se vê e é visto como um estorvo. Se é rico ainda consegue decidir sobre sua vida/morte, se é pobre não tem chance alguma. Nem nesse momento. Nem nessa hora noa. 

Ainda há muita estrada para andar nesse tema da velhice. Mas se a gente não pensar primeiro sobre a necessidade urgente de se ter uma sociedade capaz de lidar com o velho, sem comiseração, mas com respeito a tudo que ele foi, continuará sendo um fardo pesado envelhecer. E quando digo envelhecer não tem nada a ver com a gente não pintar mais os cabelos, mas enfrentar toda a decrepitude que a idade traz, inclusive a intelectual, e o abandono que lhe segue. Saber que teremos cuidado quando essa hora chegar pode mudar muito nossa relação com a velhice. 

Mas, hoje, como o mundo é, é impossível ter alguma esperança. Só mesmo a angústia de saber que chegará a hora em que nos deixarão no meio do caminho, abandonados e sós. 

Com o meu pai, venho mudando minhas práticas e aprendendo muito sobre esse processo. Mas, cuidar de um velho não pode significar a morte do jovem. Há que existir espaço para os dois. Espaços de vida, de alegria e de fruição. E, no capitalismo, “my friend”,  isso não vai acontecer.