quinta-feira, 5 de março de 2020

Os carregadores de voz




O jornalismo é um fazer que, segundo o teórico Adelmo Genro Filho, deveria ser uma forma de conhecimento capaz de transitar entre o singular, o particular e o universal. Ou seja, aquilo que é único no acontecimento, sendo mostrado na relação com o todo. Só assim o leitor, espectador ou ouvinte poderá compreender o que realmente aconteceu, porque terá à sua disposição toda atmosfera do fato. A universalidade. Fazer jornalismo assim não é para qualquer um. Precisa estofo. Isso significa que a pessoa que escreve, narra e descreve, tem de carregar dentro de si uma boa bagagem intelectual. Há que ter lido muita literatura, muitos livros de história, há que conhecer em profundidade os grandes dramas do seu espaço geográfico, há que ter capacidade de descrição profunda da realidade. 

Podemos pensar que atualmente os cursos de jornalismo não oferecem essa bagagem. A formação intelectual desapareceu. Muitos deles se tornaram meros repassadores de técnicas e tecnologias. Assim, podemos encontrar entre os recém-formados gente que sabe tudo sobre os novos softwares comunicacionais, mas é incapaz de fazer uma boa pergunta. E repórteres, senhores, já diria Acácio Ramos, são seres que perguntam. O que temos, na verdade, são os carregadores de voz. 

O jornalismo dos grandes meios comerciais já não se preocupa em narrar e descrever a realidade. E vamos ser honestos, entre os veículos alternativos a coisa anda por aí também. Basta dizer o que o outro disse. Segundo fulano, segundo beltrano. E nada de investigação, e nada de análise. Não importa. A informação é só uma sensação. Tampouco importa se o que o fulano disse é verdade. Se o fulano é autoridade, então, falou tá falado. Foi-se o tempo em que o jornalista escarafunchava arquivos em busca da verdade. Hoje não há tempo. A informação é pássaro fugaz. E a verdade é igualmente fluida.

Não é sem razão que o presidente do Brasil ataca os jornalistas. Ele grita em alto e bom som que o jornalismo mente. E ao fazer isso está apenas expressando uma opinião que já está consolidada nos brasileiros. Por isso os seus seguidores aplaudem as patacoadas que ele faz com o grupo que está em frente ao palácio para mostrar – sem crítica ou análise – as suas atitudes. O jornalismo palaciano é uma farsa. E o presidente sabe disso. Por isso brinca e tripudia. Sabe que dali não sairá qualquer reportagem digna de nota. Sabe que os que ali estão apenas repercutirão seus gestos, ou uma frase infeliz. Não haverá consistência nem narrativa crítica sobre o governo em si, sobre os dramas da nação ou sobre as entranhas podres do poder. É um jornalismo do tipo “Caras”, voltado ao exótico, ao engraçado. É um jornalismo conivente, amigo, ajoelhado diante do poder. Quem não se lembra das corridas do presidente Collor, com os jornalistas correndo junto, ofegantes, alegres por mostrarem a nova frase que o presidente ostentava na camiseta? Tudo segue como dantes no quartel de Abrantes.

Houvesse realmente jornalismo correndo nas veias dos que fazem a cobertura presidencial, eles haveriam que sair da frente do palácio e entrar. Vasculhar as gavetas, sob o tapete, manipular os papéis, os decretos, os projetos, contar ao povo o que se está armando contra ele. E se fossem impedidos, teriam de encontrar formas de encontrar a verdade que se esconde sob a lógica das piadas, das grosserias, da estupidez. O show diário da presidência é um esconderijo de verdades. E os jornalistas palacianos ficam ali, observando o que não existe, enquanto que o que existe, de fato, continua invisível para a maioria.

O jornalismo precisa deixar a opinião pública informada sobre a essência das coisas, não sobre a aparência. O jornalismo é espaço de fatos concretos, não de sensações. O jornalismo é a análise apurada do dia. Ou isso, ou nada. É só uma algaravia sem sentido que muito bem serve a quem quer embotar os sentidos. 

Há quem defenda os profissionais que seguem se submetendo aos vexames diários em frente ao palácio. Eu não. Existem sapos que temos de engolir para poder sobreviver num mundo no qual só temos nossa força de trabalho para vender. Sim, é verdade. Mas, momentos há que os limites se impõe. É bem conhecida a lenda de que no mundo das trabalhadoras do sexo há uma regra a ser seguida: se aceita tudo, menos beijo na boca. Porque o beijo é algo íntimo demais, só oferecido ao amor. Assim no jornalismo. Podem-se engolir sapos ao longo da vida para se garantir um emprego, mas coisas há que não são admissíveis. É o beijo na boca. E aí, há que dizer não, ainda que se nos custe a vida. 

Mas, essa decisão de honra não é fácil de ser tomada. Ainda assim, há que recusar o jornalismo de sensações e recolocar essa profissão nos trilhos, ou ela perecerá como vaticina o presidente. Destapar a verdade que os poderosos querem ver escondida. Informar ao público sobre o que lhe cabe. Produzir conhecimento. 

É tempo de desalambrar, colegas, romper as cercas, desalambrar... 



terça-feira, 3 de março de 2020

Casa de Passagem para os indígenas


Todos os anos é a mesma coisa. Os povos originários de várias partes do Brasil caminham em direção à praia para vender seus artesanatos. Aproveitam a temporada e o fluxo de turistas. Essa é a forma que eles encontram para melhorar as suas condições de vida, já que muitas vezes estão em terras ruins, com pouca produtividade e sem condições de garantir a existência. Vender sua arte não é a melhor opção, mas acaba sendo um caminho para a sobrevivência.

Em Florianópolis há oito anos que as comunidades lutam para garantir uma Casa de Passagem, ou seja, um lugar onde possam ficar em segurança com suas famílias durante o período das vendas. Afinal, não são poucas as tragédias que acontecem com os indígenas quando estão sozinhos, desabrigados e desamparados nas cidades que lhes são hostis. A saída encontrada pela prefeitura da capital foi oferecer um velho terminal de ônibus desativado, totalmente inadequado. Não há cobertura, banheiros, enfim, condições mínimas, mas é o que as comunidades têm até agora. A cada ano que passa acontecem conversas e negociações. E sempre fica a promessa de que “para o ano” a casa estará pronta. Nunca está. 

A luta dos povos indígenas tem na cidade alguns bons parceiros, como é o caso do mandato do vereador Lino Peres, que tem acompanhado desde há cinco anos essa cansativa batalha. A prefeitura apresentou uma proposta de construção de uma casa ao lado mesmo do terminal onde hoje eles estão abrigados, mas nada saiu do papel. Agora, em 2020, mais uma temporada vai se encerrando e os indígenas seguem tendo de viver de maneira precária no velho terminal. Como sempre, eles realizaram marchas e distribuíram panfletos à população, exigindo um tratamento digno. Nessa missão o apoio tem sido o do Movimento de Luta pela Moradia, que se solidariza concretamente, ajudando na organização, entendendo que a aliança entre indígenas e trabalhadores é fundamental na luta contra o capital.   

Não faltam, é claro, as atitudes violentas e racistas de gente que simplesmente não entende a realidade indígena e que se coloca contra a construção de uma casa de passagem. “Leva pra sua casa”, dizem nas redes sociais, como se a solidariedade que movimentos e pessoas prestam aos indígenas fosse algo ofensivo. É óbvio que “levar para casa” não é o caminho para as famílias originárias que realizam esse interminável êxodo a cada verão. Elas precisam é de respeito aos direitos que têm. Os povos indígenas são os primeiros donos dessa terra, que foi roubada violentamente, com um sistemático processo de extermínio das comunidades. O mínimo que eles exigem é uma casa onde possam dormir e descansar da sua forçada peregrinação, afinal, se suas terras fossem garantidas e seu modo de vida respeitado, eles não precisariam andar por aí vendendo aquilo que é essência de suas existências: a arte e a cultura.

Mais um ano se passa e a luta continua. As famílias irão embora, mas alguns indígenas ficarão, porque entendem que sem a presença e a pressão, aí mesmo é que nada anda. Por isso, eles também reivindicam melhorias no terminal onde estão agora, para que seja mais confortável. Os indígenas não estão pedindo favor algum. É o mínimo que a prefeitura pode fazer por eles enquanto não entrega a casa de passagem. 

E para os racistas de plantão que insistem em dizer que a cidade não tem nada a ver com isso é bom lembrar que os territórios originais dos povos indígenas se estendem por todo o continente, e que eles não reconhecem as fronteiras que foram erguidas pela invasão colonial e depois pela balcanização da América. Nenhum deles gostaria de estar nessa peregrinação, ninguém queria estar vendendo mercadorias, mas, esse é o legado que a colonização deixou e que as repúblicas que vieram depois não tiveram interesse em mudar. Os povos originários estão em luta para sobreviver, seja no território que lhes é direito, seja em qualquer outro lugar.