sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A UFSC tem nova cara













Basta um simples passeio pelo campus da UFSC e já se pode perceber que a universidade não tem mais a mesma cara que a caracterizou por mais de cinco décadas. Há uma nova estética, outro visual, outro clima. Até o início dos anos 2000, a vida por aqui apresentava uma face mais elitizada, gente branca e os poucos negros que circulavam em geral eram africanos. Hoje não. Com o advento das cotas para negros, índios e escola pública, a universidade ficou diferente. O número de negros quintuplicou, e são na maioria brasileiros. Os índios já se fazem presentes em diversos cursos e conseguiram até uma licenciatura especial. A identidade de gênero também aparece nas suas mais diversas faces. Os empobrecidos ampliaram sua presença e estão aí lutando para permanecer e estudar. Há um colorido que se traduz também na forma de organização das lutas.

Durante o período do governo Lula e o primeiro mandato de Dilma, quando o Brasil vivia o que ficou conhecido como o “espetáculo do crescimento”, esse cotidiano da universidade foi se transformando sem que as pessoas percebessem e, agora, quando chegou o tempo do “ajuste”, essa nova cara da universidade aparece com toda a sua força, reivindicando, lutando e mobilizando a vida. Uma face que, ao que se vê, já não cabe mais nos modelos de luta do passado. Essa UFSC miscigenada exige novos caminhos e novas formas de organização.

É bom lembrar que durante os anos de Lula, o movimento sindical entrou em parafuso. Entre os militantes havia os que acreditavam que com o PT os trabalhadores iriam ter um parceiro seguro no governo, bem como havia os que entendiam que era necessária a autonomia diante do governo, para não confundir as coisas. E foi já no primeiro ano do governo Lula que tudo começou a clarear. Com a Reforma da Previdência proposta por Luís Inácio, que reduzia direitos, iniciou um processo de clivagem no movimento sindical. Os que lutaram contra a Reforma passaram a ser vistos como os “radicais” que não entendiam as propostas governistas. E os que defenderam a derrubada de direitos passaram a receber a etiqueta de governistas. Essa ruptura no movimento sindical de esquerda, a formação desses dois grupos, provocou um processo de desgaste e destruição de boa parte dos sindicatos combativos.

Teve início, então, todo um processo de cooptação de lideranças. Algumas ganharam cargos nos vários escalões do governo e outras, de boa fé, seguiram acreditando que era preciso confiar no governo que entendiam dos trabalhadores. Foi um tempo duro. Os sindicatos que se propuseram a fazer a crítica ao governo que já anunciava sua aliança com a burguesia nacional, os latifundiários e as transnacionais, passaram a ser acusados de fazer coro com a direita. E, nessa luta interna, o movimento sindical foi se domesticando. As lideranças mais críticas foram rechaçadas pela base, que também acreditava viver um lindo momento de crescimento econômico, tendo acesso a bens e crédito. Os que falavam mal disso eram vistos como loucos e foram varridos das direções. O governismo foi tomando conta do sindicalismo e as lutas dos trabalhadores apareciam de maneira pontual, sempre mediadas para que não extrapolassem o limite do “razoável” e não respingassem no governo.

Agora, com o fim da bolha do crescimento, que acabou se mostrando artificial conforme já se denunciava, os trabalhadores se veem dirigidos por sindicatos insossos, sem pegada de luta, sem radicalidade. No caso do serviço público federal isso é visível a olho nu. A considerar o exemplo singular da Universidade de Santa Catarina, as duas últimas greves realizadas pelos trabalhadores mostram isso claramente. Foram claramente contidas pelo sindicato. A última delas, em 2014, quando se travou a luta pelas 30 horas, num movimento histórico que abriu as portas da universidade das 7h às 22h, em turnos ininterruptos, o que se viu foi o próprio sindicato da categoria puxando o movimento para trás até finalmente terminar com ele numa assembleia patética, para a qual convocou aposentados que se prestaram ao triste papel de enterrar a luta dos colegas.

Pois 2015 chegou e com ele o tal do “ajuste fiscal”, cujo primeiro movimento foi cortar nove bilhões da Educação, colocando as universidades num fosso sem saída. Os primeiros a sofrer com os cortes foram, obviamente, os estudantes que entraram nas universidades públicas pelas cotas e os empobrecidos. Na UFSC são mais de cinco mil os que têm cadastro de vulnerabilidade econômica, ou seja, precisam das bolsas e auxílios prestados pelo governo para manterem a vida e conseguirem seguir com os estudos. Sem recursos e sem capacidade política de mobilizar o estado para o problema, a administração central reduziu bolsas, chegou a ficar sem pagar o auxílio alimentação e já anunciou que terá de diminuir os auxílios.

Não é sem razão que esses estudantes se mobilizam e se juntam à luta dos trabalhadores – técnicos e docentes – que entraram em greve contra os cortes na Educação e por melhorias salariais.

Essa união de interesses ficou bastante explícita na Assembleia Geral Universitária, realizada no dia 12 de agosto, no Hall da Reitoria. E foi ali que essa cara nova, bonita, jovem, negra, valente, indígena, branca e aguerrida assomou com toda a sua força. Os professores, sem o sindicato - que se distanciou de tal forma da categoria que sequer consegue ter quórum para uma assembleia - arrancaram uma greve autônoma, vinculada ao movimento nacional. Vendo a inércia da APUFSC, se juntaram e passaram por cima da entidade, mobilizando, parando e discutindo a educação. Os técnico-administrativos também enfrentam a desmobilização promovida pelo Sintufsc, mas avançam, buscando, na união com os colegas docentes e estudantes, provocar a reflexão sobre a universidade. 

Da mesma forma, os estudantes vivenciam um tempo em que o seu Diretório Central descansa em berço esplêndido diante dos cortes da Educação, sem se misturar aos problemas reais. E o que se vê é um grupo arrojado, que não se rende à mediocridade da acomodação, avançar entre os obstáculos, construindo unidade e botando a luta par andar.

Sintomático foi ver que na Assembleia dos três segmentos, nenhum dirigente de APUFSC, SINTUFSC ou DCE tenha se manifestado. A mesa se formou com os representantes da categoria escolhidos no Comando Unificado, que tampouco conta com a presença engajada das entidades. É sem dúvida um momento diferente na UFSC. E não significa desorganização. Pelo contrário. É uma hora nova, de reconhecimento da mudança de temperatura da instituição e da necessidade de encontrar outras formas de luta. Se as entidades claudicam, as gentes avançam. Se as entidades temem, as gentes se emparam e constroem a luta.

Fatalmente essa greve de 2015, que no caso dos técnicos avança pelo terceiro mês,  já é vitoriosa. Ela colocou às claras uma UFSC transformada, ela desvelou a incapacidade das entidades em vivenciar esse novo momento, e ela aponta para um futuro promissor. O desafio que está dado é o de entender que o tempo é outro, que as forças dentro da universidade mudaram e que novas formas de cuidar da vida e do trabalho precisam ser inventadas. Já não dá mais para usar instrumentos válidos em outros tempos. Há que inventar e inventar. E não há dúvidas de que essa geração que hoje vive a universidade saberá encontrar o caminho.

Ontem, dia 13 de agosto, uma discussão no Conselho Universitário mostrou que o atrasado está sem lugar, mesmo num espaço tão conservador como esse. Ao discutir a regulamentação do uso do nome social por parte de pessoas transgêneras, um professor levantou a possibilidade de se pedir a folha corrida da mesma, antes de aprovar. No que foi rechaçado pela ampla maioria. E mesmo entre os conservadores houve quem corasse diante de tamanho absurdo. A UFSC já discute em seus fóruns a realidade das pessoas trans. E isso não é pouca coisa.

Gosto de saber desses ventos novos e movediços. Pode ser que com eles, venha à tormenta. Mas, que a gente não se iluda. Na vida, a tormenta é construída historicamente. Estamos caminhando. 


quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Câmara, justiça e as manobras políticas

















A Câmara de Vereadores de Florianópolis tem 23 representantes que foram eleitos para defender os interesses da cidade e legislar sobre as questões locais. Desses, 14 estão envolvidos em denúncia de corrupção, inseridos no processo da Operação Ave de Rapina. Essa operação, desencadeada pela Polícia Federal, desvendou que os vereadores foram beneficiados com propina na fraude dos contratos de radares e sinalização de trânsito dentro do projeto de lei Cidade Limpa. O nome de cada um dos vereados surgiu nos documentos apreendidos na casa do empresário Adriano Nunes, dono da empresa de mídia exterior Visual Brasil, ao lado dos quais estava escrito: "cortesia" , e o valor respectivo.

Com o andamento da investigação a situação na Câmara tem sido surreal, pois a maioria dos vereadores envolvidos segue atuando e votando projetos que são vitais para a vida da cidade, como é o caso das questões do Plano Diretor, que mexem com grandes interesses empresarias, o que provoca muita desconfiança entre os cidadãos da capital. Até agora apenas dois deles foram afastados, o ex-presidente da casa, César Faria, do PSD, (que inclusive comandou com mão de ferro a votação ilegal do Plano Diretor em dezembro de 2014), e o vereador Badeko (PSD). Mas, além deles também foram indiciados e podem ser denunciados os vereadores Erádio Gonçalves (PSD), Tiago Silva (PDT), Coronel Paixão (PDT), Marcelo da Intendência (PDT), Deglaber Goulart (PMDB), Celio João (PMDB), Dinho da Rosa (PMDB), Ed Pereira (PSB), Roberto Katumi (PSB), Alderico Furlan (PSC), Dalmo Meneses (PP ), e Ricardo Camargo (PC do B). Erádio Gonçalves, inclusive, assumiu a presidência da Câmara e tem tocado os trabalhos na normalidade. 

A Comissão de Ética da casa se debruçou sobre o caso dos dois vereadores que já foram afastados, César Faria e Badeko, e indicou a cassação dos mesmos por quebra do decoro parlamentar. Mas, no dia em que o tema seria apreciado pelos vereadores, uma liminar dada pelo juiz Laudenir Fernando Petroncini, impediu a discussão e a votação, baseado, segundo os vereadores, em informações que não condizem com a verdade e que podem ter induzido o juiz a erro. 

Para os que acompanham as batalhas que se travam dentro da Câmara de Vereadores, aonde quase nunca é levado em conta o interesse da maioria da população, a situação é de realismo fantástico. O vereador Lino Peres, do PT, lembrou muito bem que quando os vereadores votaram de forma ilegal o Plano Diretor, procurou-se a Justiça para reverter a situação e a resposta dada foi de que o Legislativo era autônomo e não poderia receber intervenção judicial. Agora, como os interesses não são os da população, mas de alguns prepostos de grandes empresas, a justiça se pronuncia e atua impedindo a votação da cassação. Dois pesos e duas medidas ou a escrachada verdade?  

Agora, a Câmara terá dez dias para responder aos questionamentos do juiz e só depois o tema poderá voltar a baila, considerando que o magistrado não mantenha a liminar depois de esclarecido. A alegação que impediu a votação  foi de que os mesmos vereadores que denunciaram o vereador fizeram parte da Comissão de Ética, o que não é verdade. O denunciante foi exclusivamente o vereador Afrânio Boppré. 

Na sessão de quarta-feira, excetuando os pronunciamentos de Lino Peres (PT) e Afrânio Boppré (PSOL) os demais se mantiveram relutantes, afinal, tem pelo menos mais 11 deles que estão na berlinda. Não se pode saber se houve algum alívio por protelar o tema da cassação, afinal isso pode acontecer com os indiciados restantes, ou se o desejo é cassar logo os dois que estão no foco para criar a figura do bode expiatório e colocar panos quentes sobre os demais. A situação é delicada.

Enquanto as coisas se enrolam no campo do judiciário, a população se divide entre a indiferença e a indignação. Nessa quinta-feira o funcionário público Alexandre Magno de Jesus, lotado na Secretaria de Assistência Social de Florianópolis, externou o seu protesto entrando com um pedido de cassação contra o vereador Erádio Manoel Gonçalves (PSD), atual presidente da Câmara, também acusado de receber propina.  Agora, resta saber se a casa vai abrir o debate na Comissão de Ética também para esse caso.

Nas ruas, poucos sabem o que está implicado em todo esse enrosco, mas já saem atirando. "São tudo ladrão", diz Antônio Carlos de Oliveira, vendedor ambulante, mas acrescenta: "Isso não dá em nada, essa gente tem as costas quentes". Evelise Duarte, funcionária pública, diz que não sabe como essa gente é eleita. "Tu nunca vê esses caras nos bairros ou na vida da gente e, de repente, eles se elegem com milhares de votos. É tudo comprado. Eu não confio na Justiça e se alguém for cassado é porque tem algum interesse aí por trás. Nós sempre vamos sair no prejuízo". 

E assim, a nave dos indiciados segue voando. Projetos importantes continuam sendo votados e com pouca fiscalização cidadã. Sem mobilização popular a tendência é as coisas esfriarem. Nesse dia 12, na Câmara, havia apenas a presença solitária dos bravos dirigentes do Sintrasem, o sindicato dos municipários, e alguns militantes sociais que foram ver de perto mais essa "pizza".  Alguns estão de olho e pelo menos, a partir deles, as informações fluem.


domingo, 9 de agosto de 2015

Trabalhadores da educação entram no terceiro mês da greve




A semana que passou foi de muita mobilização em Brasília no âmbito da greve dos trabalhadores técnico-administrativos. Milhares de pessoas saíram de seus estados rumo à capital para mais um ato de enfrentamento e de busca de negociação. Como sempre, é um esforço tremendo que os trabalhadores precisam fazer para garantir que os burocratas do governo se dignem a abrir a porta para uma reunião e uma conversa. A cada ano, em cada greve, fica mais escandalosa essa demora em definir o reajuste salarial dos trabalhadores. 

Sempre é bom relembrar. Trabalhador público não tem data-base, logo, o governo fica desobrigado de reajustar salário a cada ano. Sua tática - e isso acontece em todo o governo, azul ou vermelho - é arrochar até quanto o trabalhador aguentar, então, quando não dá mais, precisa estourar uma greve para que venham discutir o tema.


Ainda dentro da tática de desgaste do trabalhador público, o governo faz com que a greve demore, demore, demore, até que a sociedade comece a achar "um abuso" que "essa gente" (no caso, os trabalhadores das universidades) fiquem dois ou três meses sem trabalhar, atrapalhando a educação de seus filhos. É tudo como um recorrente teatro, ano após ano. Na última reunião do Conselho Universitário da UFSC, por exemplo, foi possível perceber o quanto essa tática é vitoriosa. Um dos representantes do Diretório Central dos Estudantes, diante da discussão de uma moção de apoio à greve, disse que só poderia apoiar se os trabalhadores não "prejudicassem" mais os alunos, visto que as aulas iriam começar e precisava ter Restaurante Universitário e Biblioteca. 

Ora, a greve é um momento de subversão da ordem das coisas. É quando a vida sai do lugar. Justamente porque os trabalhadores precisam repor o poder de compra dos seus salários. Os técnico-administrativos das universidades estavam desde 2012 amargando um acordo feito também numa greve, o qual não acompanhou a inflação. Assim, as perdas salariais estão em 27,30%. O que isso significa? Que, em relação a 2012, os salários perderam essa porcentagem no poder de compra. Assim, é justo que isso seja reposto. São perdas. Não está aí embutido nenhum aumento real.

Pois o governo, usando o argumento da crise, não aceita discutir essas perdas e pretende impor a reposição de apenas 21%, divididos em quatro anos. Ou seja, quando chegar 2020 é que os trabalhadores terão reposto esses 21% de perdas acumuladas de 2012 a 2016. Isso significará que as perdas reais já serão bem maiores. Nesse sentido, é impossível aceitar a proposta.

E foi justamente para pressionar o governo que os trabalhadores fizeram mais uma caravana à Brasília, com atos e passeatas de protesto. O objetivo: estabelecer uma mesa de negociação.  Uma humilhação a mais. Todo um esforço para que se abra uma maldita mesa. Como pode um governo permitir que milhões de pessoas fiquem sem condições de estudo simplesmente porque não quer dialogar? Pois é assim. E os trabalhadores é que passam por vilões.

Pois, feitos os atos e passeatas, uma última caminhada noturno, com tochas acesas, terminou em frente ao Ministério de Orçamento, Planejamento e Gestão, que foi logo em seguida ocupado. Ninguém arredaria até que houvesse uma reunião. Gritaria, correria, polícia, todo o kit básico desse tipo de manifestação aconteceu. Então, os "magnânimos" resolveram conversar. A reunião serviu para marcar outra reunião, no dia seguinte, no MEC. E lá foram eles outra vez. 

Na nova reunião, a mesma surdez. O governo mantém religiosamente os serviços da dívida, que consomem 47% do orçamento nacional, e obriga os trabalhadores públicos a apertarem os cintos, ficando sem reajuste nos salários. Ou seja, que paguem os trabalhadores pela garantia de boa vida dos bancos e dos banqueiros internacionais. 

Agora, o governo acena com uma nova (?) proposta, igualmente trágica. Pagar 10 ou 12% divididos em dois anos, mesmo sabendo que a previsão de inflação é bem maior do que 5% ao mês. Ora, não há novidade aí. São os mesmos 21 anteriores. Apenas que serão pagos apenas 10 ou 12 em dois anos. Depois, em 2017 pode haver nova negociação para os 11% restantes. Seria cômico se não fosse trágico.

Aos trabalhadores é o que está posto. Ou aceitam isso, ou aceitam isso. Não há negociação. Não  há sensibilidade alguma com as gentes locais. Aos credores da dívida (ilegal e ilegítima) nenhum pedido de apertar cinto. Só aos trabalhadores, essa gente de casco duro que aguenta tudo. Será? 

Agora, ao iniciar o terceiro mês da greve vem o início de semestre e todas as dores de uma paralisação. Alunos sem biblioteca, sem RU, sem coordenadoria. E o dedo apontado para os trabalhadores: "vagabundos". Poucos são os que dirigem seu ódio aos verdadeiros responsáveis por essa tragédia das greves anuais. Os trabalhadores só têm sua força de trabalho para vender no sistema capitalista e, assim, precisam lutar para garantir o provimento da vida.  Unidos, eles formam um corpo gigante, que pode mover o pêndulo. Às vezes, vencem, às vezes não. Sempre depende da força da mobilização.

A semana será longa. 


Uma conversa de bar



Porto Alegre, noite de chuva e frio. Saí para um café e um pão com manteiga. Na lancheria (que é como os porto alegrenses chamam lanchonete) próxima à Farrapos encontrei guarida. Uma mulher atendendo e outra tomando cerveja, sozinha. Fiz o pedido e aguardei. As duas iniciaram um papo louco sobre ratos. "Porto Alegre está infestada de ratos. Estão por todo lugar. Aqui no centro mesmo, é um horror. E são enormes, parecem até uns coelhos", dissertava Denise, a atendente. A outra, de nome Bia, assentia fazendo cara de apavoramento.  "E o pior é que esses ratos aqui do centro sobem nos apartamento. Eles vão bem alto. Eu moro no quinto andar e um dia, ao entrar no banheiro, lá estava um em cima do vaso, olhando pra mim".

- Que horror. Fugiste?

- Capaz! Eu peguei a arma e atirei nele. Dei três tiros. Errei dois, mas um acertou. Ele escapuliu correndo porta afora, mas eu acho que morreu. Meu marido tem medo, sai disparado. Mas eu não, eu dou tiro mesmo. Se aparecer, leva bala.

A conversa ainda fluiu sobre ratos, como se dar tiros neles fosse algo comum, e depois foi desviando para as gentes.  "Eu tenho pena é dos moradores de rua. Os ratos andam sobre eles, estão por tudo. E tem o perigo de pegar aquela doença, a leptospirose. Eu cuido deles, dos moradores. O meu filho não gosta, diz que são tudo vagabundo. Eu nem ligo, ajudo mesmo", comentou Bia. "Outro dia eu dei uma bicicleta para um deles, o Wagner, que eu conheço faz tempo. A bicicleta era do meu filho, mas ele não usava há anos. Dei e pronto. Levei a maior bronca. O meu filho disse que ele ia vender pra comprar cachaça. Nos primeiros dias ele andou por aí com a bici, parecia um louco na rua. Eu até pensei que tinha dado a morte pra ele. Ia se matar daquele jeito. Mas, em três dia vendeu. Eu tive que vender, me disse. E eu aceitei. É a vida dele".

Denise ouviu a história e concordou com a amiga. Era preciso ter o coração bom quando o assunto era essa gente que ninguém gosta.

- É assim. Basta ser diferente. Aqui na lancheria as gurias tem medo de atender os haitianos, agora tu vê? Ela dizem que viram na televisão que eles estão todos doentes. E aí têm medo de pegar doença. Eu fico bem braba. Não admito discriminação. Se elas têm medo de pegar doença que lavem os pratos e os talheres com água quente. Água quente mata tudo que é bicho. Mas discriminar os haitianos na minha frente, ah, isso não. Eu faço questão de atender bem, coitados.

- Bem que tu faz. Eles só estão buscando uma vida melhor. Não tem nada a ver. São tudo seres humanos - insuflava Bia.

Vez ou outra elas me incluíam na conversa, olhando pra mim, esperando por uma reação. Ora eu ria, ora assentia, constrita. Ora comentava alguma coisa. E a noite avançava.

Naquela simples lancheria de Porto Alegre a solidariedade aparecia, concreta, na figura daquelas duas mulheres que, sem maiores discursos além de suas práticas cotidianas, mostravam que a vida pode ser melhor quando se respeita o outro como outro, diferente, mas real. No cuidado com os moradores de rua e os imigrantes elas tornavam aquele momento único. Uma trabalhadora e uma solitária mulher de classe média, parceria insólita, e uma passageira cliente, unidas no amor às gentes, numa chuvosa noite gaúcha. Às vezes, por nada, a vida assume contornos bonitos demais.

Naquele pedaço do centro porto alegrense, a  matadora de ratos e a salvadora de mendigos, seguiram sua conversa amorosa e doida, enquanto a chuva lavava a calçada, território livre dos roedores.