segunda-feira, 1 de abril de 2019

A ditadura nos tocou a todos


Na semana que antecedeu o primeiro de abril, quando o presidente do Brasil decidiu celebrar o golpe de 64, instaurador da ditadura no país, vi várias vezes nos meus círculos a seguinte mensagem: “Eu não fui torturado, meus pais não foram torturados, eles estavam ocupados trabalhando”. Sobre isso garrei a matutar, pensando no alto nível de egoísmo e de fechamento em si da pessoa que postou esse slogan criado por militantes do atraso e da mentira. 

Sim, é bem provável que a pessoa não tenha sofrido tortura naqueles anos de chumbo, e tampouco sua família. Mas, e onde está a empatia com quem sofreu? Com as mães que tiveram seus filhos arrancados dos ventres, as pessoas que tiveram seus corpos destroçados pela tortura, os que foram mortos e desaparecidos, as mulheres que foram violadas, os que até hoje sofrem as sequelas do terror. Onde a compaixão? Não há! O que há é apenas o bom e velho egoísmo da raça que sempre é trabalhado com maestria pelos poderes dominantes e que serve para encerrar a pessoa no seu pequeno mundo, legitimando a barbárie.  

“Eram comunistas, mereciam”, dizem, aceitando sem questionar as mentiras que se espalham sobre o que é o comunismo e contra o que lutavam as pessoas que foram mortas e torturadas. Outro horror, visto que mesmo diante dos inimigos há que demonstrar compaixão e a tortura é algo vil, aplicada em quem quer que seja, inclusive em animais. 

Mas, para esses – que não fazem parte do 1% da classe dominante que se deu bem na ditadura - eu tenho uma triste notícia. Mesmo que tenham ficado em casa trabalhando e não tenham sofrido tortura, informo que sofreram, sofrem e seguirão sofrendo por conta daquele governo empresarial/militar que deu início a escalada da dívida, a qual hoje todos seguimos pagando e que levou o governo de Michel Temer a congelar os gastos públicos por 20 anos. Ou seja, tiram dinheiro da atenção à população e entregam aos bancos. 

Pois o sistema da dívida, tal como hoje o conhecemos, de total submissão aos bancos internacionais, deu um salto gigantesco justamente no período da ditadura com o famoso “milagre brasileiro”, com o qual o governo iniciou uma série de obras faraônicas como a transamazônica, que consumiu milhões e desviou outros tantos. Conforme dados oficiais da dívida, em 1964 o Brasil devia três bilhões de dólares e quando a ditadura acabou, registrava-se em 1985 uma dívida de 105 bilhões. Ou seja, cresceu 32 vezes. No quadro do orçamento, o pagamento da dívida tomava 53 % de tudo o que o país arrecadava. Hoje toma 47%.

A auditoria da dívida feita no Equador, que se utilizou das mesmas empresas para redigir os contratos, comprova que a maioria desses contratos é criminosa e de lesa-pátria. O Equador conseguiu reverter 70% da dívida, que foi considerada ilegal e irregular. No Brasil, nunca houve auditoria, mas se houvesse, certamente se comprovaria também a ilegalidade. As empresas são as mesmas e os contratos também. 

“Ah, mas eu não tenho nada a ver com isso”, diriam os que só pensam no seu umbigo. Tem, sim. Por conta da opção pelo pagamento da dívida – ilegal e ilegítima - não há investimento na vida dos brasileiros, incluídos eles. Por conta da dívida, a educação, a saúde, a moradia, a segurança recebem ínfimos recursos e não são oferecidos com qualidade. Por conta da dívida os impostos que são arrecadados não revertem em benefícios para a população. Por conta da dívida os políticos fizeram a reforma trabalhista, que tira direitos, e agora querem fazer a contrarreforma da Previdência que vai acabar com a velhice de todos, jogando para os bancos - sempre os bancos -  a montanha de dinheiro gerada pelo trabalho dos trabalhadores. E os bancos especularão com a grana por mais de 40 anos até que chegue a aposentadoria – se chegar. 

O governo que tivemos entre 1964/1984 não apenas aumentou a dívida, mas, com sua truculência e totalitarismo reforçou de maneira indelével a herança de violência que vem desde os tempos da colônia, e tanto que até hoje ainda não saímos desse labirinto de ódio ao negro, ao índio, ao diferente. E naqueles dias, a ditadura impediu as vozes de se expressar, impediu as pessoas de conhecer outras formas de viver. Impediu a crítica, impediu a contestação, impediu tudo. A ditadura foi o tempo da paz, mas a paz do cemitério. E se havia alguém que nada sabia dos porões, era porque estava proibido falar. Assim, só sabia quem vivia o terror.

Assim como hoje temos 37% dos brasileiros apoiando um governo títere dos interesses internacionais, também naqueles dias dos anos 60/70 tivemos brasileiros acreditando que a aliança para o progresso, feita com os Estados Unidos e às custas da morte de tantos, era para melhorar a nação. Não foi. Foi ruim e se estendeu mesmo depois que os generais tiveram de abandonar o poder por conta da luta dos que nunca desistiram. A partir de Sarney as vozes puderam outra vez se expressar, os partidos voltaram à luz, mas a violência e a tortura seguiram. E se os desafetos políticos já não eram torturados, os bagrinhos das periferias, os ladrões de galinha, os jovens negros delinquentes, sim. Isso não mudou nem quando o PT chegou ao poder, pois apesar de representar um hiato na tradicional linhagem de poder, não tocou nas estruturas das forças de segurança. 

Assim que o que temos hoje é um eterno retorno dos tempos de violência e terror que se abateram sobre Pindorama desde a chegada dos saqueadores em 1500. Houve terror de estado contra os indígenas, depois contra os negros – sequestrados de sua terra e tratados aqui como bichos - depois contra os colonos pobres, e segue sendo assim com os trabalhadores. Com mudanças sutis são as mesmas famílias que seguem dominando. O PT foi um hiato, um brevíssimo hiato na história, que não conseguiu – ou não quis – colocar um fim nisso de maneira radical.

Agora, com os mesmos saqueadores no comando, sustentados pelos capitães do mato, a história segue se repetindo. O pau de arara ainda é usado nos escuros cantões do poder. A tortura é uma constante. Esse foi um aprendizado que não se dissipou. Pelo contrário. A lei da anistia, igualando torturados e torturadores, impedindo o juízo dos responsáveis pela barbárie, colocou o terror embaixo do tapete. E, bastou só levantar uma pontinha que ele reapareceu. Só que com ele vem também a memória, que não se apaga. Não mesmo. Porque ao longo desses anos milhares de pessoas foram recolhendo provas e documentos, concretizando na vida essa verdade.

Assim que pode uma parcela grande da população seguir negando a história, pode seguir acreditando nas mentiras forjadas e distribuídas pelas redes sociais, pode manter-se iludida com respeito aos governos e aos poderosos. Mas, a realidade não pode ser escondida. Ela assoma, quer se queira ou não. E todas as máscaras caem. Mais dia, menos dia. É batata!

Os que amam a tortura seguirão fazendo sua apologia. Cabe a nós seguir também expondo a verdade histórica, desvelando a realidade, desfazendo as mentiras. Um caminho difícil, mas que precisa ser trilhado, a despeito de tudo. Porque a tortura não foi um raio de um tempo passado. Ela segue se fazendo nos cárceres e nos porões. Ela é exercida também quando não tem cama no hospital, quando teu pai morre na fila do SUS, quando tua filha não pode estudar, quando teu filho cai com uma bala perdida, quando teu salário não te mata a fome, quando tu estás desempregado, quando precisas depender de alguém para se manter vivo, quando tua mãe morre sem aposentadoria, quando precisas mendigar um remédio, quando não podes ter uma vida plena porque alguém está usurpando tudo o que é teu direito. 

Então, sim. Tu, que não faz parte do 1% de ricos desse país, vive a tortura sim. Viveu em 64 e vive agora. Ainda que não se dê conta. E certamente, naqueles dias, teus pais, que estavam trabalhando, enquanto os que lutavam contra tudo isso estavam morrendo, igualmente viviam a tortura de viver num país no qual os direitos básicos eram negados. Ainda que não se dessem conta também.  

O governo empresarial/militar foi uma ditadura e os governos que se seguiram são a expressão acabada da ditadura do capital. Temos um longo caminho para vencer e seguiremos, como Dom Quixote, enfrentando o horror. “Não são moinhos, Sancho, são gigantes. E contra eles vamos travar uma longa e feroz batalha”.