quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O pai e as surpresas


Uma das coisas mais seguras nessa doença de Alzheimer é o mexe-mexe nas coisas. Uma ansiedade por abrir portas, gavetas e mexericar em tudo. Aqui é assim. O pai almoça e dá uma descansadinha no sofá. Fica ali vendo TV ou olhando para a janela. De repente, do nada, ele se levanta e sai. Caminha ligeirinho em direção ao portão. Pode fazer o tempo que for, inclusive chuva. Ele se manda. Depois de mexer no cadeado do portão, sem sucesso para abrir, ele volta. Ai começa o abre fecha de tudo que há. Gavetas, armários, fogão, geladeira. E ai de quem diga alguma coisa ou o impeça. Tem que deixar fuçar. Eu fico de longe só observando se ele não vai pegar alguma coisa de vidro ou derrubar algum pacote aberto. 

Nisso ele fica um tempo. Pega as panelas em cima do fogão e bota na mesa. Tira da mesa, bota de novo no fogão. Fuça no lixinho da pia. Geralmente deixo uns saquinhos pendurados nos pegadores das portas dos armários com coisa que ele pode comer como pão, frutas, biscoitos. Ele pega os saquinhos e sai de fininho, achando que está me enganando. E eu fico bem quietinha. É um joguinho de gato e rato que pode durar horas. Ele até dá uma paradinha para o café, mas logo retorna ao mexe-mexe  e esconde-esconde. 

Quando chega a hora de dormir é hora de finalmente recolher as surpresas. Dentro dos bolsos encontro cada coisa. É controle da televisão, cartas, pedacinhos de dominó, bolinhas, banana, pinhão, cascas, pedaços de pão, colheres, pedacinhos de papel, garrafinhas de molho, panos de prato, canetas, lápis de cor, prendedores de roupa, latinhas,  caixinhas de remédio e até cabeças de alho. Também já achei uma caixinha de Maisena. Tudo isso ele vai amealhando ao longo do dia. Eu vou trocando a roupa dele e encontrando os “mimos”. E tenho de esconder debaixo da cama senão ele quer pegar de volta. Tem alguns aos quais ele se aferra e aí não tem jeito. Há que esperar adormecer para tirar da mão. Geralmente são panos de prato ou saquinhos plásticos.

A vida dele gira em torno dessas insólitas e prosaicas atividades. Pode parecer que ele está fechado em mundinho pequeno. Mas, não. Nessas colheitas de pequenos objetos, no vai-e-vem no quintal, nas espiadas por cima do muro, nas conversas com o Rolando Boldrin e no diálogo com os cachorrinhos existem universos inteiros que podem ser incompreensíveis para nós, mas que o enchem de alegria e serenidade. E é assim que seus dias passam, na paz.



Fenaj quer mitigar danos aos jornalistas. Esse é o caminho?



Participei de uma discussão chamada pela Fenaj na qual os seus dirigentes apresentaram uma proposta que me deixou boquiaberta: a taxação das grandes plataformas. Oi? Confesso que me esforcei. Mas não entendi. Então, fui buscar mais informações no sitio da minha federação e lá estava a manchete, assim, sem pejo: “FENAJ apresenta proposta de taxação de plataformas digitais como forma de mitigar danos causados ao jornalismo”. Oi? Como assim, meu deus? Mitigar os danos? 

A Fenaj era para ser uma federação de sindicatos, logo, deveria atuar numa pegada sindical. Mas, não é assim. Já faz algum tempo que a Federação dos Jornalistas atua mais como um espaço de trabalhadores liberais. Tanto que é a Fenaj quem tem feito a campanha pela criação de um Conselho Nacional de Jornalistas, que seria algo assim como um espaço de fiscalização da profissão, típico das profissões liberais, como médico, engenheiro, contabilista, etc...

Sempre acreditei que os trabalhadores da comunicação deveriam se unificar em um sindicato único. Não faz muito sentido ter um sindicato de uma categoria que não se sente trabalhadora. No nosso caso, jornalistas, temos avançado muito para essa forma de ser que é a pessoa pejotizada. Ou seja, não é trabalhador, porque não assalariado, mas também não é patrão, porque precisa da empresa que o contrata de forma terceirizada. Logo, tá sempre numa espécie de limbo identitário. 

Já fui contra o Conselho Nacional de Jornalistas justamente porque, se ele existisse, o sindicato dos jornalistas seria algo totalmente inútil e eu acreditava que os jornalistas poderiam, sim, ter um sindicato que fosse um instrumento de luta dos trabalhadores desse fazer. Hoje não me oponho mais. Observo que cada vez mais os jornalistas vão se distanciando da ideia de ser trabalhador. Vivemos um tempo de pessoas-projeto, de empreendedores, e os poucos que ainda estão nas galés (mídias comerciais, sindicatos e instituições), portanto, com patrões, acabam se determinando no conjunto do grupo onde estão inseridos. O sindicato dos jornalistas fica inútil. Não que isso seja “culpa” dos jornalistas. É que o tempo histórico, que constituiu outras ferramentas de comunicação, tem destruído a profissão e ao mesmo tempo não há qualquer proposta revolucionária que garanta a construção de outra realidade.

Agora, ao me deparar com essa campanha da Fenaj pela taxação das grandes plataformas, tenho fortalecida essa sensação de que a profissão de jornalista se esboroa.

A ideia é tirar das grandes plataformas de dados e informação – que hoje matam o jornalismo – uma grana, que seria colocada num fundo. Esse fundo seria gerido por um conselho que iria destinar as verbas para a formação de jornalistas e/ou produção de notícias. A proposta não é da Fenaj mesmo, é da FIJ, a Federação Internacional. Esta federação está  preocupada com a queda dos investimentos nas empresas de comunicação. Como a queda de investimentos acaba tendo impacto nos empregos, eles pensaram em taxar as megaempresas e com a grana criar alternativas para os jornalistas. Uma coisa meio surreal. É mais ou menos como as entidades de luta popular que usam recursos das Fundações estadunidenses para combater as políticas que essas mesmas fundações oferecem aos Estados Unidos e que os  Estados Unidos nos impõem. Sinto muito, mas não consigo entender.

É incognoscível.

Conforme ainda a notícia no sítio da Fenaj, esse  fundo seria usado para a produção de jornalismo, notícias, que, assim, garantiriam a pluralidade e a democratização da comunicação. Eu confesso que ainda não entendi direito a parada. Como que isso iria garantir a pluralidade? Por mais notícias que fossem produzidas pelos jornalistas pagos pelo fundo, haveria garantia de que essas notícias circulariam nas big empresas de informação? Seria uma espécie de terceirização do serviço jornalístico por essas big empresas? Ne afinal essas informações circularia?  E a universidade então não teria mais sentido na formação do jornalista? A formação universitária seria apenas ritualística, com a verdadeira formação para os meios sendo feita à parte?  Seriam os cursos promovidos com a grana das plataformas que iriam definir a qualidade do jornalismo? De que forma isso combateria a formação dos oligopólios? Sem or! Não me parece fazer sentido essa proposta.

Compreendo a apreensão da Fenaj com o futuro dos jornalistas, afinal, a realidade aponta para o fim das empresas de comunicação tal como as conhecemos. Televisão, jornal e rádio são mídias que tendem a encolher com o avanço das grandes avenidas comunicacionais criadas pelas bigdatas, streamings e plataformas de bobagens tipo o tik tok. Continuo acreditando que, mesmo nesse cenário, o jornalismo ainda é necessário, pois diante de tanta desinformação e alienação é sempre o jornalismo que tem o papel de desvendar o que se esconde. Assim que o jornalismo deve continuar existindo, fazendo o ataque feroz aos inimigos do conhecimento. Mas, não creio que o caminho seja esse proposto pela Fenaj. 

Da minha parte penso que deveria ser transformado e fortalecido o ensino do jornalismo nas universidades, capacitando os profissionais para serem  bons perguntadores, bons analistas da realidade e críticos. E, do ponto de vista da luta política teríamos de combater os oligopólios e não fazer alianças com eles. 

Ou seja, precisamos de teoria revolucionária, luta revolucionária e um sindicato capaz de incorporar essa luta, insuflando os trabalhadores à construção de outro mundo, socialista. A proposta da Fenaj está dentro da lógica da “humanização do capitalismo”, coisa que obviamente não é possível.



segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Anita



Há quem diga, para desqualificar nossa Anita, que ela era apenas uma mulher que, por amor, se deixou levar por aí, nas batalhas farroupilhas e em outras peleias de libertação, inclusive na Itália. Heroína de dois mundos. Ora, ainda que fosse isso, deveríamos lhe render glória. Afinal, que mulher, naqueles dias, foi capaz de fazer o que ela fez?  

Mas, o fato é que sua saga não foi só seguir um homem. 

Fosse assim ela não teria lutado batalhas sem ele, espada em punho, revólver na cintura, em cima do cavalo e com os filhos nos braços. Anita era mulher apaixonada. Anita era soldado, era organizadora, era mãe, era parceira. Anita era valente, era destemida, era furacão. 

Hoje, quando se celebra seu nascimento, sopra desde o mar, vindo lá de Laguna, um vento levinho. E com ele vem o seu perfume de mulher tocada pelo amor. Uma amor que a fez imortal. Eu te reverencio, Ana, Aninha, Anita, guerreira desses nossos caminhos. 

E tudo o que posso desejar é que brote em nós essa paixão louca que te fez combatente quando tudo apontava para uma pacata vida na beira do mar. Eu te reverencio Anita, assim como reverencio Juana Azurduy, Bartolina, Micaela, Manuela e tantas outras mulheres que, por amor, conduziram uma nação.