terça-feira, 16 de junho de 2020

De noite, na pandemia


É de madrugada. Velo o sono do pai que respira, sereno. No ouvido, o fone, com as canções do Luiz Marenco alcançando o atavismo que mora em mim. O Rio Grande que vive na lembrança. Lá fora, os cachorros se movimentam a cada tanto, latindo, perseguindo algum fantasma. Um dos gatos repousa no meu pé, os demais andam a fazer estripulias pela noite afora. O vento sul assobia na janela me lembrando que a mãe dos ventos está por ali a varrer o desalento. Mas, ele não vai embora de todo. Fica a cutucar a alma, que estremece. As retinas ainda elaboram as imagens dos telejornais, de um país devastado. Não há só um monstro ali, ocupando o cargo maior. Não! Há milhares, milhões. Gente capaz de entrar numa UTI para ver se tem doente de Covid. Gente que persegue enfermeiros. Gente que incensa políticas de morte e baba de prazer. Uma gente que sempre esteve aí, do nosso lado, num silêncio expectante. Esperando a hora de colocar as unhas para fora, os dentes afiados, e oferecer o banquete do terror. Essas pessoas têm nomes conhecidos e rostos até ontem queridos. Há um maremoto em mim, o corpo inteiro se revolve. O gato aconchega. O cachorro arranha a porta. Abro e deixo que mais um bicho se enrosque em mim. Os bichos me olham com olhos de bem-querença. Uma bem-querença que não cobra. Eles me restabelecem a ternura. Suspiro. O pai levanta a cabeça. Quer mijar. Tiro o fone e vou com ele, guiando pelo universo da demência. Como sempre, não acerta o vaso e esparrama o xixi pelo banheiro. Olha pra mim, confiante, e volta para a cama, onde novamente se deita e segue com o sono dos justos. Seco seu chinelo, ajeito as cobertas, e vou limpar o chão. Volto pra cama, o gato espreguiça, o cachorro vai tomando o espaço e eu permaneço com os olhos arregalados, buscando encontrar algum sentido nessa hora noa. Não há. Pego o celular, entro na netflix, nenhuma série mais me toma. Tudo parece demasiado. Há um maremoto em mim. Do outro lado da casa dorme o meu amor, sem mim. E sinto falta de seu abraço. O cachorro me fita, os olhos mansos, como a dizer: não temas, estou aqui. Faço-lhe um carinho. Agradeço. Ligo a TV, o controle passando sem se deter em nada. Há um maremoto em mim. Um medo. Não de morrer de Covid ou de qualquer outra coisa. Um medo de perder o riso, a leveza, a ternura. Há um assombro, em cada passada de notícia do facebook que manejo automaticamente, tentando achar algum nicho de beleza. Não há. A noite avança, célere, e eu penso nas pessoas que amo e que talvez estejam também nessa aflição. O coração acelera. Mas, não há lágrimas. Só esse estupor. Leio algumas mensagens do uatizapi e, de novo, me encolho, tentando encontrar um caminho para dentro, porque aqui fora tá escuro e passeiam os fantasmas. O pai levanta mais umas quatro vezes na madrugada. O mesmo ritual. O mijo, o olhar manso, o chão molhado, o pano encharcado, o chinelo seco. Quando a barra do dia se avizinha, eu adormeço. Restarão algumas horas e a vida recomeçará no dia da marmota, no feitiço do tempo que parece não ter fim.