quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Ato em Imbituba reúne indígenas e militantes sociais



Fotos : Celso Réggio/Imbituba

De Florianópolis partiram os Guarani e outros militantes da causa indígena. Seguiram para Imbituba, mais ao sul, onde foram participar de um ato de protesto contra o assassinato do menino kaingang Vitor Pinto, de dois anos, degolado no colo da mãe. Os Guarani se mobilizaram porque sabem muito bem o que é o preconceito, a discriminação e a violência. Afinal, vivendo tão próximos da capital e do mar, eles tem sido sistematicamente desqualificados pela mídia comercial, que reforça a mentira de que os Guarani não são dessas terras, que são preguiçosos e inúteis. Mês após mês, ano após ano, apesar das ritualísticas matérias de 19 de abril, nas quais se idealiza um índio que nem existe, a prática é de fomento do preconceito. Tal qual os negros e os pobres eles são massacrados diuturnamente.

Assim como em Imbituba, cidade litorânea, onde a família de Vitor foi buscar uma maneira de vender seu artesanato e garantir o alimento, também Florianópolis recebe todos os dias famílias indígenas que buscam espaço para a venda da cestaria, colares e bichinhos de madeira. São as estratégias mínimas para conquistar o mínimo. Os Guarani do Morro dos Cavalos, por exemplo, até hoje não conseguiram a demarcação definitiva de suas terras e precisam lutar cotidianamente contra a discriminação e o ódio de toda uma comunidade que não suporta sua presença nas margens da 101.

Por isso eles foram à Imbituba, liderados pela valente cacica Kerexu Yxapyry (Eunice Antunes). Ela, que vive recebendo ameaças de morte por parte de gente que vive dentro da terra indígena, sabe muito bem o que é viver nesse fio da navalha entre a batalha por viver, e a luta por fazer reconhecer o direito de existir. Eunice, tal qual a mãe de Vitor, também tem filhos, e sabe o terror que é estremecer a cada barulho estranho vindo da estrada. A vida dos indígenas é dura demais. Nem podem mais viver como viviam, nem conseguem estar integrados a uma cultura que não é sua, tampouco podem viver conforme suas tradições. É um constante desfazer-se, desenlaçar-se, desenraizar-se.

Mas, para ir ao protesto em Imbituba não precisava ser indígena. Qualquer pessoa - seja mãe, ou pai, ou filho - deveria ter apontado suas velas para baixo daquela árvore que foi testemunha da morte de Vítor. Render homenagem ao menino. Pensar coletivamente sobre a sociedade que temos construído como humanos. Uma sociedade capaz de produzir o abandono dos primeiros donos da terra, bem como a alma em escombros do garoto que puxou a faca e tirou a vida de Vítor.

Uma reportagem feita pelo jornalista Renan Antunes levantou vários elementos sobre quem é Matheus Ávila Silveira, o garoto de 23 anos que está preso como principal suspeito do crime, uma vez que ele mesmo chamou a polícia e se entregou. Ouvindo familiares e vizinhos do rapaz, Renan traça o perfil de  abandono e sofrimento que teria levado Matheus a caminhos tortos, os quais desembocaram naquele 31 de dezembro, na rodoviária de Imbituba. Ou seja, o assassino aparece como vítima de violência, preconceito e discriminação, os mesmos elementos que permeiam cotidianamente a vida do povo indígena.

Ainda não se sabe o que, de fato, levou Matheus a escolher aquele menino em particular. Se foi um crime racial, se foi um ato de loucura. Nenhuma informação foi liberada pela polícia que segue na busca da arma do crime e de outras evidências, visto que têm 30 dias para finalizar o inquérito. 

Enquanto isso, os parentes indígenas tratam de não permitir que tudo seja esquecido. E, com fitas vermelhas no pescoço, simbolizando o sangue derramado do inocente, eles manifestaram sua dor, acompanhados de outros militantes da causa indígena. Em Chapecó, também o povo Kaingang realizou uma ato público, exigindo os motivos do crime. Para os familiares, que perderam Vitor de maneira tão brutal, faz-se necessária a justiça. Mas, a todos parece cruel demais vivenciar a dor de uma vida de exclusão e ainda ter de prosseguir sem entender o que aconteceu de verdade naquele dia em Imbituba. Por quê? Por quê?


E assim, enquanto a vida segue, no verão catarinense de praias lotadas, essa pergunta ficará martelando a cabeça daqueles que se importam. 


segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Al otro lado de la lluvia


Impossível não mergulhar na dura e triste realidade dos povos da América Central lendo esse poderoso livro do escritor guatemalteco Rafael Cuevas Molina, "Al otro lado de la lluvia". A partir da mirada de duas mulheres ele narra o assombro da violência, do medo, da tristeza e do êxodo vividos por milhares de famílias naqueles cantões da fatia estreita do mundo cetro-americano. Acompanhando a intimista saga de Clara e Esperanza a gente vai se embrenhando  naqueles anos de tanta dor que foram os 60 e 70 do século XX.  

Nada está dito, a narrativa traz apenas a vida em imanência. Mas tudo está explícito, tal qual a chuva que nunca para. Quando a vida era boa e se sonhava, e quando vieram os duros anos de armada resistência. Sabe-se dos que arriscavam a vida por um mundo bom, e dos que sempre usaram a carência do outro para crescer. Sabe-se de ausências, de amores, de lágrimas, de fortalezas, de esperas, de mortes e de esquecimentos. A narrativa é leve, quase lírica, se contrapondo a toda dureza da realidade. 

O livro é pequeno, mas suficiente forte para ficar doendo por horas a fio. Deixa o gosto amargo de um tempo que impôs tantas perdas, mas que também fortaleceu os espíritos que sobreviveram. Um fio de esperança escapa pelas páginas quando as personagens decidem seguir seus caminhos, ainda que com a alma em escombros. A vida sempre chamando, desde as profundezas. 

Rafael Cuevas Molina é nascido na Guatemala, mas vive hoje na Costa Rica, onde atua na Universidade Nacional. E esse é apenas um dos seus livros, os quais estou vagarosamente sorvendo nesses dias de estupor.