sábado, 30 de março de 2019

O cuidado e o tempo


Saí de casa bem cedo para prover meu sustento. Família pobre, mãe doente, remédios caros. Era preciso “se virar” para dar conta, inclusive dos sonhos que trazia na cabeça: ser jornalista, escrever, contar histórias. Foi uma caminhada de atropelos, sempre difícil. Mas, a vida é difícil mesmo, e temos de aprender a driblar as merdas para vivenciar momentos de alegria e felicidade. Nessa estrada sempre estive contra o tempo. Eu tinha pressa. Pressa em ajudar a mãe, pressa em garantir a comida de cada dia, pressa em dar felicidade para minha vó, pressa em ajudar meu irmão, pressa na busca dos meus desejos, pressa para pagar as contas, pressa para fazer a revolução. Eu era o coelho da Alice, sempre correndo, alucinada, para algum lugar. Trabalho, política, sindicato, passeata, movimento social, luta.

E assim a vida foi passando, nessa corrida desenfreada, sempre enredada em alguma atividade, dessas que nos consome o corpo, a alma, a sanidade, em busca do ainda-não. Parecia sempre que o dia era pequeno, tanto havia para fazer. E, mesmo à noite, em casa, mais textos, mais leituras, mais articulações, mais conversas por telefone, conferências, encontros, grupos de estudo, formação.

Então chegou o pai. A roda do tempo travou. A doença do esquecimento e da demência é coisa que não melhora. Ao contrário: só piora. Então, tudo muda de lugar, a vida se desarranja. Já não há mais militância, nem reunião, nem festa, nem encontros com amigos, nem passeios, nem viagens. O tempo do cuidado é um tempo de entrega e de lentidão. Ajudar a levantar toma uma hora. Tomar banho, de duas a três horas, sair para caminhar no entorno, uma hora, preparar para dormir, umas duas horas, e a hora do mate é só a hora de ficar observando os passarinhos, o pôr-do-sol, ouvindo uma música. O tempo parado. Ações que se praticavam em segundos, agora se estendem, devagar. Até comer ficou lento, porque a falta de dentes obriga o velho a mastigar mais devagar e a gente com ele, para acompanhar.

Com o andar da doença, o tempo da gente vai encurtando ainda mais. Surgem novas demandas, novas tarefas. Já não há mais espaço para planejar a vida. “Amanhã farei isso ou aquilo”. “Ano que vem vou para tal lugar”. Não. O nosso tempo agora se resume em viver o que for possível nas 24 horas. Um dia depois do outro, sem planos. Cada dia é uma surpresa e nossa única tarefa é atravessá-lo, sem desesperar. Quando a noite vem e o corpo encontra descanso, a mente se esvazia. Há que dar calma ao coração. Porque o dia seguinte será novo, totalmente novo. Há que estar bonita, alegre e disposta. Porque tem alguém ali, esperando pelo nosso cuidado.

Tem sido uma experiência e tanto essa de ter perdido a pressa e encontrar, nas 24 horas do dia, a plenitude do viver. Não é bonito, nem sublime. Apenas é assim. E, pelo caminho, com o pai, vou aprendendo...


quinta-feira, 28 de março de 2019

A caderneta e o comunismo


Outro dia alguém das minhas relações publicou um banner no qual estava escrito assim: “Obrigada militares, por nos livrarem do comunismo em 64. Senão, hoje estaríamos nas filas, com uma caderneta na mão, buscando comida”. Fiquei meditando muito sobre isso. E no fundo do meu coração procurei entender como alguém que vive num país como o nosso, no qual pessoas ainda morrem de fome, dormem em barracos imundos, não conseguem dar vida digna aos seus filhos, considera ruim que em um país comunista as pessoas tenham uma caderneta com a qual conseguem comida. Ora, minha gente, isso significa que as pessoas recebem comida. Onde está o horror disso? Horror não seria passar pela periferia de suas cidades e ver tanta miséria. E saber que aquelas pessoas não tem uma caderneta, nem um fila onde ficar para garantir a alimentação? Horror não seria saber que existem crianças cuja única refeição decente que fazem é na merenda da escola, que é fraudada e diminuída a cada dia?  Que pessoas são essas que escrevem essas coisas? Será que não conseguem entender o que estão publicando? Isso sim, me dá horror. 

Mas, tirando isso há que aclarar algumas coisas. Primeiro: não, os militares não nos salvaram do comunismo. Porque o que estava em curso com o governo João Goulart não era comunismo. No máximo um nacionalismo reformista que poderia chegar a um capitalismo de estado, com grande participação popular. Jango era um fazendeiro, apegado a sua classe, ainda que tivesse grande sensibilidade social. O golpe se deu não pelo comunismo que poderia vir, mas pelo que o império sempre considerou o mal maior: o nacionalismo de esquerda. Ou seja, essa ousadia de querer ser autônomo, soberano, de ditar as regras em favor do povo. O Brasil não seria uma Cuba. Infelizmente, não. 

Outra coisa importante: quem inventou o golpe não foram os militares. Eles apenas operacionalizaram aquilo que a elite nacional e o império apavorado queriam, que era acabar com a ameaça nacionalista. Então, se tiver de agradecer a alguém pelo Brasil de fome, de pobreza, de atraso, de subdesenvolvimento, não agradeça só aos militares, mas à elite dominante também. 

Segundo: o comunismo não é um mundo sombrio, cheio de filas e cadernetas. Essa imagem, criada a partir da realidade cubana e agora venezuelana não representa o comunismo. Cuba tem vivido esses anos todos de libertação sob um bloqueio comercial. Ou seja, o país não consegue comprar coisas nos outros países, mesmo que tenha recursos para isso. Os países que negociam com Cuba sofrem pressões dos Estados Unidos. Então, entendam. Não é o comunismo que provoca filas ou cadernetas. É o bloqueio! 

A mesma coisa acontece na Venezuela, que só uma pessoa muito desinformada ou formada pelo uatizapi, pode ver como comunismo. A Venezuela é um país capitalista bem normalzinho, com um governo nacionalista. De novo temos aí o nacionalismo, o verdadeiro temor do império. E o que é o nacionalismo: é pensar no país primeiro. “America First”. Por que todos acham isso bonitinho no discursos de Trump, e no de Chávez, Maduro ou Jango, ou Fidel é um absurdo comunista? 

Terceiro: o comunismo é um modelo de organização da vida no qual as pessoas trabalham e recebem conforme suas necessidades. Então, se uma família tem cinco filhos, receberá para dar dignidade aos cinco filhos. Se tiver um, receberá para um. Os velhos são amparados, as crianças também. O trabalho não é exploração, é construção solidária da riqueza coletiva. É o reino da liberdade. Ninguém precisa passar fome. A economia é planejada em função das pessoas, e não para enriquecer meia dúzia de empresas e famílias. Então, porque as pessoas temem o comunismo? Porque a ideologia inventa coisas como essa, da caderneta, das filas, sem contar a verdade toda. 

Eu fico pensando nos anos 60, quando eu vivia em São Borja e praticamente todas as famílias que eu conhecia compravam coisas na venda com a caderneta. O comerciante anotava e se pagava no final do mês, ou quando se tinha dinheiro. Havia muita tolerância e praticamente nenhum juro. Então, qual é o problema da caderneta? Era como um cartão de crédito. 

Mas, claro, é preciso tornar isso um problema, um terror, para que as pessoas acreditem que o comunismo é coisa ruim. Mas, se pensar bem, vai ver que a caderneta moderna, o cartão de crédito, é muito mais aterrorizante do que a caderneta cubana. Quem aí já não pagou rios de juros ao banco por ter estourado o limite? Quem ganhou e quem perdeu com isso? Pensa aí. 

Pois em Cuba, apesar de um criminoso bloqueio que dura 60 anos, tem caderneta, tem fila, mas tem comida, não tem criança na rua, tem educação para todos, saúde universal, moradia, segurança, arte, cultura. Em Cuba o salário é baixo sim, mas há pouco que precisa ser comprado. Então, há que ver a floresta, não a árvore.

Sei que os que publicaram o banner não lerão isso. Cuspirão, com ódio, no primeiro parágrafo.  Mas, vou insistindo, como a água, tocando, devagar e insistentemente o rochedo. 



quarta-feira, 27 de março de 2019

A violência de todo o dia será discutida em Audiência Pública




Comunidades da periferia e dos morros de Florianópolis, bem como militantes sociais e juventude estão em processo de luta contra a violência policial que vem recrudescendo dia a dia em Florianópolis. É sabido que a repressão aos pobres não é coisa de hoje, mas nos últimos tempos piorou, com ações extremas no centro da cidade, próximo a bares e espaços de convivência de público jovem, adeptos do Hip Hop e LGBT, marcadamente popular. 

Na segunda-feira (25), moradores do Mocotó, no centro da cidade, bloquearam a rua que dá acesso à Avenida Mauro Ramos, denunciando mortes, surras e até a ordem de toque de recolher na comunidade, o que tem assustado as pessoas e inviabilizado a vida. A Polícia diz que está na luta contra o tráfico e age dentro da lei, mas o relato das famílias é de que a ação violenta é indiscriminada. Nem todo mundo que mora no morro é bandido, dizem. E uma pessoa precisa saber o porquê de estar sendo detida ou surrada. Também questionam que esse tipo de ação fique focado apenas nas comunidades pobres quando é sabido que os traficantes mesmo, os graúdos, os que abastecem as bocas, não vivem nos barracos da periferia. E jamais se soube de uma ação policial violenta em áreas nobres da cidade. Mesmo quando prende algum traficante de peso, tudo é feito dentro dos trâmites, com mandato e tudo. Na comunidade, não. 

Ainda na segunda-feira, enquanto a comunidade do Mocotó se mobilizava numa ação desesperada, já que suas demandas não têm visibilidade, foi feita uma visita ao Batalhão Central da Polícia Militar, onde uma comissão do Movimento Popular, que já vem acompanhando esse aumento da violência policial contra pobres e movimentos sociais,  entregou um documento denunciando as ações da PM e convidando o comando da instituição para participar da Audiência Pública que acontece nessa quarta-feira (27), na Assembleia Legislativa, às 18h e 30min, justamente para debater o abuso policial e a violência. Faixas foram colocadas em frente ao quartel, para informar a sociedade sobre a questão. Logo em seguida o grupo foi até o terminal urbano, para conversar com as pessoas e também convidar para a audiência.

Hoje à noite, na Alesc, os movimentos pretendem discutir em profundidade com todas as autoridades locais e espera-se que representantes da PM e da Prefeitura também participem. A luta social não é crime e as comunidades de periferia não são redutos de ladrões e bandidos. Tanto na luta popular como nos espaços de moradia da periferia da cidade estão os trabalhadores buscando viver com dignidade. À violência do crime não pode se contrapor outra violência, é o que argumentam. 

Os movimentos sociais estão chamando concentração para as 18h e 30 min, em frente à Assembleia. A Audiência Pública começa às 19horas. Esse é um tema que diz respeito a todas as pessoas, pois a continuar o processo indiscriminado da violência, ninguém está protegido. Nem os policiais, nem a população. A proposta do debate é encontrar caminhos de proteção e de paz, afinal, a polícia existe é para proteger os cidadãos. Todos e Todas.  

Moradores do Mocotó fazem barricada

Movimentos Sociais no centro da cidade