sábado, 19 de dezembro de 2015

Não tem arrego para pobres


















Fotos: Coletivo Maruim


Em 2013, por essa mesma época, perto do natal, famílias empobrecidas que viviam na ilha sem mais condições de pagar os altos aluguéis, ocuparam uma área na região da praia de Canasvieiras, um dos espaços mais caros da ilha. O terreno foi reivindicado pelo empresário Artêmio Paludo, que não conseguiu provar na justiça a posse legal de todo o espaço. Ainda assim, as famílias que ocuparam o terreno foram obrigada a sair da área, com a ação sempre truculenta da polícia militar. Quem acompanhou de perto aquela saga sabe muito bem o drama que é para as pessoas que buscam vida melhor na cidade, o despedaçamento de seus sonhos. Naqueles dias, muitos dos ocupantes eram migrantes do interior do estado e de outros estados do Brasil. Todos tentando encontrar na capital - que é chamada de ilha da magia - um lugar onde fincar uma casinha e seguir na batalha renhida pela vida. E esse, talvez, seja o sonho mais difícil de ver realizado. A terra na ilha tem peso de ouro. Perto da praia, então, não é coisa para "o bico de pobre".

A ocupação Amarildo, que colocou à nu o processo de grilagem de terras em Florianópolis, abriu um debate único na cidade. De quem são os terrenos? Como eles foram conseguidos? Foram comprados, roubados, grilados? Foram presente de alguns caciques políticos? Os "amarildos" como ficaram conhecidos os que reivindicavam o direito à morar e produzir, inauguraram um profundo debate sobre o latifúndio urbano, coisa que mais tarde veio desembocar no importante trabalho de investigação sobre a terra do historiador e ambientalista Gert Shinke. Esse trabalho já é livro: " O golpe da Reforma Agrária - fraude milionária na entrega de terras em Santa Catarina" e mostra como os apaniguados dos governantes foram beneficiados com a distribuição de lotes, não só na capital, mas em todo o estado, durante a ditadura militar. Gert escancara as verdades sobre "a propriedade da terra", e tanto, que seu livro até hoje permanece invisível para os meios de comunicação.

Ainda assim, a cidade parece que não se importa mesmo com o destino daqueles que, na divisão do trabalho, ficam com o que é considerado menos nobre. Os empobrecidos, os que vivem nas ruas, os que se agrupam nas periferias, os "empregados" dos que vivem no asfalto, esses seguem sendo tão invisíveis quanto as verdades que pulam do livro do Gert. Eles até podem reivindicar alguns direitos, um aumento salarial ou coisa assim. Mas querer "pegar o que não é seu", aí não pode. Tomar terra improdutiva ou terra grilada da união - portanto passíveis de desapropriação - é considerado pelos "bons cristãos" um crime. Poucos se importam em ver que crime mesmo é inventar um sonho de vida boa na cidade grande e depois escorraçar aqueles que acreditam nele.

Na madrugada de sábado novas famílias ocuparam o mesmo terreno em Canasvieiras, até porque até hoje o tal "dono" não conseguiu provar que ele é seu, e a própria Superintendência do Patrimônio da União garante que a maioria do terreno é mesmo da União. Mas, dessa vez não teve conversa, nem arrego. Em poucas horas, mesmo sendo final de semana, a Justiça provou sua eficácia quando é para agir contra as gentes. Quando o dia amanheceu a ocupação já estava cercada pelo aparato de força do estado. E a velha estória se repetiu. Pouca conversa, bombas de gás, tropa de choque.

Em poucas horas tudo já se acabara. Os que decidiram sair por vontade própria, ficaram na beira da estrada, na estupefação que sempre vem, apesar de tantas quedas. E os que decidiram não sair foram tirados à força e presos. E lá foram eles, mãos na cabeça, como se fossem perigosos bandidos. Sobrou até para os jornalistas que faziam a cobertura da ocupação. Duas fotógrafas do Coletivo Maruim - mídia popular, e um do Diário Catarinense, do oligopólio estadual de mídia, a RBS, também foram detidos com o argumento esdrúxulo de "estarem fora da área permitida para os jornalistas" (????). 

Desta vez, não se permitiu que o acampamento ficasse ali, próximo ao balneário mais amado pelos hermanos argentinos, "incomodando" os turistas. E a ocupação "Guerreira Dandara" foi desfeita.  
Para os que caminham pela cidade em busca de um canto onde encostar a cabeça, a batalha por um chão recomeça. Ou uma encosta de morro, ou uma favela, ou algum aglomerado irregular na beira de um esgoto. E para os que olham com olhos acusadores essa parece a melhor solução. "Que vão para qualquer lugar, menos para as áreas nobres, incomodar. E que vão trabalhar porque deve ser tudo vagabundo".

E a procissão dos trabalhadores sem-nada segue enquanto a cidade se prepara para o natal e para o ano novo. Vai ter fogos na Beira-Mar e champanhe em Jurerê.  É certo que se algum desses ocupantes estiver vendendo cerveja no isopor, pode até ser que ganhe um sorriso.  Dandara, a negra que reinou em Palmares, só é bem-vinda nas gravuras de livros. Na vida mesma, não. Se por acaso se levanta com um rosto real, aí recebe toda a força da repressão. Não tem arrego para os pobres. Esse é nosso ordinário mundo.    




quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Professores, mais um batalha solitária

































Fotos: Sinte e da Internet


A Assembleia Legislativa de Santa Catarina deu ontem mais um show, colocando a repressão para cima dos trabalhadores, exatamente como fez na sessão que alterou a previdência dos trabalhadores públicos. A votação dessa semana, também realizada em regime de urgência, garantiu ao governador Raimundo Colombo mais uma retirada de direitos dos professores e novo arrocho sobre a categoria que cuida da educação dos filhos desse estado.

Numa sessão tumultuada pela presença da Polícia Militar, os deputados aprovaram com 26 votos favoráveis e 12 contrários, o Projeto de Lei Complementar nº 50/2015, enviado pelo governo do Estado, que altera o plano de carreira dos professores e incorpora a regência de classe. Essa incorporação faz com que os professores fiquem mais uma vez sem aumento de salário. Na mesma ocasião, os deputados catarinenses aprovaram o Projeto de Lei nº 517/2015 que disciplina a admissão de professores por prazo determinado (os ACTs), agora com a autorização para que o governo contrate de professores horistas, precarizando ainda mais a situação dos mais de 20 mil professores que atuam como ACTs.

Durante todo o dia a categoria dos professores manteve mobilização na Assembleia, vivendo situações dramáticas de agressão, violência e tristeza profunda. Segundo os professores essas mudanças se configuram no maior ataque da história ao magistério e à educação pública no Estado. "A jornada de trabalho flexível, a contratação dos ACTs como trabalhadores/as horistas, a reconfiguração (descaracterização) da hora/atividade, o congelamento salarial decorrente da incorporação da regência, a farsa da descompactação, etc., etc., terão impactos profundos na qualidade do ensino oferecido em nossas unidades e nos nossos níveis de vida. Os ACTs, em particular, poderão ser empurrados para uma situação de penúria, uma vez que nem mesmo a menor menção à remuneração mensal mínima será mantida no ordenamento jurídico do Estado", registraram.

O ataque aos professores é mais um dos passos da reforma administrativa que está em curso e que já retirou mais direitos dos trabalhadores. Depois dessa vitória do governo - que tem maioria folgada no parlamento - é bem possível que possam vir novas propostas que visem retirar direitos como os triênios, licenças-prêmio e, principalmente, outros que coloquem em risco o caráter público da educação básica estadual.

Não é segredo para ninguém que as velhas metas do banco Mundial para a educação seguem sendo as regras balizadoras para os governos da periferia capitalista, e a proposta mais defendida pelos banqueiros é a da privatização da educação. Apenas os que puderem pagar poderão aceder ao ensino de qualidade. Aos filhos dos trabalhadores restará uma educação pública  sucateada, gerenciada por organizações sociais, desligadas do governo e com professores precarizados.

O dramático nessa história é que a mídia comercial - que funciona como um braço armado do poder instituído, porque despeja informações mentirosas sobre milhões de pessoas - trata a questão como uma disputa corporativa: uma batalha dos professores contra o governo. O que é uma meia verdade. A luta é corporativa sim, porque o trabalhador que tem apenas sua força de trabalho para vender precisa defender os direitos que, inclusive, garantiu com luta e sangue. Mas, o que está em questão nesse embate é a educação mesma, coisa que deveria mobilizar toda a sociedade catarinense.

Essa discussão sobre o Plano de Carreira já tinha sido motivo de muito debate durante a última greve dos professores, e também foi tratada com um tema particularista, mesmo entre a própria categoria. É fato que muitos trabalhadores também ainda não conseguem vislumbrar o caminho muito além da ponta do nariz e isso acaba enfraquecendo as lutas. A batalha pela educação de qualidade não é uma luta só dos professores, ela deveria contar com o apoio concreto de todas as categorias, afinal, se a coisa já está difícil com a educação que se tem conseguido garantir com a luta renhida, imaginem se tudo for privatizado ou terceirizado?


Ontem, nas lágrimas dos professores, espelhava-se a dor de uma gente que tem resistido bravamente para garantir qualidade na educação dos catarinenses. Enfrentaram a força da polícia, foram feridos, machucados e derrotados. Agora, voltarão para suas escolas e recomeçarão, porque os que ali estavam, frente-a-frente com todo o poder (militar, político e econômico) sabem que essa é só mais uma batalha. Recolher as armas, cuidar dos feridos, avaliar e seguir em frente. A educação pública, gratuita e de qualidade não é um sonho. Ela é possibilidade real e vai chegar. Porque existem pessoas como esses educadores que ocuparam ontem a Assembleia Legislativa, os imprescindíveis.


Florianópolis marchou contra o golpe





Centenas de pessoas tomaram as ruas da capital de Santa Catarina no ato público contra o golpe, configurado pela abertura de um processo de impedimento da presidente Dilma Roussef que, segundo análises de boa parte dos juristas brasileiros, não tem sustentação legal. Marcharam pessoas de vários movimentos sociais, partidos políticos, independentes, com a manifestação de pautas diversas, desde a defesa aberta da presidente e do PT, até os tradicionais "fora todos". Foi um ato alegre que trouxe também para a rua muitos militantes que andavam afastados das mobilizações nos últimos tempos. As investidas da direita em todo o continente estão colocando em alerta todos aqueles que entendem que a vida no Brasil não pode retroceder, ainda que haja muita crítica ao governo petista. Como as forças conservadoras também estão ocupando as ruas - embora com menos força nas últimas manifestações - o embate político e a luta de classe começam a ficar mais visíveis.  

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Florianópolis oficializa o Dia do Saci e seus amigos



Valentes lutadores da cultura local e nacional

Corria o ano de 2004, num festival de primavera promovido pelo Sintufsc, sindicato no qual atuavam como diretoras e jornalista, quando Raquel Moysés, Elaine Tavares e Miriam Santini de Abreu conheceram o trabalho da SoSaci, Sociedade dos Observadores de Saci. A entidade, com sede no interior de São Paulo, então já desenvolvia uma verdadeira batalha cultural e anticolonial na tentativa de discutir a cultura nacional em contraposição à invasão dos festejos do Halloween no país.

Como todos sabem o “raloím” é uma festa tradicional nos Estados Unidos, comemorada no dia 31 de outubro que, aos poucos, foi invadindo as escolas e o comércio brasileiro. E, como o mundo caipira reverencia muito o Saci, foi primeiro no interior de São Paulo – em São Luiz de Paraitinga - que começou essa proposta de, no nosso 31, colocar foco no gurizinho negro, de uma perna só, que é responsável por estripulias  e traquinagens, além de ser o protetor das florestas e o amálgama das tradições étnicas formadoras do país: o índio, o branco e o negro. Depois, a festa do Saci Pererê foi se espalhando, congregando outros mitos que representam cada espaço particular.

Em Florianópolis a luta pela cultura nacional e local começou a ser feita pelo Sindicato dos Trabalhadores da UFSC, em 2004, e depois que as três mulheres que iniciaram os festejos saíram da entidade foi incorporada pela Revista Pobres e Nojentas, que passou a promover a festa. Assim, todo dia 31 de dezembro, a Pobres realiza o Dia do Saci e seus amigos no centro da cidade, contando com a parceria de vários militantes da causa cultural, outros sindicatos e movimentos sociais. A ideia é levar à comunidade o debate sobre a cultura brasileira, mostrando que aqui também temos lindos mitos que podem ser celebrados com festa e beleza. No caso de Florianópolis é assegurada a participação das bruxas, muito bem caracterizadas por Franklin Cascaes, que são elementos míticos tradicionais  da vida do litoral catarinense.

Assim, a cada ano que a festa se realizava apareciam novos parceiros para dar conta das atividades e também surgia o desejo por parte da população que passava pela rua de garantir a oficialização do festejo, para que a discussão sobre os mitos nacionais pudesse também ser incorporada pelas escolas e entidades sociais. “Não bastava mais lembrar as bruxas e o Saci só no dia 31. Era preciso levar esses personagens ao conhecimento das crianças, para que pudessem conhecer mais a cultura nacional e local”, lembra Raquel Moysés. Assim, começou a ser construído um abaixo-assinado para ser encaminhado à Câmara de Vereadores pedindo que o 31 de outubro entrasse para o calendário oficial.  

Imediatamente o vereador Lino Peres (PT) assumiu o compromisso de apresentar um projeto para tornar esse dia o Dia Municipal do Saci e seus amigos, a exemplo do que já existe em muitas outras cidades do Brasil, como São Luiz do Paraitinga (SP), São Paulo (SP), Vitória (ES), São José do Rio Preto (SP), Uberaba (MG), Fortaleza (CE), Guaratinguetá (SP), Embu das Artes (SP), Poços de Caldas (MG), Independência (CE). Também o Estado de São Paulo já instituiu o dia oficialmente.

A proposta foi feita, o projeto tramitou e nesse dia 14 de dezembro foi votado na Câmara Municipal da capital catarinense. Agora, a capital se junta, de maneira oficial, a essa luta pela cultura nacional e local, e o Dia do Saci e seus amigos passa a integrar o Calendário Oficial de Datas e Eventos da Prefeitura de Florianópolis. “Houve, por parte dos vereadores, sensibilidade em relação à valorização dessa figura ilustre do folclore popular, um símbolo da síntese de etnias que são base da nação brasileira: o índio, o negro e o branco. O Saci e seus amigos, como o Boitatá e o Curupira, são parte do folclore brasileiro, em contraponto à bruxa da festa do Halloween, que tem raízes irlandesas e virou dia de frenéticas compras nos EUA e também no Brasil, em um contexto bem diferente das Bruxas da Ilha de Franklin Cascaes, que simbolizam bela referência de Florianópolis e região”, comemorou o vereador Lino, depois da votação.

Não foi sem razão que a terça-feira amanheceu diferente, com rajadas de vento “suli” e redemoinhos varrendo as ruas. Dava para ver no céu emburrado a passeata das bruxas, tocando, com suas vassouras, uma penca de Sacis, os quais pulavam de nuvem em nuvem, em enlouquecida alegria.


Eita...


segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Chegando o natal



Vai chegando dezembro e com ele todo o frisson do natal. Criada por uma mãe cristã o natal sempre foi um dia bonito pra mim. Hora de estar com a família, participar da missa do galo e depois voltar para casa, onde estariam os presentes deixados pelo bom velhinho. Mas, apesar de ganhar presente ser bom, lá em casa, o que sempre ocupou o centro da cena foi o presépio. A mãe gostava de montar a cena do nascimento de Jesus logo no fim de novembro e toda família participava. Por isso, ao longo da vida, me fiz presepista, e o natal para mim é celebrar o aniversário de Jesus.

Tenho horror a ideias totalitárias de povo escolhido, que nos dividem e matam. Penso que os deuses nada mais são do que redes que nos amparam quando tudo a nossa volta desaba. E não é sem razão que os criamos, afinal, somos tão frágeis, tão afeitos a desmoronamentos e tão precisados de muletas que nos ajudem a andar nessas horas noas.

Assim, nesse universo do sagrado, gosto de Jesus. Encantam-me as parábolas contadas pelos evangelistas, encantam-me seus ensinamentos sobre o amor, o perdão, a alegria, a partilha. Pouco se me dá se existiu ou não. Gosto de ler suas palavras e o tenho como um bom amigo imaginário, com o qual entabulo longas conversas.

Assim que no natal eu preparo seu dia, como um dia mesmo de aniversário. Não espero Papai Noel, muito menos presentes. Espero o gurizinho palestino, possivelmente tão igual a esses que hoje vivem lá naquelas terras, com graúdos olhos de azeviche e pedras na mão, enfrentando tanques. Monto o presépio e o deixo ali, em meio aos bichos, deitado na caminha de palha, com os pezinhos pra cima, balançando no ar.

Mas, outro dia ouvi de um amigo sobre outra tradição que existe na cidade vizinha, Santo Amaro, e me encantei. Diz ele que lá, na noite de natal,  o povo deixa, do lado de fora da casa, um pouco de capim para alimentar o burrinho que vem, conduzido por José, trazendo Maria com o bebezinho dentro dela. Achei de uma delicadeza abissal. Pensar que alguém, diante da cena tão grandiosa do nascimento do Cristo, tenha se preocupado com o bem estar do burrinho, faz assomar em mim profunda ternura.

Assim que esse ano, além de montar o presépio, também vou deixar o capim, incorporando à tradição esse cuidado com o animalzinho. E tal como o riso do menino, que sempre escuto, esperarei ouvir ainda o mastigar cadenciado do burrinho que permitiu que Jesus chegasse em segurança até a manjedoura. Essa criatura doce que trouxe até Belém o casal de refugiados, os fugitivos. E, para o meu deusinho vou contar do Maicon, esse guri de Santo Amaro que me contou essa linda história e que agora partilha comigo o sonho da Pátria Grande. E, juntos, entre vinhos e risadas, vamos vibrar no amor e na ternura, para que venham bons e alegres dias para todos nós.

Que venha o natal...