sexta-feira, 1 de maio de 2020

Ação Civil Pública em defesa das comunidades de Periferia


O Instituo Igentes, junto com a Associação dos Moradores do Frei Damião, entrou com uma Ação Civil Pública contra o município de Palhoça, o Estado de Santa Catarina e a União Federal exigindo ação imediata em defesa da vida dos mais de doze mil moradores da região do bairro Frei Damião. Esse bairro, que é um dos maiores do município, ocupa uma área em torno de 30 mil metros quadrados. Ele foi formado a partir de uma ocupação iniciada ainda na década de 1980. E, apesar de estar localizado bem ao lado do bairro Pedra Branca, próximo a Unisul, o contrataste entre os dois é gigante. 

É possível perceber que enquanto os investimentos da prefeitura são massivos no bairro nobre perto da universidade, de alta classe, o Frei Damião está completamente abandonado, provavelmente por ser uma das comunidades mais empobrecidas de Santa Catarina. Lá, não há fornecimento regular de água, muito menos de energia elétrica. Conforme o Igentes, a maioria das ruas não tem pavimentação, e o esgoto corre a céu aberto, pelas ruas ou valas improvisadas e há casas que sequer possuem banheiro ou vaso sanitário. Também existem diversas famílias que vivem em coabitação, ou seja, várias famílias morando no mesmo barraco, amontoados em pequenos cômodos, espaço seguro para proliferação de um vírus como o da Covid-19. 

Conforme um levantamento feito pelo Sebrae em 2013, o bairro possuía 1.346 casas e barracos, todos irregulares, sendo que a maioria dos moradores tinha renda de 1/3 do salário mínimo.  Hoje, conforme a Associação de Moradores, já são mais de 12 mil pessoas vivendo no Frei Damião, sendo que 1.612 são crianças de zero a 12 anos. Pelo menos 943 destas famílias dependem de cestas básicas, que agora durante a pandemia estão sendo distribuídas de forma solidária e voluntária por movimentos sociais, visto que o município não tem qualquer ação para o bairro. Além disso, estão registradas 197 grávidas, 250 idosos, doentes graves com HIV, lactantes e deficientes físicos. 

Não bastasse a situação da comunidade Frei Damião ainda existe a região da Beira Rio, também em Palhoça, próxima ao bairro, com mais  114 famílias, 132 crianças, 13 idosos, 206 adultos, 2 grávidas, 19 doentes, 4 deficientes, 4 casas sem banheiro, totalizando 351 pessoas, também vivendo em barracos sem estrutura alguma. Essas também são famílias que não têm condições de se defender diante da pandemia do coronavírus, daí a ação responsabilizando o Estado.  
Com base na Constituição federal que determina o direito à vida, à moradia digna, saúde e educação, a ação civil busca garantir que essas famílias possam ser protegidas nesse momento de emergência sanitária que vive o país, afinal, além do número alto de pessoas doentes, a situação de pobreza gera desnutrição piorando ainda mais as condições de imunidade. Sem água encanada, por exemplo, como esses milhares de trabalhadores podem manter as condições de higiene que evitam a disseminação do vírus? 

A ação civil aponta a responsabilidade do estado de Santa Catarina com essas pessoas que precisam ter seus direitos assegurados. Como a maioria dos moradores não tem trabalho formal, a situação é de desespero. Falta comida, falta saneamento e  falta cuidado. 

Sendo assim, visando proteger a vida da comunidade , a ação requer as seguintes ações:

1. Que o Município de Palhoça, o Estado de Santa Catarina e a União, em até 5 dias, após sua citação, adotem medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19, no bairro Frei Damião e Beira Rio, Palhoça/SC, com a redução dos fatores de propagação do vírus, implementando medidas sanitárias, 
a. Construção de banheiros nas casas em que não há; 
b. Disponibilização de água nas residências que não possuem água encanada; 
c. Fornecimento de máscaras, álcool gel e sabão para todas as pessoas e residências; 
d. Plano de saneamento para todo o bairro do Frei Damião e Beira Rio, solucionando o esgoto a céu aberto. 

2. Que o Município de Palhoça, o Estado de Santa Catarina e a União apresentem plano de ação, em relação ao bairro Frei Damião e Beira Rio, em até 5 dias, após sua citação, que garanta: 
a. Medidas de isolamento na forma dos protocolos das autoridades sanitárias; 
b. Realização de campanha informativa acerca da Covid-19; 
c. Levantamento de pessoas com Covid-19 ou com suspeitas, na comunidade Frei Damião e Beira Rio; 
d. Levantamento de leitos em internação e em UTI que possa atender a Comunidade do Frei Damião e Beira Rio; 
e. Transporte dos doentes e grávidas da comunidade Frei Damião e Beira Rio nas consultas, exames e internação, bem como fornecimento de remédios aos doentes crônicos, com Covid-19 ou doenças respiratórias;
f. Garantia de testes aos suspeitos da Covid-19; 
g. Designação de equipe médica, específica para a comunidade do Frei Damião e Beira Rio, com local de atendimento e visitas domiciliares, quando necessário; 
h. Designação de equipe de assistência social para a comunidade do Frei Damião e Beira Rio, garantindo o fornecimento de cestas básicas para as famílias que necessitam;
i. Providenciar quartos de hotel, alojamento ou casa com alimentação e higiene, para as pessoas dos bairros Frei Damião e Beira Rio, que, segundo critério das autoridades sanitárias, necessitarem se ausentar de casa para ficar em quarentena visando evitar o contágio da Covid-19, em condições dignas e em local próximo aos seus familiares; 
j. Instalação de rede de internet, com acesso livre wi-fi, de forma gratuita, com abrangência em todo o bairro Frei Damião e Beira Rio, para que a comunidade possa ter acesso às informações acerca da Covid-19, bem como para que os alunos possam acessar as aulas online, garantindo o direito à educação; 
k. Instalação de salas com computadores, para acesso público, para quem não tem celular/computador, para que a comunidade possa ter acesso às informações acerca do Covid-19, bem como para que os alunos possam acessar as aulas online, garantindo o direito à saúde e educação, garantido o devido distanciamento e medidas de higiene na forma dos protocolos sanitários.

Segundo a advogada Celina Duarte Rinaldi, do Instituto Igentes, essa ação será usada como exemplo para outras ações do mesmo tipo envolvendo outras comunidades de periferia que passam pela mesma situação de descaso no estado. 

quarta-feira, 29 de abril de 2020

O tráfico, a dor e o Mocotó





O Mocotó é uma das primeiras comunidades de periferia de Florianópolis, ela nasceu quando os negros e pobres foram tirados do centro numa operação de “limpeza” da cidade que começava a crescer. Sem ter como bancar aluguéis ou cumprir a lei sanitária que obrigava a ter banheiro em casa, as famílias buscavam, na ocupação dos morros, o espaço para viver. Lá, já vivam outras famílias, de fugitivos da escravidão ou ex-escravos, que igualmente não encontraram lugar no centro, onde começavam a se erguer os sobrados da gente rica. O pé do morro onde fica o Hospital de Caridade, lá pelo meio do 1800 era chamado de Toca, e ali ia crescendo a comunidade. Com o passar do tempo outros espaços no entorno do Morro da Cruz foram sendo tomados, prioritariamente pelas famílias negras, mas também com brancos pobres. 

Não é sem razão que a cidade chame os morros de “espaço da criminalidade”, porque, na verdade, esse sempre foi o nome dado a quem não participa do grande banquete das famílias abastadas. Ser pobre parece ser potencialmente bandido. E é por isso que ao longo dos tempos esses lugares onde abundam as moradias precárias, o esgoto a céu aberto, as vielas, os trabalhadores, são também espaço da repressão. Assim, sucessivamente e historicamente, é nessas comunidades onde a polícia vai buscar os bandidos, e onde a lei parece não fazer qualquer sentido. São comuns os relatos de invasões de casa, sequestro de pessoas, assassinatos, agressões, violências. E tudo fica respaldado porque, afinal, "são bandidos".  

Ontem (28), enquanto noticiava uma manifestação no Morro do Mocotó contra o assassinato de três jovens da comunidade, a jornalista da televisão encerrava a nota dizendo: “a polícia informa que os três mortos são ligados ao tráfico de drogas”. Opa, então tá! Aí sim! São traficantes, então tudo se justifica. Já para as famílias que montaram barricadas na Mauro Ramos para denunciar e expressar sua dor e seu protesto, aqueles jovens tinham nome, sobrenome, história, sonhos. E mesmo que fossem ligados ao tráfico, eram o peixe miúdo, aquele que surge da necessidade ou do ódio.

Sim, há bandidos no Mocotó, no Mont Serrat, no Horácio, assim como há bandidos na Beira-Mar, na Bocaiuva, na Trompovski. Mas, nesses lugares chiques a polícia não chega atirando, sequer chega. Nos espaços onde vivem à larga os donos do tráfico há advogados de plantão e malas de dinheiro prontas para agir se necessário for, mas nunca é. Porque os peixes grandes não são tocados. Sempre é mais fácil exterminar a raia miúda, que não tem nada por ela a não ser os seus corpos em rebelião.

Eu lembro que há alguns anos pegou fogo no Hospital de Caridade. Era de noite. E mesmo antes da chegada dos bombeiros, os jovens da comunidade do Mocotó já estavam lá tirando pessoas, ajudando a apagar o fogo e ali ficaram pé até que tudo estivesse debelado, realizando um trabalho de gigantes. Naqueles dias a imprensa subiu o morro para contar dos atos heroicos da rapaziada. Provavelmente os mesmos jovens que são mortos pela polícia nas noites de calmaria. E os que foram salvos por aquela gente invisível agradeciam emocionados. Provavelmente os mesmos que hoje fazem muxoxo diante da fala da apresentadora de televisão. 

O tráfico de drogas não é coisa para ser banalizada. Ele é responsável pela destruição de tantas e tantas vidas. Mas, já vai longe essa política de extermínio dos jovens negros das comunidades de periferia. Se essa fosse a política correta, então já era para ter acabado o tráfico. Mas, por que a polícia mata e tudo segue igual? Essa é uma pergunta de fácil resposta. Porque a fonte do tráfico não está na favela. Ali vicejam os aviões e os gerentes de baixo clero. Mesmo os que têm seus barracos cheios de pequenas riquezas não chegam sequer aos pés dos verdadeiros traficantes. Logo, a abordagem policial parece não ter como foco o fim do tráfico. Na verdade, as ações contra a raia miúda são para fingir que há o enfrentamento do problema. Não há. E nessa guerra de extermínio, também os policias - que são trabalhadores -  acabam sendo vítimas. Seja quando tombam nos confrontos, seja quando se transformam em criaturas sem parâmetros éticos. A dor sempre fica para os “de abajo”, ou alguém já viu algum dia um traficante de peso ser assassinado ou mesmo preso? Eu nunca vi. 

Ontem, no Mocotó, as famílias se manifestaram tacando fogo na rua. Sabem que não há caminho negociado. Não são ouvidas. A única maneira de serem vistas é na manifestação coletiva, na rua. 

Ontem eles tacaram fogo nos pneus para dizer basta. É a única forma de abrir diálogo. Alguém aí vai dizer: tá com pena? Leva pra casa. É porque a maioria das gentes acredita que a solução dos problemas passa pela ação individual. Não, não adiantaria levar para casa a juventude do Mocotó ou de qualquer outro lugar de periferia do país. Porque o problema não está na pessoa. Está no sistema.  É essa forma de organizar a vida que gera a violência. É da natureza do capitalismo manter  a bota sobre a cabeça dos empobrecidos. É da natureza do capitalismo manter uma periferia no limite da vida, para que as pessoas possam ser melhor exploradas. É da natureza do capitalismo fazer do narcotráfico um dos pilares da indústria da morte – que vende armas, equipamentos de segurança e gente. 

Ontem, as famílias do Mocotó botaram fogo no meio da rua para fazer ouvir seu grito. As mesmas famílias que limpam as casas, lavam a roupa, fazem a comida, atendem no comércio, nas creches, nas escolas e ainda salvam vidas quando confrontadas com a tragédia do outro. Como um dia fizeram, salvando os internados no hospital privado mais famoso da cidade.  As mesmos que são esquecidas no dia seguinte quando todos já estão confortavelmente instalados em suas casas quentinhas. 

“Ai, que romântico, quero ver se um negrinho desses um dia tirar a vida de um familiar teu”, gritam os de sempre. Sim, será trágico, e ainda assim não será culpa dele. Será do sistema que o engendrou. Enquanto isso, alguns “branquinhos” seguirão tirando a vida de muitos da classe média e alta sem que ninguém lhes aponte o dedo. 


segunda-feira, 27 de abril de 2020

Os trabalhadores da saúde


Nossa mente colonizada está bem acostumada à figura do herói. E ela vem associada aos tipos que, ou são deuses, ou recebem um superpoder por conta de alguma circunstância. Mas, o herói verdadeiro é aquele que sem nenhuma ligação divina ou poder adicional, enfrenta coisas muito maiores do que ele em nome de um bem comum. Por isso no nosso panteão de heróis temos figuras humanas falhas, fracas, contraditórias e tudo mais. Porque é o momento histórico que faz aparecer o herói. Ele pode ser uma criatura comum até que as condições históricas lhe cobrem um ato que sobrepassa suas forças, um ato de gratuidade, para além de qualquer recompensa. 

Têm aqueles que escolhem percorrer um caminho heroico. Entrar em uma batalha, ajudar numa tragédia, curar em meio à guerra. E têm os que são pegos no meio do furacão sem que lhes reste alternativa senão atuar em consequência. É o que estamos vendo agora, no campo do cuidado da saúde. De repente, em meio a uma pandemia, enfermeiras e enfermeiros, que até ontem eram seres invisíveis nos hospitais e centros de saúdem assumem o centro dos acontecimentos. Quem fica doente quer um médico, e é esse profissional que assume o foco da atenção. Mas, quem fica 20 ou 30 dias internado em um hospital sabe muito bem que é a enfermeira, os assistentes de enfermagem, o pessoal da cozinha e da limpeza os que vão  lhe dar o conforto, garantir o remédio na hora certa, a limpeza, o alimento, o cuidado.  

Diante da avassaladora crise do sistema de saúde causada pela infecção gerada pelo coronavírus, são esses profissionais os que assomam como anjos e heróis. 

Mas, uma olhada cuidadosa para toda essa gente mascarada que luta pela vida dos outros e já vamos perceber que eles fazem parte de uma classe muito específica: a dos trabalhadores. Não são filhos de deuses nem foram picados por uma aranha rara. São pessoas que amargaram anos de estudo, muitas vezes em condições ruins, e que para sobreviver precisam mais do que um emprego. No geral, a enfermeira trabalha em dois ou três lugares para poder juntar um valor considerado digno para manter uma família.  Ou se olharmos para os técnicos e o pessoal de apoio, vamos ver que cumprem oito horas diárias por um salário que mal cobre o mínimo. E esses, sequer têm a opção dos segundo emprego.

Lembro que durante anos, quando na direção do sindicato da UFSC, lutamos para garantir às seis horas como jornada da enfermagem. Entendíamos que esse é um trabalho duro, que exige muito, física e emocionalmente, e que as trabalhadoras precisavam de um período do dia para descansar e repor as energias. Por isso, causava estupor quando as companheiras vinham dizer que precisavam das seis horas para poder trabalhar em outro hospital, perfazendo assim 12 horas de trabalho diário. Ou seja, não era para descansar, mas para trabalhar mais, porque o salário é baixo e não vence pagar as contas. Algumas delas ainda faziam trabalhos extras de plantões. Um extenuante cotidiano, lidando, de quebra, com a morte e a dor. Já naqueles dias podíamos vislumbrar a jornada heroica dessa  gente que, ao final, é quase invisível como no geral são os trabalhadores de qualquer lugar. 

Agora, com a pandemia, as enfermeiras, enfermeiros, auxiliares técnicos e trabalhadores de apoio estão no centro da batalha. São para eles as lágrimas de agradecimento, os aplausos, a gratidão. Mas, o que estão fazendo é o que fazem todos os dias nos hospitais: garantindo que as vidas sejam cuidadas e salvas. E seguem fazendo isso nas mesmas condições. Sem os equipamentos de proteção adequados e sem salário digno. Provavelmente a maioria desses profissionais sai de um hospital para outro, como sempre, enfrentado pressão ao cubo. 

Assim que se agora eles e elas cumprem uma missão heroica em meio da pandemia, é preciso jamais esquecer que esse é o seu cotidiano. E que, quando tudo isso acabar, quando colocados diante de uma greve de trabalhadores da saúde, por exemplo, possamos lembrar o que esse pessoal representou nesses tempos duros. Ruben Alves dizia que a gente nunca percebe um órgão do corpo até que ele cause dor. E assim poderíamos pensar em outros aspectos da vida. Talvez, até ontem, muitos de nós não tivéssemos olhado para o fazer desses profissionais. Mas, agora, vimos. E não dá para “desver”. Esse povo que trabalha no setor da saúde está enfrentando com galhardia sua hora histórica. Que não seja esquecido. Nem agora, nem depois.