sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os vereadores de Florianópolis e rapinagem






Nosso mercado público, transformado para sempre...














Quem esteve na votação do Plano Diretor, em dezembro de 2013, no apagar das luzes do ano, sabe o que viu. No espaço dos vereadores, uma turba inquieta. Diante das falas de Afrânio (PSOL), Lino (PT) e Pedrão (PP) exigindo novas audiências públicas, uma vez que o projeto estava todo alterado pelo IPUF, os demais vereadores esbravejavam, balançavam as cabeças e sapateavam. Não houve acordo. O projeto haveria de ser votado. Não importava que o mesmo tivesse sido alterado, não importava que ninguém soubesse sobre o quê tratavam as quase 700 novas emendas, nem importava que não tivessem sido entregues os mapas. A ordem era aprovar. E assim foi, apesar dos protestos nas galerias. Com o voto contrário dos três citados vereadores, os demais votaram de olhos fechados, contra a população.

A pergunta que fica é: se votaram contra a população, a qual deveriam representar, estavam a favor de quem? A quem interessaria aprovar um Plano Diretor que descaracteriza totalmente a cidade, levando-a para um caminho sem volta, ao estilo Miami? A quem interessaria a possibilidade de construir espigões e seguir especulando com a paisagem e com as belezas naturais?

Pois a operação da Polícia Federal conhecida como “Ave de Rapina” aponta algumas respostas para essa nossa questão. Projetos de menor envergadura e de interesses menos custosos foram votados com o tradicional pagamento de propinas. Relações perigosas entre os vereadores e empresas, outra vez indo contra os interesses da população. Pagamentos variando de 5 a 100 mil reais para funcionários públicos e vereadores, fraudando contratos públicos e mudando as leis, garantindo vantagens para as empresas “amigas”.

Dos 23 vereadores, um está preso, 12 já foram indicados pela polícia e dois ainda estão sob investigação, o que mostra a “qualidade” da Câmara Municipal.

É fato que sempre me surpreendeu a eleição de determinadas pessoas, com número expressivo de votos. Figuras que nunca tiveram qualquer atuação comunitária, que nunca foram vistas em qualquer situação em que estivesse em jogo a vida da cidade. Ainda assim, lá estavam, eleitas para representar os cidadãos de Florianópolis. No rastro de boa parte das campanhas, o que conduzia eram as benesses, ou a simples compra de votos, para ser mais clara. No Brasil patriarcal, um favor, uma caçamba de brita, uma camiseta podem ser moeda de troca, sem maiores esforços.

- Por que votou no fulano?

- Ah, ele me deu tal coisa! – Ou: Ele é amigo do meu pai. Ou ainda: É meu amigão!

Mas, afinal, o que faz alguém que vende seu voto para vereador, ou que vota simplesmente por amizade? Pois bem, coloca na Câmara Municipal alguém que vai definir o destino da cidade, o que, em última instância decide os destinos de todos nós. Os vereadores, apesar do quem pensa a maioria, não é eleito para resolver o “nosso” problema pessoal de falta de empregou, ou o calçamento da “nossa” rua, ou a arrumação do “nosso” esgoto. Ele vai decidir sobre como a cidade vai ser no seu conjunto, incidindo sobre a vida de todos.

Foi assim com o projeto Cidade Limpa. Pode parecer uma coisa boba isso de tirar ou por um outdoor, ou a instalação de radares, que são os objetos da investigação policial. Mas não é. O projeto Cidade Limpa tem a ver com como a cidade se organiza, como enfrenta a criação de necessidades induzidas pela propaganda, como se relaciona com a lógica do consumismo. Os radares dizem respeito à segurança das pessoas no trânsito, podem significar a diferença entre a vida e a morte. São coisas sérias e importantes. E olha como foram tratadas? Como uma moeda de troca de favores. Um voto por dinheiro. Ou seja, muitos desses vereadores reproduzem neles mesmo a idêntica fórmula que usam para ganhar os votos. Tudo se resume a um lucrativo mercado no qual só eles saem ganhando.

Um ou outro realiza seus compromissos rituais, aprova um calçamento aqui, uma obra ali, para ficar bem com seus eleitores. Mas o que fazem por trás deles – e agora vimos que com lucro pessoal - é o que realmente influi na vida de cada um.

Outro dia vimos nas redes sociais a indignação de muitos moradores de Florianópolis com o novo Mercado Público, que agora, depois da licitação levada a cabo pelo prefeito César Souza Junior , está completamente descaracterizado. Empresas do tipo Bobs, ou de sorvete italiano, ocupam as portas que antes vendiam panelas, comidas típicas ou artesanato, coisas possíveis de serem desfrutadas por qualquer cidadão. A cara típica da cidade não existe mais naquele lindo prédio amarelo, agora um pastiche da cultura local, exposto apenas para os turistas que podem pagar até seis reais por uma bola de sorvete. Pois todo esse processo deveria ter passado pela Câmara de Vereadores. Não passou. E entre os “nobres” poucos levantaram a voz contra a forma atabalhoada como foi conduzida o processo. Omissão da maioria, calada pelos interesses.

Agora, feito o estrago, e expulsos os comerciantes que já eram patrimônio imaterial da cidade, as pessoas se dão conta do que perderam. Pois naqueles dias em que os movimentos sociais denunciavam o absurdo do processo, que não levou em consideração os aspectos culturais, a maioria apontava em acusação os que não queriam o “progresso” da cidade. E o progresso veio, pela omissão daqueles que deveriam ser os guardiões dos interesses da comunidade. O que fazer? Tudo foi destruído!

O mesmo se deu no processo do Plano Diretor, que haveria de ser investigado também. Os vereadores Lino, Afrânio e Pedrão eram apontados como os que queriam igualmente barrar o progresso da cidade, travando a aprovação do plano desconhecido, ou quem sabe muito conhecido pela maioria que o aprovou. O fato é que a vida da cidade toma outro rumo com esse plano. Bairros como o Estreito e o Saco dos Limões terão suas populações adensadas de maneira brutal, mudando radicalmente o cotidiano, com implicações na mobilidade e na cultura. E todas essas mudanças são provocadas pela ação dos vereadores que sustentam a irracionalidade que vem do executivo.

Agora a investigação sobre os componentes da Câmara está a todo vapor. Um ou outro acabará preso, outros se safarão, e a vida seguirá seu curso. Resta saber se a população de Florianópolis também vai seguir sua vida como se nada tivesse passado, como se não importasse muito um vereador cair na malha da corrupção. Tudo pode ser facilmente esquecido com algum novo escândalo.

Mas pode ser que esse caso sirva como uma pedagogia, a construção de um caminho. Pode acontecer de as pessoas começarem a entender que o voto num vereador é coisa que tem reflexos duradouros na vida de todos. Que o voto não pode ser comprado por um simples churrasco, ou uma carrada de areia. O vereador precisa ter o compromisso não com a rua ou o bairro, mas com a cidade inteira. Ele vai definir coisas que fazem parte da grande política, que colam no cotidiano da gente, que modificam as paisagens, que mudam uma cultura, um modo de vida. Imaginem se os vereadores alteram o zoneamento de um lugar de residencial para comercial. Muda tudo! A coisa é muito séria. É claro que o voto num vereador não define a vida, mas nesse regime representativo no qual vivemos têm a sua importância. Daí o cuidado.

Não tenho muitas ilusões quanto às punições aos envolvidos na operação Ave de Rapina. Como o que aconteceu na famosa “moeda verde”, quando empresários conhecidos foram envolvidos e nada aconteceu, com eles aí, circulando nas colunas sociais, como pessoas nobres e boas. Mas tenho a ilusão de que as pessoas possam pensar sobre as coisas e começar a perceber quem de fato representa os desejos da cidade na Câmara de Vereadores. E quando os hoje vereadores Lino e Afrânio, os quais têm minha confiança, defenderem isso ou aquilo, possam ser ouvidos como aqueles que estão discutindo a favor da cidade, da maioria da população. E não como uns moleques que querem “atrasar” o progresso de Floripa.

Uma cidade desenvolvida não é aquela que tem os prédios mais altos, o trânsito caótico, muitas indústrias e outros empreendimentos monumentais para uso quase exclusivo dos ricos.  Uma cidade desenvolvida é aquela que é boa para se viver, que mantém viva a cultura, que respeita o outro, que garante uma movimentação fácil e uma existência segura.


Sigo acreditando que essa vida da gente é um largo aprendizado e que, um dia, haveremos de ficar livres da rapinagem, seja dos políticos ou dos poderosos. Mas, para isso, é claro, precisaremos bem mais do que aprender sobre o predador voo da ave. 



domingo, 30 de novembro de 2014

Passeando por Novgorod


























Novgorod é a cidade mais antiga da Rússia. Contam que já exista desde 862 antes do presente, tendo sido fundada por grupos eslavos e húngaro-finlandeses. Por conta disso é considerada, junto com Kiev, capturada em 882, do império bizantino, no outro lado extremo, o nascedouro do estado russo. Para o povo, Novgorod seria o pai, Kiev a mãe e Moscou o coração. 

É ali que está a catedral mais antiga de toda a Rússia, Santa Sofia, o mais importante templo cristão do país, construído em 1045. A conversão do povo russo ao cristianismo ortodoxo, de tradição bizantina, se deu em 988 antes do presente e desde então tomou conta de todo o território. É por isso que o que mais se vê pelo país são as belíssimas igrejas, todas com luminosas cúpulas, ao estilo de Bizâncio. 

A bonita cidade de Novgorod também tem um linda história de lutas. Foi ali que se deu a primeira revolução da história da nação, em 1136, quando a população decidiu que não iria mais aceitar ser dirigida por um governante que estava em Kiev. Toda a família que representava o czar foi expulsa da cidade e foi criada a assembleia do povo. A cidade era chamada de República de Novgorod, pois qualquer decisão tinha que passar por assembleia. Seu poder era tão grande que havia um ditado entre o povo: “quem pode contra Deus e a Grande Novgorod”?

Localizada na foz do rio Volkhov, que liga a Rússia ao Mar Báltico, ela era um grande centro comercial e conquistou rapidamente a sua condição de cidade mais moderna da antiga Rússia. Foi lá que os primeiros textos em língua russa foram escritos, em 1077, e esse cuidado com a cultura foi o que ajudou o povo a enfrentar a ocupação mongol. O fato de ser tão rica fez com que a cidade comprasse a liberdade e continuasse sendo “russa”. 

No final do século XV, Novgorod acabou sendo anexada ao principado de Moscou, e a Rússia ganhou um grande império já formado na parte oriental. Por outro lado, a queda da cidade acabou marcando também o fim da democracia. Já não havia a assembleia do povo e as decisões partiam outra vez de um lugar distante, desta vez, Moscou. O mais simbólico dessa derrota foi a perda do Grande Sino, da catedral de Santa Sofia, que os moscovitas levaram embora. Sem ele e sem a assembleia, Novgorod perdeu seu poder.  Mesmo assim, seguiu sendo uma cidade importante, suscitando inveja aos czares. Tanto que em 1550, Ivan, o terrível, devastou o lugar e transferiu grande parte das propriedades para os monges.

Ao longo dos anos Novgorod sofreu novas invasões e percalços. Mas, na contemporaneidade, a mais violenta ocupação foi a dos nazistas, durante a segunda grande guerra que é chamada pelos russos de “Guerra Patriótica”. Ao longo de suas estradas podem-se ver centenas de marcos, indicando momentos de luta do povo contra os alemães. Naqueles dias a população chegou a afundar os sinos da catedral Santa Sofia no rio Volkhov para evitar o roubo e a profanação. Também foram escondidas as estatuas e objetos sacros. Mesmo hoje, quando um camponês ara seus campos, é possível encontrar lembranças dos dias terríveis da guerra, tais como bombas, armas, objetos militares. É impossível circular pela cidade sem se deparar com essas amargas recordações, as quais os moradores fazem questão de preservar. Afinal, a cidade foi praticamente destruída durante a guerra e depois reerguida pela força de sua gente.

Atualmente, muito do seu patrimônio turístico está centrado na arquitetura das suas antigas catedrais, entre elas a velha Santa Sofia, que segue resistindo. Também está totalmente restaurado o seu kremlin, que é a fortaleza onde fica o centro administrativo e político da cidade.

Hoje, com a queda do regime soviético, a religião assoma com força em Novgorod, com em todo o país. Assim, as igrejas têm sido restauradas e recuperadas para os cultos. Durante o governo soviético, elas foram usadas como espaços administrativos, celeiros e até estrebarias. Esse foi, no dizer dos mais velhos, o grande erro cometido pelos “comunistas”. Segundo eles, o regime soviético foi muito bom para o povo do campo, mas deveria ter respeitado a religião. “Nossos templos foram profanados. Mas, agora, estamos recompondo cada um deles”.

Na verdade, a igreja russa, antes da revolução de 1917, era tão poderosa, politicamente, quanto o czar. Tanto que na falta dele quem tomava as decisões era o arcebispo maior. Isso se espraiava para cada cidade ou região. A decisão de varrer as igrejas do imaginário russo por parte do regime soviética teve muito a ver com isso, já que igreja e czar tinham o mesmo peso. 

Hoje, sem czar, quem manda na Rússia é o deus mercado, e as mudanças já se percebem. O campo voltou a ser espaço de misérias, as igrejas retomam o poder, articuladas ao estado e o futuro não se sabe o que será. De qualquer sorte, passeando pela beira do rio Volkha, o que se pode sentir é a força das gentes, que parecem sempre preparadas para enfrentar qualquer desafio.