quarta-feira, 4 de outubro de 2017

O cantor


Já faz algum tempo, ele tomou o espaço ao lado do camelódromo. Chega com sua caixa de som e começa a cantar. Já tem até um público cativo. Senhorinhas alegres param e acompanham as canções, batendo palma e cantando. Também param os senhores mais velhos e alguns mais jovens. Ele já conhece muitos dos fãs pelo nome. Faz piadas, oferece música. É uma alegria. O pessoal dos boxes parece gostar muito dele, e as gurias mandam biscoitos, bolos, café e refrigerante. Ele recebe, agradece, manda música. É uma estrela ali naquele pequeno pedaço do centro da cidade. Canta canções antigas, sucessos dos anos 60 e 70, distribui beijos e autógrafos. É um homem bonito, ainda que maltratado. Tem uns olhos claros magníficos e emposta a voz para cantar. 

Sempre que vou ao centro eu fico ali um tempo, junto com as senhorinhas, vendo sua performance e cantando com ele. Gosto das músicas. Vendo-o sou tomada por uma infinita ternura. Pessoas assim são raras. Nada sei da sua vida, das suas dores, mas só de olhar para ele, e acompanhar o brilho intenso dos seus olhos claros a gente percebe o quanto ele faz aquilo com gosto, com amor. O quanto é grato por aquele carinho. Olho para aquelas senhorinhas que cantam e batem palma e sinto vontade de abraçá-las. Elas mesmas buscando ali pedaços de beleza de um passado que as canções evocam. E nessa busca, estendendo amorosamente seus braços ao artista, que se alimenta daquele amor. Pequenos gestos poéticos que esboroam a tristeza ... 


Conversas com El Che


Sempre que vem chegando o nove de outubro eu convoco el Che para uma charla. Ele vem. Chega mansinho e se aboleta no meu alpendre, nas cálidas noites desse mês de primavera. Então, cevando um bom mate, vamos falando sobre as coisas do mundo. Conto tudo o que se passou desde a última conversa, falos dos ataques do império. Ele cospe no chão e pragueja em argentino.

Esse ano cumprirão 50 anos do seu assassinato em La Higuera, Bolívia. A gente sempre fala disso. Da tristeza do nunca mais, da interrupção dos planos e sonhos. Mas, também falamos dos avanços dos trabalhadores e dos revolucionários de todo o mundo. Ele gosta de saber que a Bolívia hoje é um estado plurinacional, e que os indígenas tem constituído um poder capaz de fazer avançar suas demandas. 

Ele lembra bem do dia em que morreu. Executado por um soldado boliviano que sequer sabia muito bem quem era o homem que matava. Lembra do tremor da mão do garoto, dos olhos perplexos, lembra de ter sentido um queimor e, depois, o silêncio.

O corpo do jovem guerrilheiro argentino, que ajudou na vitória cubana e nas lutas africanas por libertação, virou poeira cósmica, energia. Mas suas ideias seguem reverberando tanto tempo depois. Os homens da CIA que decretaram sua morte, cortaram suas mãos e desapareceram com o corpo. Como se isso pudesse fazer desaparecer toda uma proposta de um novo tipo de ser humano, ético e solidário, capaz de se comprometer com cada irmão caído.

Aqui, no alpendre, entre um mate e outro, vamos relembrando tudo o que já se passou no mundo desde que ele se foi. E o quanto sua figura e seu ideário ainda evoca libertação, paixão, amor pela vida. 

Ele olha pra mim e sorri. "Não há silêncio". Sim, comandante. Não há. As gentes empobrecidas e exploradas pelo capital seguem resistindo e clamando por um tempo novo. Novas lutas, novas propostas, novas práticas. 

Nessa semana de lembranças de sua caída, milhares de pessoas no mundo estarão lembrando, estudando, conhecendo, construindo projetos, lutando. "Ainda goteja a fonte do crime", grita Mahmoud Darwish, o poeta palestino.  E acrescenta: "Rebelem-se". É o que seguimos fazendo, até que chegue o grande meio-dia.

No amargo do mate, que ronca uma última vez, a lição mais profunda: "Há que estudar, estudar e estudar. Há que ser perfeito. Há que se mover por grandes sentimentos de amor".

Vamos tentando, comandante. Vamos tentando. 




domingo, 1 de outubro de 2017

A igreja da prosperidade e a mais-valia espiritual



J.A.F tem 32 anos e trabalha como diarista em casas alheias. Ela tem um único sonho, que persegue desde quando era bem pequena: ter a sua própria casa. “Quando era menina eu comecei um cofrinho de moedas. Dizia que era dali que sairia a casa que eu iria comprar para minha mãe e para mim. Hoje ainda tenho o cofrinho, e com ajuda de deus eu vou conseguir”. A mãe já morreu. Tuberculose. E J. embarcou numa profunda depressão. Foi nessa fase da vida que ela encontrou a igreja. “Eu tava passando e o pastor estava na porta. Ele me chamou e disse que ali eu encontraria a paz. Não sei como ele percebeu que eu estava muito mal”. Pois ela entrou e veio a paz. Depois de abraçar a fé ela melhorou da depressão, conseguiu voltar a trabalhar e já tem até um carro. “Eles lá disseram isso bem claro. Se a gente trabalhar bastante, a gente consegue chegar lá”.

Esse “chegar lá” é a ponta de lança da teologia da prosperidade, essa que carregou para o sagrado o que há de mais profano no mundo: o fetiche da mercadoria. Muitas igrejas realizam cultos específicos com o intuito de chamar a riqueza para os fiéis. Não é sem razão que crescem sem parar, arrebanhando cada vez mais gente. Num mundo marcado pela exploração, pelo individualismo e pela solidão, essas igrejas conseguem dar uma centralidade para almas em escombros, típicas do espírito do tempo.

Mas, o crescimento dos cultos pentecostais, geridos pela ideia de prosperidade, nada tem a ver com a religião. Eles estão muito mais ligados ao modo de produção capitalista, mantendo milhares de pessoas justamente na batalha pela prosperidade, girando a roda do capital. O mais importante é observar que, no mais das vezes, as pessoas realmente melhoram de vida, porque estão mais centradas, mais determinadas e incluídas em um grupo que as impele para frente. Nos cultos, quem é exorcizado é o diabo, o demônio, satanás, belzebu, como se fosse essa entidade mágica a responsável pelas dores e pelos fracassos. Então, o verdadeiro culpado pelo drama dos trabalhadores – o capitalismo – segue intocado, esquecido e apagado. Se é o demônio que se apossa da pessoa e a impede de prosperar, basta que a comunidade, em comunhão, garanta a expulsão do malvado, para que a vida comece a melhorar.

É bom que se diga que todas as pessoas que buscam na religião um bálsamo para as dores, lá estão porque realmente creem. Sentem-se acolhidas e não acreditam que muitos pastores ou pastoras, estejam ali para roubar seu dinheiro. Acham que o dízimo, que oferecem de bom grado, servirá para abrir as portas do céu, ainda que seja apenas o céu do líder da igreja. E como, de alguma maneira, a vida melhora mesmo, não se importam de aplicar seu tempo na esperança de conquistar coisas boas.

Marx, ao analisar o modo capitalista de produção fala desse tempo a mais que o trabalhador deixa com o patrão. Na jornada de trabalho, no geral, muito mais da metade é lucro do patrão. A famosa mais-valia, ou mais-valor. Ludovico Silva, um filósofo venezuelano, vai dizer que assim como o patrão surrupia a mais-valia do trabalhador no local de trabalho, o sistema como um todo rouba uma mais-valia ideológica quando o trabalhador está em casa, vendo televisão. Pensando estar se distraindo ou usando seu tempo livre para curtir um bom programa de TV, ele está na verdade sendo consumido pela máquina de vender mercadorias. Ainda que fora do local de trabalho, segue prisioneiro do capital. Pois essas igrejas pentecostais que atuam com a teologia da prosperidade fazem algo bem parecido. A pessoa está lá, pensando estar em sintonia com deus, com o sagrado, mas ao final, não consegue se desvencilhar do desejo de ter coisas, de amealhar mercadorias. Isso significa que ainda está presa no sistema, gerando uma espécie de mais-valia espiritual. Sua própria relação com deus acaba mediada pelo tanto de coisas que pode conseguir.

Não é também sem razão que são os líderes dessas igrejas os que, totalmente tomados pelos interesses seculares, adentram no jogo político garantindo postos de poder nas câmaras de vereadores, assembleias, câmara dos deputados, senado e estado. Geralmente aliados ao grande capital. Raros – se é que há - estão atuando na defesa dos trabalhadores.

Outra maneira de atuar na defesa do capital é a aposta no fanatismo, que leva o fiel a ficar sem discernimento e sem pensamento crítico. Aceitando a palavra do líder como a única verdade, a pessoa torna-se capaz dos atos mais violentos, agindo sempre em nome da salvação da humanidade. Algo assim como o que estamos vivendo hoje no Brasil, com a série de ataques a pessoas ligadas à religião de matriz africana. Não por acaso a violência centra foco nos deuses do povo negro. Bramindo um “deus” específico, que é o único salvador, pessoas atacam outras pessoas, matam e discriminam.

Foram os iluministas franceses, em particular, Voltaire (1694 — 1778), que polemizaram sobre o fanatismo, ligando essa prática a intolerância e à violência, justamente porque a Europa vivera até pouco tempo uma série de guerras envolvendo católicos e religiosos. Mas, naqueles dias, como hoje, o que realmente estava em questão não era a fé ou deus: era o poder. Com o crescimento do protestantismo, o status do papa, que era quem decidia a vida de todo mundo – inclusive dos reis – estava ameaçado. E era a igreja católica a que detinha também muita terra e riqueza. Então, enquanto nas batalhas morriam as gentes comuns, a aristocracia tramava para um ou para outro lado, sempre de olho na riqueza que poderia amealhar.

É por isso que se faz necessário uma boa análise sobre o “fanatismo” que vivemos no Brasil. Observando bem vamos ver que não são apenas ataques esparsos a outras religiões, o que poderia caracterizar uma contenda verdadeiramente religiosa. Não. Os tentáculos dessas lideranças pentecostais – justamente por estarem em cargos de poder  - se estendem para a vida cotidiana. O projeto da Escola sem partido, buscando atuar na educação. A tentativa de barrar o debate sobre gênero e o ataque aos homossexuais, interferindo na vida pessoal, a lei que permite ensino de religião confessional, tentando arrebanhar a criança para a fé, a proposta de obrigatoriedade das músicas religiosas nas rádios e TVs, atuando como mais-valia ideológica e disputando o mercado musical. Tudo isso configura a intervenção e o fortalecimento desse fanatismo, em “nome de Jesus”, em todos os segmentos da sociedade. O objetivo final pode ser justamente submeter, pela violência, toda uma população, sob o pretexto da salvação das almas.

Mas o que move o motor do fanatismo é algo bem mais prosaico do que deus. Trata-se do vil metal, dinheiro, borofa, bufunfa. A aposta é manter o rebanho ocupado na “guerra santa” pela moralidade e os bons costumes, enquanto o capital avança em mais uma onda de acumulação e expropriação. Assim, no Congresso, onde manda a bancada da bíblia, aliada a do boi e da bala, os deputados vão realizando as reformas exigidas pelo capital que manterão ainda mais cativos os trabalhadores. “Trabalhe, não pense”, diz o presidente, que fala como um gentil homem do século 16. E não poderia haver mote melhor para o Brasil desses dias. Enquanto uma legião de pessoas que trabalha e não pensa se digladia com exposições artísticas, homens nus, mães de santo e grita por intervenção militar, o capital segue impávido pelas estradas, quase sem obstáculos.

Sendo assim, talvez fosse hora de olhar com mais cuidado para esse fenômeno, vendo-o como se expressa na luta de classes. Não basta ridicularizar nas redes sociais. As pessoas estão se fanatizando, isso é claro como o sol. São poucos agora, mas podem crescer. E se levarmos em conta de que o que está por trás do fenômeno é o processo de acumulação capitalista, o tema fica ainda mais urgente. A imposição do poder sob a força das armas sempre é uma alternativa possível, mas não podemos esquecer que, para isso, é preciso que seja montada toda uma atmosfera capaz de respaldar as ações violentas. Esse é o cenário que estamos vendo crescer sob nossos olhos. É tempo de ver e começar a agir em consequência.