domingo, 23 de dezembro de 2018

Quem cuida do cuidador?



Desde que comecei a cuidar do meu pai, diagnosticado com Alzheimer, há uns três anos, tenho procurado encontrar caminhos para melhor atender as exigências desse tempo da vida. O velho não é criança, então não dá para aplicar as regras do trato infantil com ele. É preciso dar autonomia, fazer com que se sinta capaz, respeitar suas escolhas e vontades. É um processo intenso e difícil.

As coisas ficam ainda mais duras se a gente tem de trabalhar. São pelo menos umas oito horas longe de casa, sempre em sobressalto. Há pessoas que cuidam, mas a gente não descansa. Se o telefone toca, o coração pula, se chega mensagem no celular, o peito aperta. Fica aberto aí um caminho para a doença porque a sobrecarga é grande. O sono é pouco, a pressão aumenta, e a gente parece viver num eterno torpor por conta da vigília intermitente.

Não bastasse o ataque físico, o psicológico também fica roto. Afinal, aquele que cuida está sozinho. Com o tempo, já não há mais tempo para os amigos e muitos vão sumindo. Não é culpa deles, cada um tem seus próprios dramas para viver. A família ajuda, mas a confiança do velhinho se fixa em uma única pessoa e ela é quem carrega o cuidado inteiro. Não é qualquer um que pode dar banho, não é de qualquer um que aceita a comida, o processo de dependência vai criando um torvelinho no qual o cuidador pode sucumbir.

Nesse diapasão, quem cuida do cuidador? Pois, ele mesmo. Ao longo desse tempo nos cuidados com o pai fortaleci em mim uma certeza que eu já tinha de que somos mesmo seres da solidão.  E é isso aí. Não dá para esperar nada de ninguém. Se a ajuda chega, é bom, mas não podemos querer que as outras pessoas venham em nosso auxílio.  Vejo nos grupos de ajuda a familiares o quanto as pessoas sofrem por estarem sozinhas nessa batalha danada. Mas, toda hora de angústia sempre é vivida na solidão. Não tem jeito. Nem mesmo a pessoa que mais nos ama pode viver nossa dor. Ela é nossa. E temos de nos virar com ela. Sei que isso é duro, mas é assim que é.

Podemos nos enterrar na tristeza ou podemos encontrar pequenos pedaços de beleza espalhados pela estrada do cuidado. Aprendi que o meu pai, apesar de seus devaneios, está muito bem. Faço por ele tudo o que posso, o que não posso e um pouco mais. Dedico a ele meu tempo inteiro e sei que isso o faz feliz. Vejo no seu rosto, sinto na sua risada, no seu passo miúdo, sempre me procurando pela casa. Percebo sua confiança na forma como segura meu braço quando vamos passear ou como fecha os olhos, quietinho, quando lhe faço a barba. E mesmo quando explode em violência querendo “ir para casa” compreendo que é coisa da doença e deixo que a raiva passe para depois estreitá-lo em meus braços, dizendo que estarei sempre ali.

Quanto a mim, me esforço para cuidar da casinha que abriga a minha alma. Faço pequenos momentos de meditação. Tomo uma boa cerveja enquanto cozinho. Busco encontrar momentos para encontrar as amigas e os amigos mais próximos, tomar um café, jogar conversa fora, ver as tendências. Também faço ginástica, muita ginástica, fortalecendo o corpo, os músculos, cada pedaço de mim. Basta o pai dar uma folga e lá estou eu estendendo minha toalhinha no chão, dando duro nos abdominais. Procuro ficar forte porque sei que é só comigo que posso contar. Pode parecer meio arrogante, mas não é. Saber da nossa solidão, aceitar isso, é a única maneira de não sucumbir na auto piedade.

Sei que não é bolinho cuidar de uma pessoa velha, com demência, sem grana para cuidadores, ou massagens, ou fisioterapias. Mas, busco me virar à moda cubana, inventando, inventando e inventando, todos os dias e a cada minuto. É assim que eu mesmo descubro as massagens, os exercícios, os entretenimentos. E vou dando jeito, até quando preciso for.  

Por fim, nossos velhos não são incômodos, muito menos castigos de deus. Eles são uma janela para nossa mais profunda humanidade. E se a dureza do cuidado com eles pesa, ela também estende o tapete vermelho para que assome tudo aquilo que é de mais bonito em nós: o riso sem razão, o carinho, a picardia, a ternura, o amor, a compaixão, a vontade de acertar, o cuidado conosco mesmo.

Assim, vamos ficando melhores pessoas. O outro sempre é o paraíso quando ele já existe dentro de nós.