quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O sangue negro de todos os dias

Todos os dias tomba um negro, vítima do racismo

O Brasil já foi saudado como uma “democracia racial”, conceito que coloca um véu sobre as relações étnicas no país e que foi fortalecido por um clássico da sociologia brasileira, o "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre. O famoso autor criou o mito do “bom senhor” ao caracterizar a escravidão brasileira como sendo composta por senhores maleáveis e escravos conformados. Aquele que é negro sabe muito bem o quanto essa ideia é falsa e ideológica. 

A escravidão no Brasil foi selvagem e violenta, como qualquer outra escravidão. E os “senhores” eram canalhas como qualquer senhor. Tiveram a cara de pau de, ao verem se esgotar o tempo da escravidão, lançarem mão da chamada “Leis de Terras”, em 1850,  impedindo assim que os negros libertos pudessem garantir um espaço para viver. 

Nesse mesmo ano havia sido aprovada uma lei que obrigava ao fim do tráfico de gente e os “bons” senhores trataram de se adiantar , assegurando assim a propriedade. A lei de terras definia que só poderia ter terra quem pagasse por elas. Não se legalizaria posse. E os negros que já começavam a ser libertos saiam das casas-grandes com uma mão na frente e outra atrás. Como poderiam comprar terras? Quando finalmente veio a abolição, em 1888, milhões deles foram jogados nas ruas, para que "se virassem" com sua liberdade.Desde aí o destino dos negros tem sido as periferias e os morros. 

A escravidão é uma chaga aberta ainda no Brasil, e o sequestro de milhões de pessoas nunca foi reparado. Passados séculos o povo negro segue marcado por uma realidade que não buscou. Foi o capitalismo dependente que, precisando de braços para dar força ao processo de produção na América dependente, que inventou essa vilania. Mas os negros pagam por isso até hoje.

No Brasil o negro é visto como bandido. Seja onde for. Pode estar vestido de ouro, mas sempre será apontado como marginal, sujo, vagabundo. A cor é desculpa para as mais absurdas violências e para assegurar o sistemático terrorismo de estado contra esse povo. O Rio de Janeiro tem sido a janela mais visível desse drama, hoje inclusive vivendo uma ocupação militar, justamente para “conter” o povo negro das favelas. 

As histórias envolvendo o assassinato metódico da juventude negra são intermináveis. Até crianças indo para a escola são abatidas a tiros, porque “poderiam” ter uma arma na bolsa. A mais recente, também no Rio de Janeiro, envolveu o jovem trabalhador Rodrigo Serrano, que foi morto pela PM por estar levando um guarda-chuva, que os policiais pensaram ser um fuzil. Do moço negro, que trabalhava como garçom em  um restaurante no bairro de Ipanema, restou apenas a carteira de trabalho ensanguentada, que ele levava consigo, justamente porque o negro tem de provar em cada esquina que é trabalhador. 

O caso de Rodrigo não é uma exceção. É a regra. A cada minuto tomba um negro. E falar disso nos coloca na mira dos racistas que já começam a gritar: “leva pra casa”. Para essa gente todo negro é bandido. E todo o bandido negro só é bandido porque é negro. Não se quer saber as causas que levam um guri da favela, negro, ao crime. “É preto, e pronto”. Os brancos, quando são bandidos, aparecem nos jornais e na TV de maneira bem mais suave. E se são da classe alta então, nem seus nomes são escritos. São citados como “jovem estudante”, “motorista do Audi”, “condutor da Ferrari”. Saem ilesos, sequer são presos. Mas se um guri negro roubar um pão, aí é o demônio, o irrecuperável. 

Na periferia das grandes cidades os negros morrem como moscas, e o seu sangue derramado incomoda pouca gente. A carteira ensanguentada de Rodrigo pode causar uma comoção momentânea, mas logo passa, superada por outra sensação. 

A carne preta é a mais barata no mercado capitalista. É sim. E que não se fale em democracia racial, por favor. 


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Quem se importa com a cultura?

Jana Gularte, representante do Coletivo Ética na Cultura, fala na Assembleia Legislativa


Estamos aí a poucos dias de uma eleição gigantesca, na qual elegeremos presidente, governador, senador, deputado federal e deputado estadual. Uma eleição que define praticamente todos os rumos da nação, dependendo do projeto que passar, garantindo àqueles que farão as leis e os que a executarão mudar ou manter tudo o que aí está. 

Depois de dois anos sob golpe e o país estraçalhado, com a aprovação de uma PEC que congela os investimentos públicos em 20 anos, o que podemos esperar dos novos eleitos? No geral, os candidatos não representam a maioria da população. Boa parte deles, financiados por grupos poderosos, estarão a serviço de interesses muito particulares e quando chegarem no poder, a esse gente servirão. 

Nas propagandas eleitorais o que vimos? As mesmas velhas caras que se revezam no poder desde há anos. Os mesmos programas enganadores. “Vamos investir na saúde, na educação, no transporte, na segurança”. As mesmas velhas promessas que seguem sem se cumprir. 

Em Santa Catarina a impressão que se tem é que vivemos num paraíso, isolado do resto do Brasil. Aqui, os candidatos, que estavam ontem no poder dizem que fizeram isso e aquilo, que o estado é o melhor colocado, que ganhou isso e aquilo. Mas, a realidade mesma não aparece assim. Nos hospitais sem leitos, nas escolas que estão sendo fechadas sem dó nem piedade, na universidade que propõe diminuir o salário dos professores, na criminalidade crescente, na violência, no enxame de drogas, no atraso cultural, na exploração dos trabalhadores do campo e da cidade aparece a verdadeira cara do poder estadual. E ela não é bonita. 

Mas, mesmo assim, vemos os mesmos velhos políticos, com suas caras de pau, aparecer na televisão prometendo maravilhas. Elas não virão. Pelo menos não para nós, os simples mortais. As maravilhas são guardadas para pequenos grupos, os de sempre, que enchem os bolsos enquanto a maioria agoniza.
Hoje, em Santa Catarina, em meio a todas essas faltas no campo da saúde, educação, segurança e moradia, um pequeno grupo de artistas trava uma luta renhida pela justiça na distribuição de verbas da cultura. Alguém poderia dizer: mas, que tolice! Falta-nos tanta coisa e esse povo preocupado com cultura. 

Pois é! Falta-nos tanto, e principalmente cultura. É o acesso à cultura que nos permitiria desvelar a cara de pau de toda essa gente que hoje se apresenta como salvador do estado tendo estado o tempo nele, destruindo o que é nosso. Mas, em Santa Catarina, quando se fala em cultura, o que aparece são os “big” eventos: a Oktoberfest, o Festival de Dança de Joinville, as demais grandes festas gastronômicas, as grandes orquestras. Esses conseguem grandes financiamentos e seguem cada vez maiores. Já os pequenos grupos de teatro, os músicos, os projetos culturais de regiões menos turísticas, esses precisam mendigar, com o copo na mão, entre empresários surdos e governo desinteressado. 

Um exemplo é o edital Elisabete Anderle, nascido para financiar projetos culturais no estado, depois de longas lutas da classe artística. Pois esse ano o edital não foi lançado, ainda que exista uma lei que obriga o Estado a apresentá-lo. A resposta do presidente da Fundação Catarinense de Cultural a um pedido de explicações da deputada Luciane Carminatti (PT), foi de que o fundo para o edital não teria verba suficiente, e que a FCC estaria com apenas a metade do valor correspondente ao que fora disponibilizado no ano passado, o que seria algo em torno de cinco milhões de reais.  Essa mesma explicação foi dada no Conselho Estadual de Cultura. Assim, já que não havia a verba total para o edital, a FCC decidiu liberar, sem licitação, um milhão e 500 mil reais para a Orquestra Filarmônica Camerata de Florianópolis, e mais um milhão de reais para o Festival de Dança de Joinville.  

Essa decisão levou os artistas catarinenses a questionar de maneira veemente os motivos que levam a Fundação de Cultura a privilegiar dois grandes projetos em detrimento de centenas de outros artistas do Estado. O movimento cresceu e agora formou-se o Coletivo Ética na Cultura, que já realizou um importante ato público denunciando o governo do estado, por liberar verbas da cultura sem licitação, e exigindo que, pelo menos o edital mais importante do campo da cultura, seja viabilizado. 

No ano passado, o Elisabete Anderle teve 1.803 inscritos, com artistas de todas as regiões do Estado, mostrando o quanto existe de proposta e projetos culturais em Santa Catarina, para além dos grandes eventos. Destes, 175 foram premiados e puderam levar adiante suas propostas, espalhando a cultura pelo Estado, inclusive em pequenas cidades.   Isso, por si só já mostra a importância desse edital. Segundo Jana Gularte, cantora e uma das articuladoras do Coletivo, o orçamento para a cultura em Santa Catarina tem sido de 0,06% nos últimos anos. Vejam bem o número. É uma miséria. E ainda assim, as relações seguem clientelistas, privilegiando pouquíssimos grupos. 

O coletivo Ética na Cultura não discute o mérito e a importância dos grandes projetos e dos eventos já consagrados, mas insiste que a cultura catarinense é muito mais do que os “big shows”. E, por isso, insistem que o edital seja lançado. 

Tem sido uma batalha gigante a que travam os artistas catarinenses, porque a cultura não é vista como prioridade. No mundo capitalista, o que vale é o mega negócio, o que gera lucros estrondosos. Nada a ver com cultura mesmo, visto que a maioria das gentes tampouco consegue chegar a esses eventos. Por isso que os pequenos projetos culturais, que se fazem nas cidades, nos bairros, com projetos modestos, são tão importantes. Porque eles chegam na maioria, eles se fazem nas praças, nos pequenos teatros, nas ruas da cidade, nos bares.  

Agora, no dia 22 de setembro, o Coletivo Ética na Cultura realiza mais um ato público, um ato-festa, ato-cultura, ato-protesto. Será na Travessa Ratcliff, em Florianópolis, importante espaço de resistência cultural no centro da cidade. 

Apesar de parecer algo “inútil” a cultura é base de uma nação. Isso é algo que todos deveriam entender. É pela via da cultura que tem se imposto uma forma de viver, é através da cultura que se fortalecem valores. E, no Brasil, desde há muito tempo temos uma cultura colonizada, que dá mais valor e visibilidade ao que vem de fora, da Europa ou dos Estados Unidos, escondendo o que temos de belo e forte, que são nossas raízes, nossa própria cultura. Por isso que fortalecer os artistas locais que trabalham com a cultura popular, brasileira, garantir sua multidiversidade, fazer chegar aos trabalhadores e trabalhadores, é coisa muito importante. Porque é através da arte que podemos compreender as dores da vida material e, a partir daí encontrar os caminhos para superá-la.

Que a luta dos artistas não se limite a esse momento da conjuntura, que ela siga firme e forte, garantindo que a arte e a cultura chegue a todos os cantos do estado, cultura brasileira, cultura local. E que possa desvelar a dura luta de classes que vivemos, na qual para que um viva outro tenha de morrer. 


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

As aventuras com o pai


Todas as manhãs são sempre iguais. Sair para o trabalho é uma odisséia. Meu pai acorda às cinco e meia, seis horas, depende, mas não passa disso. Sempre procuro despertar antes dele, para tomar banho antes de começar os cuidados, senão o atraso é certo. Sempre há algo para acertar. Ou ele põe o sapato trocado, ou a blusa do avesso, ou o casaco virado, ou o cabelo fica molhado. E não dá para dizer que está errado. Tem de acertar inventando outra história para ele não ficar brabo. Então, depois de ajeitado o figurino, começa o rolo do café. Até aí já tomei banho e vou fazendo uma coisa pra ele, e outra pra mim.

Café pronto e preciso ficar atenta, senão ele joga tudo fora, ou enche de pão, ou amassa o remédio. Então as coisas precisam ser realizadas uma de cada vez. Antes de servir a xícara, corto o pão em cubinhos pequenos, passo manteiga e mel. Depois encho a xícara e só então dou o remédio. Se descuidar ele joga o remédio fora, então tem de ficar olhando se ele põe na boca mesmo. Remédio na boca é hora de engolir. Outra novela. Ele faz a maior enrolação e gira o remédio na boca, ou tira e põe no pão. Esse momento precisa de atenção total.

Quando o remédio já foi para dentro dá pra deixá-lo tomando café sozinho, enquanto me arrumo. Mas é tudo muito rápido. Ele termina e já vai para a pia lavar a xícara. Ali ele arruma novo salseiro, jorrando água pra todo lado. Deixo que ele “trabalhe” senão fica brabo e mal humorado o dia todo. Ele lava a xícara e em vez de guardá-la começa a tirar todas as outras do armário ordenando-as em cima da mesa, enchendo-as de água, cada uma com sua respectiva colherinha. É um ritual. Vamos tentando tomar café, enquanto ele nos olha com ares de repreensão. É um tumulto na mesa, mas tudo bem. Seguimos.

Passado o café já estou exausta, mas é hora de colocar os cachorros pra dentro, porque senão eles saem e correm atrás das pessoas na rua. É sempre a mesma novela. Bota os cachorros pra dentro e o pai vai lá e abre a porta. Gritaria geral. Nããããããoooooo! E corre pra lá e pra cá atrás dos cachorros. 

Ufa. Cachorros dentro de casa, pai no lado de fora e lá vamos nós. Fechado o portão, cachorros pra fora, pai pra dentro e passo o bastão para o Renato, que seguirá com os cuidados até as oito horas quando chega a moça que fica com o pai enquanto eu trabalho e ele vai para a faculdade.

Tudo isso leva pouco mais de uma hora, mas quando sento no carro, parece que já se passaram horas e horas. Não são nem sete horas da manhã e a sensação é de profundo esgotamento. Sem contar que ainda precisarei viver o engarrafamento do Rio Tavares.

Suspiro e olho pela janela. Ele está no alpendre e acena. Tão frágil e bonitinho. É uma daquelas cenas de doce encantamento. A gente ri e acena de volta. E vamos embora com aquela sensação ambígua de preocupação e ternura.