quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Jornalismo, jornalistas e mentiras


A mídia brasileira foi pega de surpresa pelo presidente eleito nas últimas eleições quando este não quis saber de entrevistas nem de jornalistas para falar com seu eleitorado logo depois da vitória. Transmitiu suas palavras direto de casa, pelo celular, na sua rede social, sem mediações. Depois, nos dias que se seguiram chutou o pau da barraca de uma série de empresas de comunicação acusando os jornalistas de “fabricantes de mentiras”. Entre seus seguidores não há um que respeite a mídia. Os comentários são os mais estapafúrdios: a rede Globo é comunista, a Folha de São Paulo é do Lula. Ou seja: duas coisas que foram sistematicamente demonizadas durante a campanha eleitoral, comunismo e PT. A coisa beira ao surreal. 

Mas, entre nós, jornalistas, quem pode dizer que o presidente eleito esteja errado sobre a imprensa ser uma fábrica de mentiras? A mídia comercial brasileira – tal como a mídia mundial – é efetivamente uma fábrica de enganos. Manufatura mentiras e age visceralmente ligada com o sistema dominante. Usa dos espaços de notícias para constituir um consenso sobre a realidade, sobre o mundo, sobre o que é bem ou mal. Sob a capa da “imparcialidade” que a teoria funcionalista legou ao jornalismo hegemônico, ao longo de décadas tem extraído a mais-valia ideológica das pessoas que se colocam frente à televisão ou do jornal.

Ou seja, concretamente, o jornalismo praticado na maioria dos meios é realmente mentiroso. Logo, não é uma invenção do presidente eleito. Ele aproveita uma verdade para poder tornar verdade as mentiras que diz e dirá. O exemplo é tomado de Donald Trump, que fez a mesma coisa nos Estados Unidos. Durante sua campanha presidencial soltou os cachorros na mídia tradicional e fez - com a providencial ajuda das Big Datas, empresas de dados – aparecer essa verdade já sistematicamente denunciada, obviamente pelas entidades de esquerda. Ora, Trump não fez isso porque é louco, como diziam seus opositores. Não. Ele é um ultra milionário que tem acesso a qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. E, hoje, o dinheiro pode comprar dados pessoais, manipulando mentes, tornando os meios de comunicação tradicionais bem obsoletos. 

Assim que agora, diante do furacão das mentiras disseminadas pela internet por bilhões de robôs, misturados a pessoas bombardeadas pela guerra psicológica por empresas especializadas nesse fazer, que também espalham “notícias” os jornalistas se levantam em indignação. Mas, figuras como Trump ou o presidente eleito do Brasil estão cagando para os jornalistas. Eles não precisam mais dessa categoria. As notícias agora podem ser fabricadas por um simples robô de inteligência artificial mediana. Então, Trump expulsa jornalistas das coletivas, manda outro calar a boca, humilha. Bolsonaro não permite jornalistas nas suas aparições e promete até destruir jornais os quais acusa de fabricantes de mentiras. O campo da disputa das mentes é outro agora e eles estão ganhando, sem necessitar das mídias convencionais. 

Ao refletir sobre isso fiquei a matutar sobre a responsabilidade dos jornalistas nesse massacre em praça pública do jornalismo. 

Não é de hoje que se discute a ação dos jornalistas dentro dos meios de comunicação comerciais. No geral, a maioria se curva sem críticas ao que manda o projeto editorial do veículo. E quem define o projeto editorial nunca é o jornalista. É o dono do negócio. E o dono do negócio define quem será notícia e quem não será. Quem será demonizado e quem será mostrado como bonzinho, qual abordagem deve ser dada em tal notícia, qual deve ser dada em outra. Tudo vem determinado de cima. Sobra pouca margem de manobra para o trabalhador/jornalista fugir. Sim, sempre há os rebeldes, os criativos e ladinos que encontram brechas para fazer escapar a verdade. Mas, a esmagadora maioria se rende sem questionar. Em muitos casos assume a verdade do patrão como sua e pode tornar-se até mais real que o rei. Basta uma passadinha na Globo News e já temos uma mostra do que eu digo. 

Quero dizer com isso que os jornalistas dos meios hegemônicos estão agora colhendo os frutos dessa capitulação. E eles são amargos. Acostumados que estavam a ser o esteio da classe dominante, agora estão tendo de lidar com um grupo desconhecido de pessoas que consegue ter mais poder de comunicação que todos os seus patrões juntos. Ou seja, ficaram desnecessários para os novos donos do campinho e serão tratados como lixo.

A dança das cadeiras do poder dominante está muito louca e será necessário algum tempo para ver onde isso vai dar. As empresas de comunicação podem capitular, se render ao novo grupo de mando. Isso é bem possível. Eles são camaleônicos, mudando conforme os interesses. Se isso acontecer os jornalistas voltarão a servir ao rei, como sempre fizeram. Ou, algumas dessas empresas podem desistir do negócio, passar a outro mais atrativo e lucrativo, sem a necessidade de jornalistas, e todos irão amargar a grade barca. O certo é que a barra vai pesar.

Ainda assim, isso não é o fim do jornalismo como já se vê um que outro alardear. O jornalismo seguirá sendo essa função essencial de mostrar o que alguém quer esconder. E também seguirão existindo – como hoje existem – jornalistas de quatro costados, capazes de saltar sobre as pedras do engano e da mediocridade, desvelando a realidade e produzindo conhecimento com seus textos, como ensinou o teórico Adelmo Genro Filho. O jornalismo é um fazer que não morre, nem mesmo nas mais odiosas distopias, porque sempre alguém escapa do torpor e narra a vida em sua imanência, descortinando a verdade.

A conjuntura não está boa para nossa categoria. E vai seguir assim por um longo tempo. Então, é um bom momento para refletir sobre esse fazer e sobre a capitulação ao engano que boa parte dos colegas abraçou. Todo tempo é tempo de mudar. 

Já para aqueles que sempre remaram contra a maré, é só mais uma tempestade, a qual atravessarão com remadas sistemáticas, as mesmas que os mantiveram navegando incólumes nesse grande mar de mentiras fabricadas ao longo das décadas. 

O jornalismo da grande mídia mente, sim. Mas, jornalistas há que não. Que caminham pelas margens, que abrem brechas, que encontram nichos e oferecem “biscoitos finos” da verdade. 

A verdade, essa louca, que mesmo na mais longa das noites, emerge e se diz. A verdade, essa louca, que a despeito de tudo, emergirá também dentro dessa imensa máquina de produção de ideologia que se tornou a tal da rede social. 

Que os jornalistas da boa cepa sigam produzindo, escrevendo, dizendo. Porque eles serão sempre necessários. 

Seguimos, rompendo as manhãs, como dizia o poeta. 




O pai

Dormir não é com ele. Acorda às cinco e meia da manhã e vai até às nove horas da noite. Aí, encontrar coisas que o distraiam não é bolinho. Há que ter muita criatividade. Ainda mais que ele é meio chato e não gosta de quase nada do que a gente inventa. Consigo encantá-lo com a música gaúcha, e ele pode ficar vendo os clipes por um bom tempo. Também gosta da Praça da Alegria e dá muita risada com o Carlos Alberto e sua turma. Adora ficar caminhando pelo pátio, espichando as pernas, fumando um pito e observando as estripulias dos gatos.

Hoje, ao fim da tarde, encontrei-o no jardim. Estava sentado no banquinho de madeira, com os olhos lá no infinito. Sentei ao seu lado e perguntei:

- Que tá fazendo aí, quiridu?

E ele , sem tirar os olhos do ponto no infinito, respondeu.

- Imaginando! ...

Só consegui ficar do seu lado, bem quietinha, imaginando também.


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Sobre ser cristão



Há uma cena que sempre me comove quando eu penso sobre ser cristão. Digo isso porque sou cristã, nascida em família cristã, com uma mãe que frequentava a igreja e ensinava sobre Jesus. A cena foi protagonizada por um homem que sempre amei profundamente: Dom José Gomes, bispo de Chapecó. Era uma romaria da terra que acontecia em Florianópolis, juntando gente sem terra e gente sem casa.  A caminhada saiu de São José, atravessou a ponte e terminou no aterro da Bahia Sul, com uma grande missa e um almoço comunitário. Durante a missa, estavam todos os padres e bispos da região, Dom José junto. Eu era repórter na época, e estava em cima do palanque com os padres, para melhor fotografar o povo lá embaixo. Então, ao final da celebração o arcebispo metropolitano, acho que era o Dom Eusébio, convidou todos os bispos que estavam no palanque para um almoço na arquidiocese. Dom José saiu de fininho, recusando o convite para ir ao palácio episcopal e se foi, misturando-se à multidão.

Quando no aterro o almoço comunitário já corria solto, e eu andava pelo meio das gentes, ouvindo as histórias, deparei-me com a cena, que até hoje enche meus olhos de lágrimas. Lágrimas boas, de profundo amor.  Dom José, já sem batina, com seu terno e sapatos surrados, comia um cachorro-quente, encostado a uma banquinha. Comeu devagar, conversando com o moço que vendia. Depois, saiu, caminhando pelo meio das pessoas, sentando com uns, sentando com outros, e cada uma delas oferecia um frango, um pão. E ele mordiscava um naquinho aqui, outro ali, vivendo aquela coisa boa que é a comunhão. Um companheiro. E as pessoas o envolviam com uma atmosfera de amor.

Eu o mirava de longe, mas minha vontade era de abraçá-lo longamente. Coisa que fiz, mais tarde, na despedida, primeira e última vez que eu o estreitei em meus braços, em profunda gratidão. Dom José era um homem jesuânico. Como Jesus, ele gostava mesmo era de andar com as pessoas, com os seus, os camponeses, os trabalhadores. Nada de palácios e pompas.

Essa igreja de Dom José é a que eu tenho dentro do coração. Esse sentimento de partilha, de amor, de solidariedade, de comunhão real. É o que me alimenta nas horas noas. É o que me embala, enquanto escuto o sussurro do homem de Nazaré a dizer: não tema, estarei sempre com vocês.