sexta-feira, 30 de março de 2012

Ruralistas querem legalizar o saque das terras indígenas


Os povos que viviam na terra chamada de Pindorama – quando chegou Cabral – se organizavam em grandes grupos, mas não chegaram a formar civilizações como aconteceu com os incas, maias e astecas, em outras regiões deste grande continente. Os daqui eram nômades e coletores. Viviam num espaço tão generoso em água e frutos que não tinham ainda encontrado necessidade de organizar cidades ou outras estruturas parecidas como já faziam os povos andinos, premidos pelo ambiente inóspito. Hoje, sabe-se que todos os povos do continente de alguma forma se conheciam e se encontravam, como prova o Caminho de Piabeiru, que sai do litoral sul de Santa Catarina até a região inca, ligando os dois oceanos. O que faz crer que outros caminhos havia e que muitos encontros de davam, não necessariamente de conquista. Enfim, as gentes viviam aqui do seu jeito e com sua organização. Essa não era uma terra vazia.

A chegada dos europeus em 1492, sedentos de ouro e riquezas selou o destino desses povos. Invadidos pelos espanhóis e depois pelos portugueses, as comunidades da região sul de Abya Yala (hoje chamada de Américas) foram sendo dizimadas. Os impérios aqui existentes acabaram vencidos militarmente e as comunidades mais afastadas caíram em dominó. Algumas demoraram mais porque como o continente era grande, o interior demorou a ser ocupado. Muitas são as páginas heroicas dos povos autóctones em defesa de seu território e de sua forma de viver, como os exemplos de Tupac Amaru, Tupac Catari, Nheçu, Lautaro e tantos outros. Mas, apesar das lutas e da resistência, a força bruta dos invasores – e depois dos já nativos  - foi mais forte.

O caldo de toda essa história foi a dominação. O homem branco assumiu a liderança do “mundo novo” e aos indígenas ficou relegado o limbo. Chamados de seres sem alma, eles primeiro foram escravizados e depois – quando os brancos viram que se não se prestavam a isso – dizimados. Só que apesar de todo o processo de violência muitas comunidades sobreviveram. Acossados pela necessidade de sobrevivência foram se adaptando de alguma forma ao mundo que lhes foi imposto, o que Darcy Ribeiro chama de transfiguração. Ocorre que essa decisão nunca significou o abandono de sua cultura. Em algum lugar ela permanecia viva e nas entranhas das comunidades ela se expressava. Foi assim que muitas etnias lograram sobreviver, como é o caso dos ayamara, quéchua, kichwa, mapuche, guarani e tantos outros.

Hoje, essas comunidades retomam sua cosmovisão e exigem o reconhecimento de sua cultura e da sua forma de organizar a vida. Muitas foram as batalhas travadas ao longo desses 500 anos e em alguns países como o Equador e a Bolívia, os indígenas conseguiram avançar ao ponto de garantir o Estado Plurinacional, que significa o reconhecimento de suas organizações e de seus territórios como regiões livres, conduzidas e governados por eles mesmos. Ainda assim, apesar de consolidado na Constituição, esse estado plurinacional ainda é uma construção. Basta ver o caso dos indígenas equatorianos que lutam contra as mineradoras que avançam sobre suas terras sem que seja respeitada a lei da consulta e do domínio do espaço pelos verdadeiros donos, que são os originários.Aqui no Brasil, por força da organização menos estruturada que a dos povos andinos, as comunidades autóctones ficaram mais expostas à destruição, e a dizimação aconteceu de forma acelerada. Com a chegada massiva dos imigrantes no século XVII, o interior, que ainda servia de abrigo a muitas etnias, também começou a ser invadido e a matança voltou a ocorrer. Os bandeirantes cumpriram esse triste papel. Visto como “heróis” pelos seus contemporâneos eles avançavam pelo Brasil adentro caçando e matando índios, “limpando” a terra para entregar aos imigrantes ou aos seus patrões latifundiários. Alguns deles são os incensados fundadores de cidades, homenageados até hoje, como é o caso de Francisco Dias Velho, que expulsou da ilha de Santa Catarina os guarani e fundou o que hoje é Florianópolis.

A solução encontrada pelos “bondosos” senhores das terras naqueles dias era confinar em reservas os sobreviventes. A proposta primeira era integrar. Uma ideia que parecia muito piedosa depois do massacre. Diziam que aos índios era necessário “civilizar”, ou seja, submetê-los a uma cultura e a um deus que não era deles. Assim, aprisionados como bichos, os indígenas ou se integravam ou morriam. Mas, a tal da integração também nunca foi uma tarefa fácil. Os indígenas eram vistos pelos colonos brancos como uma ameaça e o confronto sempre foi latente. Daí para o racismo foi um pulo. A integração jamais foi conseguida. Aqueles que saiam das reservas e se aventuravam na cidade, tinham “por castigo” sofrer todo o tipo de preconceito e discriminação. Raramente se livravam da marca do “selvagem”.


No início do século XX foi a vez da ocupação das terras amazônicas e, de novo, a proposta apresentada pelo governo era a de “civilização”. Trazer os “selvagens” para a vida civilizada, integrá-los ao mundo moderno, tira-los da mata e torná-los “gente e bem”. De novo, apesar das boas intenções, seguiu o longo processo de apagamento das culturas, senão pelos arcabuzes, pela integração. Ainda assim, muitos conseguiram seguir nos seus territórios, ainda que confinados nas reservas. Desde então é assim. Os indígenas que não migraram para as cidades  e ainda seguem seus costumes tais como suas formas organizativas são seres tutelados pelo Estado. Não têm autonomia. São vistos e tratados como crianças, incapazes de gerir suas próprias vidas. Seus territórios não lhes pertencem, são da União, e é o Estado quem decide onde e como eles ficam na terra.

Os argumentos para essa tutela seguem sendo os mais piedosos: “os indígenas não sabem negociar no mundo moderno, são bêbados, são vagabundos, são inúteis, são ladrões”. Ou seja, imputam ao índio toda a sorte de vícios e problemas que são típicos do homem branco invasor. É certo que os indígenas não são pessoas puras, desprovidas de toda a maldade (afinal, são 500 anos convivendo), mas daí a dizer que só por ser índio alguém vai conduzir de forma equivocada um pedaço de terra beira ao absurdo. Basta dar uma olhada nas fazendas que mantém pessoas escravizadas e ver quem as dirige: não são índios. São os latifundiários.

Assim, nesse sistema de tutelagem, as comunidades indígenas são mandadas para cá e para lá conforme os interesses dos governos de plantão. Poucos são os que conseguiram garantir a permanência no seu território original. Ocorre que para as comunidades indígenas o território não é descolado da vida. Não é a mesma coisa que para um cidadão ocidental que pode mudar de casa, de cidade ou de país sem qualquer alteração no seu modo de ser. Um indígena está conectado com o lugar de vivência, precisa de espaço para caçar, cultivar, nadar, adorar os seus deuses. A terra faz parte do seu ethos cultural, é parte constitutiva de sua cosmovisão. Por isso que tantas etnias sofrem a fome, a miséria e a morte – alguns chegam a preferir o suicídio. Levadas para reservas – que são cópias mal apanhadas do mundo branco - sem identidade, as pessoas sucumbem e precisam viver à custa do Estado como se fossem inúteis. Não o são. Foram expropriados de sua maneira original de viver e ainda têm de pagar o preço de uma decisão que nunca foi delas.

Como no Brasil as comunidades são espalhadas e pequenas, a organização também é bem mais difícil do que em países como Bolívia e Equador, onde a maioria da população é indígena. Nesse sentido, acossados por todos os lados, os indígenas de Pindorama mal conseguem se fazer ouvir, a não ser em casos específicos onde, inclusive, são mais uma vez apontados como selvagens, avessos ao progresso, como é o caso da construção da usina Belo Monte que vai alagar a terra de muitas comunidades e contra a qual as comunidades estão em luta. Os indígenas defendem seu território, mas são mostrados na mídia como bárbaros, enquanto os verdadeiros “bárbaros” passam por empresários de sucesso que só querem o bem e o progresso do país. A União, que detém a posse legal da terra, põe e dispõe conforme os interesses dos depredadores da vida e do país.

Pois agora, não satisfeitos com a entrega das terras indígenas para seus projetos privados e destruidores, os negociantes e empresários, de olhos nas riquezas das terras ocupadas pelas comunidades autóctones, deram mais um golpe na já combalida organização indígena. Levaram para o Congresso Nacional uma proposta que aparentemente é singela e democrática: tirar da União a decisão sobre as terras indígenas e passar para o Congresso Nacional. Assim, pensam eles, será mais fácil vencer as resistências que por ventura possam surgir quando da ocupação de algum lugar onde vivam os índios. Como agora há uma presidente permeável às demandas das comunidades eles viram que era melhor arrancar o mal pela raiz. Devem ter pensado: “vai que a presidente resolve dar uma de esquerda e proteger os índios. Melhor não arriscar”. A ideia então foi jogar a decisão para o Congresso Nacional onde os poderosos têm quase total controle.

Numa primeira vista pode parecer interessante. No Congresso a coisa parece mais democrática, a decisão precisa ser discutida, negociada. Mas, não é. No Congresso quem manda são os poderosos, os endinheirados. Na correlação de forças, os trabalhadores, os empobrecidos, os índios, os excluídos sempre perdem. As chances de uma proposta de ocupação de terra indígena são muito maiores se levadas ao Congresso, pois o lobby dos ruralistas é forte demais. E eles agiram apresentando uma proposta de emenda constitucional, o que significa alterar a Constituição que, com todos os seus problemas, tem alguns avanços no que diz respeito à questão indígena.

Pois, sem debate e sem uma discussão nacional, essa proposta leonina já passou na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Os argumentos são os mesmos usados pelos invasores e destruidores do passado: os indígenas precisam se integrar. E, caso algum dia (que será bem breve) alguma terra precisar ser ocupada por algum projeto mirabolante ou mesmo por uma fazenda de bois, os indígenas terão “todo o direito” de se organizar, ir ao Congresso e debater. Ora, isso é o cinismo levado à última potência.

A emenda constitucional ainda vai tramitar e ser votada no plenário. Ela foi inscrita como PEC 215. É mais uma violência contra as já tão aviltadas comunidades indígenas. Caso seja aprovada, pode ser a pá de cal nas ainda sobreviventes comunidades que lutam pela demarcação de seus territórios. É por isso que a luta contra essa PEC precisa ser assumida pelos movimentos sociais populares, pelos sindicatos. Já basta de deixar a questão indígena para os índios. Ela é parte de cada uma de nós, está no nosso DNA, precisa ser uma luta nacional.



A batalha que agora começa a ser travada contra essa PEC também não deveria ficar no mais do mesmo. Não se trata de apenas impedir que a decisão sobre as terras indígenas seja apreciada no Congresso, muito menos de aceitar que siga como tem sido, na base da tutela governamental. Há que avançar. A decisão sobre as terras indígenas pertence aos indígenas. É hora de caminhar para a consolidação da autonomia real. É o momento de lutar pela retomada dos territórios originais, pelo direito à cultura e a organização da vida e pelo direito de gerir o seu território no que diz respeito às riquezas que ali estão. Essa não é uma luta fácil, mas tem de iniciar. O debate sobre os direitos das comunidades originárias precisa tomar o país para além das folclorizadas visões de um mundo puro, natural e perfeito. O mundo indígena tem seus próprios problemas, mas acabe às comunidades resolverem. Como em toda Abya Yala é chegada a hora das comunidades indígenas de Pindorama também se levantarem na luta pelo que lhes é direito. Todos contra a PEC 215, mais uma safadeza dos ruralistas.  Ainda é tempo de estancar a fonte do crime seguindo o que ensinava o inesquecível poeta palestino Mahmud Darwish: “rebelem-se... e permaneçam vigilantes, prontos para o combate”!

terça-feira, 27 de março de 2012

Curitiba




Eu tenho um profundo amor pelas cidades. Talvez porque elas sejam o berço das gentes, lugar onde se esconde a dor e beleza dos que buscam uma vida digna. Caminhando pelas ruas citadinas vive-se um profundo encontro humano. Encontra-se desde o yuppie sem coração até o varredor de rua, limpando o lixo dos outros com um sorriso na cara. Ou a vendedora de flores, o empresário que saiu para almoçar, a dona de casa, o estudante, o operário, a prostituta. Cada um desses personagens, no ri e vir, vão tecendo o imenso e diversificado tecido social que ora aparece como calmaria, ora como rebelião.

Esta semana ando flanando por Curitiba. Lugar delicioso de largas ruas, espaçosas calçadas, floreiras e bancos nos calçadões. Caminhando pelas ruas do centro, coração pulsante da cidade, me encontro e me perco, assombrada com tantas formas, belezas, delícias. Uma virada de esquina e ali está um espaço que parece ter saído de um livro de história, outra esquina e nos salta um prédio futurista, mais um pouco e lá está o mercado público, maravilhoso, cheios de formas, curvas e gentes. No meio da rua, um vagão, cheio de livros.

O fervilhar da rua XV é puro encantamento. Bares, cadeiras na calçada, gente conversando, espaço de encontro mesmo. Tão diferente do calçadão da Felipe, em Florianópolis, onde não há bancos, nem lugares de parada. Tudo é feito para que a pessoa passe, correndo. Em Curitiba não. Os mais velhos se espalham pelas dezenas de bancos e praças, com chafarizes e flores. O comércio não briga com as gentes. Espera, apenas. E as pessoas, ainda que descansem, também entram nas lojas e consomem, como é comum num mundo capitalista. Mas, vê-se claramente que a vida é mais humanizada, pelo menos no centro, onde tudo pulsa.

Em dois dias, eu já andei quilômetros, descobrindo os segredos de cada rua, os menores bares, os cafés, as padarias, as casas de vinho, os sebos, as livrarias, as bancas de artesanato, as comidas de rua. Numa das tantas praças há um feira de páscoa e misturam-se ali as culturas de vários países representados nas barracas. Imagino que devam ser os imigrantes mais representativos em Cutiriba. Comi doces poloneses, salteñas bolivianas, pizzas italianas, enfim... coisas demais. As pessoas são cálidas e sorridentes. Só o tempo está frio.

E agora à noite, enquanto me empanturrava com algum tipo de iguaria japonesa, me deu certa culpa. É que em Florianópolis acontece a batalha do Plano Diretor e eu não estou lá. Mas, sei que bravos compas estarão e, afinal, não estou na terra de Leminski a passeio. Então aproveito. Por aqui ando em missão de saber e pelas ruas sigo, olhando, sorvendo a vida, repetindo, assombrada, o poeta: “saber é pouco, como é que a água do mar, entra dentro do coco...