sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A cultura do medo e da violência



A mídia comercial, principalmente a televisão aberta, é, sim, uma tremenda usina ideológica. Num país onde a oralidade ainda é o mais eficaz meio de comunicação - em função dos analfabetos funcionais serem milhões - é justamente esse veículo que acaba sendo o meio mais importante de informação da maioria das pessoas. No mais das vezes, se apareceu na TV, o fato assume status de verdade. Se a pessoa não vê na TV, a coisa parece que não aconteceu, daí as estratégias "espetaculares" dos movimentos sociais para poderem aparecer na telinha. Não é sem razão. A Globo já foi mais poderosa no que diz respeito à audiência, mas, mesmo hoje, dividindo espaço com outros canais, como a Record, Band e SBT, segue ditando o modelo de jornalismo e de informação. No geral, todas as emissoras divulgam os fatos com a mesma abordagem, o que, sistematicamente, só fortalece o sistema atual vigente no mundo: o capitalismo - reino do consumo, do egoísmo, do individualismo, no qual o outro é o inimigo a ser eliminado.

Como bem definiu o pensador venezuelano Ludovico Silva, a televisão é o espaço privilegiado do sistema para aprisionar as pessoas na mais-valia ideológica. O trabalhador, já consumido pelo trabalho, chega em casa, depois de uma longa e terrível jornadas nos transportes públicos, e senta-se em frente à TV, única opção de "lazer". Com um copo de água gelada ou uma cerveja, ele pensa estar descansando enquanto as imagens que saltam da tela seguem aprisionando-o no mundo do trabalho. Compre isso, compre aquilo, veja a moda da novela, observe esse costume de vida. Tudo ligado na trama da mercadoria. E a pessoa vai absorvendo, completamente amarrada a grande roda do capital, no giro interminável do consumo. Consome-se até mesmo a própria vida. É claro que a pessoa não é um quadro branco onde as coisas são gravadas. Mas, o poder desse veículo é deveras avassalador. A pedagogia da sedução - usada com maestria pela publicidade - opera no cérebro e conquista os "consumidores" para coisas que sequer necessitam. E, assim, o trabalhador, durante o dia, entrega a mais-valia para o patrão, e à noite, segue entregando a mais-valia para outros patrões. É um círculo macabro. Uma forma bem bolada de domar o “rebanho desgovernado”, que era como o incensado teórico da comunicação, o estadunidense Walter Lippmann, chamava o povo.

A competição

Mas, além da sedução para o reino das coisas, o sistema capitalista preciso atuar em outra área na vida humana, para poder garantir a perpetuação do círculo. Há que incutir o medo do outro, para estimular a competição. Afinal, a regra é simples: para que um tenha muito, outro há que não ter nada. De alguém é preciso "chupar" o trabalho e a alma. O biólogo Humberto Maturana, ao discutir os sistema biológico da vida, insiste em dizer que a competição é uma coisa artificial, anti-humana, criada pelo sistema de opressão. Segundo ele, o que é natural no humano, e mesmo nos animais, é a cooperação. Na cooperação, todos podem ter o que precisam. Na competição, sempre um vai vencer - ter  - e outro vai perder, não-ter. Logo, é uma lógica de exclusão. Mas, se o natural é cooperar, como chegamos a esse mundo violento e competitivo? É, segundo ele, uma construção que tem por objetivo a consolidação de um pequeno grupo de poder. É o centro da opressão.

E, assim, a competição vai sendo incentivada em todas as áreas da vida. Desde a família, onde começa a educação para o sistema, passando pela escola, onde a criança vai se moldando mais ainda para a vida competitiva, chegando, depois, no trabalho, espraiando-se de maneira igual para a vida pessoal, as relações afetivas (não é sem razão que aumentam exponencialmente os casos de assassinato de mulheres, quando essas decidem sair de uma relação. O outro não suporta "perder". Prefere matar).

E todo esse processo de competição é igualmente incentivado e bombardeado na cabeça das pessoas pela maquinaria da indústria ideológica. As novelas, os programas de auditório e, agora, essa nova febre, os "shows de realidade", tipo Big Brother ou a Fazenda. Nesses espaços, que deveriam de entretenimento, toda a sociedade vai sendo alfabetizada e formada na lógica da competição. Para ganhar uma casa do Gugu, há que desbancar o outro. Para ganhar um carro novo no Hulk, há que vencer o outro. Para ganhar um milhão, há que eliminar os próprios amigos. É a pedagogia da selvageria lícita.

A pedagogia do medo

E todo esse processo segue uma ordem muito lógica. O próximo passo é incutir o medo. Fazer com as pessoas pensem que, em todo o canto, por toda a parte, tem alguém querendo "tirar-lhe" alguma coisa. Novamente a indústria ideológica age com sabedoria. Proliferam os programas policialescos, nos quais são apresentados crimes horrendos, assaltos, mortes e toda uma sorte de barbaridades. Assistir a esse programas nos leva a um terror abissal. Porque todos os dias, a todo instante, tem algo muito terrível acontecendo. Sair de casa pode significar a morte. Ficar em casa também. Não há escapatória. Tudo é apresentado como  se fosse algo natural. Todos os casos de violência cotidiana parecem brotar do nada, fruto apenas da "maldade" alheia. Não há relação nenhuma com a pedagogia da sedução - na qual se aprende a querer o que não se precisa - , nem com a pedagogia da competição - na qual o outro é sempre o inimigo. Não há história, não há contexto. É só a violência por si. O que é óbvio, porque se esses programas contextualizassem a violência desenfreada e crescente, ficaria claro para as pessoas os motivos disso. Não há interesse em criar conhecimento sobre a realidade. O objetivo da indústria ideológica é atuar no reino da sensação.

Com a pedagogia do medo vem a lógica da justiça invertida. A pessoa, submetida ao bombardeio ideológico, só consegue ver que a polícia é corrupta, os bandidos andam soltos, não há salvação. O que aparece nesses programas é que os cidadãos estão reféns de uma violência que não tem solução. Começa a se gestar aí o germe do "justiçamento". Se não há justiça, então eu mesmo vou fazer.

Não bastassem os Datenas e Rezendes da vida, ainda tem toda uma linha de filmes, da indústria cinematográfica da matriz do sistema, que exacerba ainda mais essa visão de mundo. Uma olhada nas séries de mais sucesso entre a classe média que pode pagar uma TV à cabo ou digital ( e que mais tarde vêm para a TV Aberta), o que se vê é que as do topo da lista são as dos "justiceiros". Aqueles mocinhos - geralmente brancos e ricos - que caçam e matam os bandidos que a justiça formal deixa escapar. Um caso extremo é o do seriado Drexler (maior audiência nos EUA), no qual um policial é o serial killer (assassino em série). Ele persegue, tortura barbaramente e mata aqueles que a justiça não aprisiona. É um psicopata que inclusive cataloga fotos e amostras de sangue de cada assassinado. Pois esse cara é um herói. E assim, poderíamos elencar outras séries e filmes que povoam nossas televisões, cotidianamente, fortalecendo a pedagogia do "justiçamento".

Por isso que a cena bárbara de um jovem negro sendo espancado por mais de 30 pessoas e amarrado num poste com uma corrente de bicicleta, parece natural a maioria das pessoas. Porque aquele guri negro, morador de rua, feio, maltrapilho, é o "inimigo" que povoa a cabeça de cada um que vive sob a opressão da usina ideológica - aí incluída a família, a escola, as relações pessoais. Então, nada pode parecer mais "certo" do que justiçar, fazer justiça com as própria mãos. Se não há polícia, se a corrupção grassa e eu vivo apavorado com o mundo ao meu redor, a qualquer sinal de ameaça, eu me defendo. É assim que as pessoas pensam. Estão intoxicadas com essa pedagogia voraz, que nos tira a humanidade, isso que Maturana chama de "natural cooperação".  

É o que ocorre também em relação aos homossexuais. As pessoas passam a vida toda ouvindo que aquilo é antinatural, que é vergonhoso, que é pecado, que é sujo, que são uns desavergonhados, umas aberrações, a escória do humano. Então, quando um grupo de jovens agride ou mata um homossexual, eles entendem que estão fazendo uma "limpeza", ajudando a sociedade. Foram alfabetizados nessa concepção. E não é coisa fácil de mudar. Há que se trabalhar toda uma nova pedagogia, que vença essa, que é hegemônica no mundo. Essa visão de mundo grega, que venceu no mundo ocidental, na qual o outro, que é diferente de mim, é o "não-ser", o "inimigo", o que precisa ser eliminado em nome do meu bem-estar. Enrique Dussel, um filósofo argentino, ensina que no mundo antigo, antes da vitória da visão grega, o outro não precisava ser igual a mim. Ele era respeitado como outro, diferente, mas real. Nesse mundo, cujas raízes ele encontra nos povos do deserto, o outro podia ser aceito na convivência, porque a matriz da existência era a cooperação. Dussel crê que essa forma de viver pode ser recuperada, mas não é coisa fácil. Há um longo caminho a percorrer, desfazendo toda essa teia ideológica que vem massacrando a humanidade por tantos séculos.

Hoje, quando as redes sociais deram espaço para a voz de tão distintas gentes, não deveria causar espanto as opiniões de um número expressivo de pessoas respaldando as ações de justiçamento ou de violência contra os que eles consideram "escória", aberrações. No mais das vezes, essas pessoas acreditam piamente - de boa fé -  nas "verdades" que foram sendo sedimentadas ao longo de uma vida. Estranhos, mas muito estranhos mesmos, são aqueles que, de alguma forma, observam essas verdades e duvidam delas, buscando criticamente uma explicação para os fatos, na história, no contexto, no ambiente. Porque não é fácil enxergar as falhas da "matrix", aquelas que nos permitem ver que, para além do mundo de sedução que o capitalismo nos oferece, há toda uma cultura de medo e violência que vem no pacote, fazendo com que vejamos como "inimigos" aquele que não compartilha - por opção ou por condicionantes históricas, econômicas e políticas - dessa ilusão.

O exemplo e a linguagem

Wittgenstein, um filósofo da linguagem, dizia que os limites da linguagem são os limites do mundo. Logo, para ele, se a pessoa não consegue verbalizar ou entender coisas como cooperação, solidariedade, amor, equidade, jamais poderá entender aqueles que falam sobre isso. Maturana, desde a biologia, concorda com o filósofo austríaco, mas oferece uma luz nesse universo que aparece tão determinista. Ele diz que o ser humano só se fez humano a partir do toque sensual, da carícia, do amor. E oferece muitos elementos científicos que podem comprovar sua teoria. Só depois veio a linguagem, essa, tal qual conhecemos. Logo, há uma pré-linguagem, calcada na emoção, no movimento do corpo, na ação. E é desde aí que pode vir a mudança. O que Maturana diz, cientificamente, já disseram os grandes avatares que caminharam sobre a terra, filósofos, homens de fé: o exemplo é poderoso. É a grande linguagem que chega ao mais profundo do humano. Assim, palavras como amor, solidariedade, respeito ao outro, cooperação, não podem ser ditas se não vierem acompanhadas de uma ação correspondente. Os astecas, nossos mais remotos ancestrais, já sabiam disso: "As palavras que não andam, não devem ser pronunciadas".

Com isso, o que quero dizer é que há uma larga batalha a ser travada contra as pedagogias da sedução, do medo e da violência. E ela não será ganha apenas no discurso falado. Ele precisa viver na ação cotidiana, no que se ensina aos filhos, no que se trabalha na escola, nas relações familiares e pessoais, no sindicato, no movimento social, no partido político. Para isso, precisamos da renitência, da ação diária e sistemática, da prática cotidiana desses valores humanos tão ancestrais. Gritar contra o racismo, contra a discriminação, contra a violência ao "outro", desigual. Mas também atuar, em todos os espaços da vida, em consonância com as palavras que usamos. Só assim elas começarão a andar.

Já no campo da política essa mudança não pode acontecer se não houver uma luta radical pelo controle dos meios de comunicação. Há que derrotar o monopólio, o oligopólio, que mantém a usina ideológica em funcionamento. Não basta atuar no campo da “democratização da comunicação”. Ajeitar o que está aí consolidado não é solução. Assim, ou derrubamos o poder dessa elite entreguista que hoje domina a mídia, ou seguiremos jogando palavras ao vento. Palavras que não terão pernas para andar. Soberania comunicacional, produção popular, reforma agrária no ar. Sem isso, o “rebanho desgovernado” de Lippmann seguirá domesticado, reacionário, racista e criminoso.


É tempo de desgovernar...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A história do Rio Tavares

Vídeo recupera a história das gentes nativas do Rio Tavares, bairro do sul da ilha de Santa Catarina. Produção de Marcelo Dias. Lindo demais...


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O capitalismo de Wall Street



O lobo de Wall Street é um filme aterrorizante e fascinante. Mesmo para aqueles que sabem bem como funcionam os mercados do dinheiro de papel (a bolsa de valores) ver o processo desde dentro provoca vertigens. O filme, dirigido pelo veterano Scorsese é baseado em uma história real. Mostra um jovem corretor que, em meio a uma crise, e já iniciado nas artimanhas da bolsa, decide montar uma empresa para atuar com ações de baixo valor. Ou seja, os clientes em potencial seriam as pessoas mais pobres, pequenos investidores interessados em participar, ainda que com ínfimas fatias, do banquete do mercado de capitais. Todo o esquema é baseado numa fé cega no dinheiro. Todos querem enriquecer, mas, naquele processo, só o corretor envolvido é quem consegue.  Não importa se isso tiver de ser feito enganando as pessoas. Gente que aplica as economias de toda uma vida, igualmente envolvida pelo apelo do enriquecimento fácil.

O filme escancara a formação desses trabalhadores, que mexem com as finanças alheias. Os tais clientes não são pessoas. São caixas de grana, cujos conteúdos devem vir para o bolso de cada um. Nesse mercado de ações de baixo valor, se uma pessoa investe quatro mil dólares, a metade vai para o bolso do corretor. É dinheiro vivo. Na hora. Enquanto que aquele que investe está sujeito à montanha russa da bolsa. No geral, perde tudo, porque as ações são podres. Tudo é inventado. Uma rede de mentiras.

O que aparece de maneira muito clara é a forma messiânica como todos vivenciam a coisa. O protagonista, vivido por Leonardo de Caprio, faz exortações como se estivesse, num púlpito, reproduzindo as palavras de deus. Os seus jovens comandados o veneram como um. É como uma igreja fundamentalista, cheia de rituais selvagens. Danem-se as pessoas. Danem-se as economias. Danem-se todos. O negócio é ficar rico. E assim, segue o festim da grana alheia, movido a drogas, sexo e muita adrenalina. Nos olhos dos corretores é visível o arrebatamento, enquanto batem no peito murmurando uma canção gutural.

O filme tem três horas de duração, mas passa num átimo. Vale a pena conhecer essa engrenagem por dentro, porque, afinal, ali não há nada de ficção. As coisas são bem assim. A bolsa de valores é uma invenção do sistema. Um tigre de papel, passível de se despedaçar a qualquer momento, fazendo virar pó fortunas inteiras, ou as economias amealhadas durante anos.  Não há cenas mostrando a situação de quem é enganado, para que a gente se apene deles. Não. Tudo gira em torno do jovem corretor que consegue roubar até 200 milhões de dólares.

No paralelo, de forma bem coadjuvante, há um agente do FBI disposto a desvelar o esquema de roubo e engano.  Mas a gente não fica sabendo muita coisa dele. Não é um personagem. E sua cena final é um tanto quanto piegas. Mas, tudo bem. Scorsese talvez tenha querido salvar o estado, ou passar alguma esperança.

Ao final desse turbilhão, Scorsese mostra que o FBI pode ser renitente e desbaratar pequenos esquemas, como foi o caso desse Jordan Belfort. Mas, nas palavras do próprio Jordan, os grandes ladrões seguem por aí. A ciranda do dinheiro fictício não é espaço para “refeições” minúsculas. Todos os dias, megaempresas de corretagem fazem o mesmo que Jordan, dentro dos limites legais, o que não deixa de ser um engano ou uma fraude, uma vez que no geral, o sobe e desce das ações é quase sempre fabricado. 

E, no admirável “mundo livre”, parece não haver espaço para esperanças. O mesmo homem que rouba, engana, subverte e trai, não encontra problema algum em voltar ao topo, sendo reverenciado justamente por ser quem foi: um insensível, uma máquina de vendas, ainda que não vendesse nada real. Apenas o sonho de ficar rico, sentado em casa, a custa do trabalho de outro.  

Um lobo, diz o título do filme. Não! Um lobo não seria tão cruel. 


O transporte em Florianópolis: mudando para não mudar




Desde que foi implantado, durante a gestão da prefeita Angela Amin, em agosto de 2003, o chamado “transporte integrado”, a vida de grande parte das pessoas que utilizam o transporte público na capital catarinense virou um verdeiro inferno. Aqueles que moram em bairros próximos ao centro raramente reclamam do sistema, uma vez que a fluência de ônibus é boa, com horários regulares entre 10 a 15 minutos no máximo. É assim para quem mora no Estreito, Coqueiros, Abraão e Itaguaçu, que não precisa fazer baldeação.

Já para os que moram nos bairros mais afastados, o cotidiano é um suplício. Os veículos que saem do centro não sãos os mesmos que o usuário usa para chegar ao seu bairro. Em alguma parte do caminho, no geral, bem próximo de casa, a pessoa precisa descer no “terminal de integração” e pegar outro ônibus que, aí sim, vai levá-lo até em casa.  Nesse ínterim, o usuário precisa viver duas grandes batalhas: a de enfrentar as longas filas no terminal do Centro, sofrendo ônibus lotados, sem sistema de ar condicionado (muitos deles sequer têm janelas que abrem), passando por longas horas nos engarrafamentos, e, depois, viver a mesma situação no trajeto do terminal de integração até em casa. No geral, para as pessoas que vivem nos bairros mais distantes, o tempo dentro do sistema de transporte aumentou com a “desintegração” – que é como a população chama. Linhas que faziam o percurso em 40 minutos, como era o caso da do bairro Campeche, agora podem levar até duas horas. Um tempo absurdo se consideramos que é um trajeto de pouco mais de 30 quilômetros. 

Não bastasse tudo isso, o sistema de integração “loteou” a cidade para determinadas empresas. Cada uma detém o monopólio de uma determinada região e, assim, o usuário é refém da empresa que faz o seu bairro. Não há opções. No terminal do Rio Tavares, se a pessoa perde o carro da hora cheia, por exemplo, terá de esperar 30 minutos até que tenha novo horário para o seu bairro. Muitas vezes a pessoa está a cinco minutos de casa e precisa ficar esperando. É um sistema gerador de estresse e doenças. Se formos considerar o período de férias, a situação fica ainda mais caótica. Esse ano, por exemplo,a prefeitura retirou os carros que fazem horários extras no horário de pico durante o ano letivo. O argumento é de que não há fluxo de estudantes. Mas, os tecnocratas não levam em consideração que o fluxo de turistas representa duas ou três vezes mais do que o número de estudantes. Então, os terminais ficam ainda mais insustentáveis. Gente demais, calor demais, preço das tarifas altos demais, estrutura de menos. Sem contar a falta de informação aos turistas que ficam feito barata tonta pelos corredores sem saber qual ônibus tomar. 

As lutas

Por conta de todos esses problemas que os milhares de usuários enfrentam no dia-a- dia muitas foram as lutas protagonizadas pelos estudantes, movimentos sociais e população em geral. A primeira delas, pós-integração, foi a batalha pela CPI dos tranportes, junto à Câmara de Vereadores, comandada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Transporte que queria transparência na concessão dos terminais do  sistema integrado. Mesmo com mobilizações e abaixo-assinado, a Câmara se recusou a investigar. Mais tarde, vários dos terminais, que haviam custado milhares de reais aos cofres públicos, tiveram de ser desativados por absoluta falta de sentido.

Depois, em 2004, veio a Revolta da Catraca, quando o povo foi para a rua em luta contra o aumento das tarifas. O protesto foi tão significativo que abriu uma vereda em nível nacional para lutas semelhantes em vários estados do país. Desde aí, consolidou-se na cidade um movimento de luta pelo transporte que veio protagonizando diversas outras batalhas na tentativa de garantir um serviço público de qualidade na área do transporte. Vieram as lutas pelo Passe Livre, com os estudantes à frente, e, mais tarde, tudo isso desembocou na luta pela Tarifa  Zero, reivindicação que foi tomando conta de todos os que começaram a se envolver com o assunto. Se há um direito de ir e vir, garantido na Constituição, e tão caro á sociedade burguesa, então por que não garantir esse direito aos usuários do transporte? Afinal, a maioria dos que utilizam o transporte coletivo são trabalhadores e estudantes. E essa é a bandeira que comanda as lutas hoje em todo o país. 

Mas, em Florianópolis, um dos capítulos dessas grandes batalhas pelo transporte também tem sido pela realização de uma licitação, já que as empresas que hoje atuam no sistema - Insular Transportes Coletivos Ltda. (antiga Empresa Ribeironense Transporte Coletivo Ltda.), Empresa Florianópolis de Transportes Coletivos Ltda. – Emflotur, Transporte Coletivo Estrela Ltda., Transol Transporte Coletivo (antiga Viação Trindadense Ltda., que absorveu a Viação Taner) e Canasvieiras Transportes Ltda – são as mesmas desde a décadas, sem que tenham passado por qualquer sistema de licitação. Muitos protestos com relação a isso foram realizados ainda na gestão da Angela Amim e depois na de Dário Berguer. Nada foi feito. 

Cesar Souza

O atual prefeito, Cesar Souza Junior, se elegeu tendo como proposta fazer a licitação do transporte. E, nos primeiros meses da sua gestão lançou o edital. Mas, para supresa da população, o fez sem qualquer participação das gentes, daquelas que sofrem o sistema todos os dias. A proposta de licitação foi apresentada numa segunda-feira, as oito horas da manhã, com chamamento feito no dia anterior pela televisão. Ou, seja, a prefeitura não queria povo “melando” o que seus tecnocratas haviam desenhado desde o conforto de suas salas, sem qualquer processo de conversa com os usuários. É que, na verdade, o foco estava no interesses das velhas parceiras  - as empresas do transporte – e não na população. 

E assim, os poucos representantes populares que puderam estar na apresentação tiveram de ouvir, estupefatos, um discurso de apresentação de “maravilhas” tecnológicas. Haveria um sistema interligado por computador, as pessoas poderiam ver onde estava o ônibus desde seus tablets, os motoristas teriam contato com a central via internet em tempo real, e outras tantas “modernidades”. Falou-se mais de uma hora disso tudo. E sobre as linhas, os horários, os problema de desintegração? Nenhuma palavra. As pessoas que fossem procurar nos anexos da lei, que sequer estivavam à disposição. Foi preciso muita luta para que a prefeitura divulgasse a lei da licitação. E, apesar de todos os protestos e críticas feitas por especialistas no setor, o prefeito fez-se surdo e não alterou em nada a proposta. Era aquilo e ponto. O estilo “democrático” que depois também foi imposto no debate e aprovação do Plano Diretor.  

Agora, nos primeiros dias de fevereiro, a prefeitura realizou reunião para abrir os envelopes das empresas interessadas em atuar no sistema de transporte da cidade. Ninguém dos movimentos sociais, nem mesmo a representação do sindicato dos trabalhadores foi autorizada a entrar, apesar de ser uma sessão pública. Tudo feito a portas fechadas, sob o argumento de que estava sendo transmitido via internet. Só depois de muita discussão, foi permitida a entrada de 15 pessoas, das que se postavam em frente a prefeitura exigindo participação. Mas, como estava proibido qualquer manifestação, os populares se retiraram em protesto.  

Ao final da sessão de abertura dos envelopes, a “surpresa”: havia um único envelope. E quais eram as empresas que, unidas num consórcio denominado de Fênix, estavam ali representadas? Um doce para quem adivinhar! Nada mais, nada menos, que as mesmas cinco empresas que já atuam na cidade desde sempre. 

A imprensa fez sua parte, divulgando no dia seguinte os fatos, sem qualquer senso crítico, sendo que os dois principais jornais ainda fizeram questão de frisar que a população seria “beneficiada” com a diminuição da tarifa, em 0,10 centavos. Os demais “grandes ganhos” que a população vai ter serão os 447 ônibus convencionais e 60 executivos - todos acessíveis para quem tem deficiência, com GPS e câmera de monitoramento. De novo, nada sobre trajetos, horários, linhas ou o monopólio regional. 

Mudando para não mudar

Então, agora aí está. Como não apareceu mais nenhuma proposta, o único consórcio a concorrer é o Fênix, que poderia até ser nominado como “duro de matar 666”, porque significa que as mesmas empresas que exploram o serviço seguirão vivas e firmes, apesar do aparente “tropeço” causado pela licitação. Nada muda para que se diga que tudo mudou. O prefeito agora garante, com licitação, mais 20 anos para os mesmos “parceiros” de sempre.

É fato que as mudanças tecnológicas serão benéficas para a população. Mas, não há aí nenhum mérito. Adequar-se a realidade é obrigação das empresas. Também é certo que a diminuição de 20 centavos na tarifa é coisa boa. Mas, isso, ao longo do tempo, vai se perdendo no caos que é o sistema. Para os que lutam por um transporte de qualidade, o processo licitatório não toca em nada nas questões cruciais que envolvem os diários transtornos vividos pelos usuários. Seria preciso que o prefeito, num ato de sabedoria, ouvisse aqueles que sofrem o transporte. Cada um e cada uma que usa o transporte sabe como fazer para melhorar. É a forma do pé que ajusta o sapato. Mas, sabedoria seria pedir demais de um jovem prefeito que prefere administrar como um se fosse um rei. É dele que emana toda a decisão. Um rapaz que possivelmente nunca, ou raramente, andou de ônibus.

Agora, aos movimentos sociais, sindicatos e população ativa resta a luta sistemática, como sempre foi. Já se tinha como certo que o edital era uma maquiagem mal feita para uma velha amiga. Há questionamento sendo feito via judicial e existem as ruas. Ah, as ruas… esse espaço libertário que, vez em quando, é palco das mudanças.