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quarta-feira, 5 de abril de 2017

O qilin, protetor da bondade


No mercado Pan Jia Yuan


No templo em Xian


Na cidade Proibida

Quando em 2013 passei alguns dias na China, fui perseguida o tempo todo por uma figura em especial, uma espécie de dragão, com enormes chifres e rosto feroz. Para todo lugar onde eu olhava, lá estava ele, representado em escultura ou em pintura. Como eu não falava chinês o jeito foi ficar perguntando à mocinha de uns 28 anos que nos acompanhava como guia. Sabia que não era o dragão clássico, que se vê também representado comumente em vários espaços. Alguma coisa nele me chamava e era muito forte. Por onde passava eu registrava sua figura e o abraçava.

Sou apaixonada pelos povos originários e seja onde for que eu vá imediatamente minha curiosidade se volta para as origens. Imaginei então que se aquele animal me perseguia e me chamava a atenção era porque tinha a ver com o passado remoto da China. A garota que nos guiava não sabia dizer. “Deve ser um deus antigo, coisa que agora não faz mais parte da nossa cultura”. Mas aquilo me encafifava. Se não fazia mais parte da cultura porque ele estava em todo lugar? 

Na visita que fizemos à cidade proibida, memória do tempo imperial chinês, lá estava ele, nos beirais dos palácios, em estátuas espalhadas pelo jardim, por tudo. E nas ruas também o víamos, misturado ao tradicional dragão. Espantou-me ver que a garota não sabia dizer o que ele significava ou mesmo seu nome.  

Em Xian, quando andávamos pelas ruas da cidade fortificada, nos deparamos com um templo magnifico, totalmente dedicado a ele. Naquele passeio estávamos sozinhos, sem guia, e por isso não foi possível a comunicação. Mas era óbvia a reverência que se via por parte das pessoas, visto que o templo era muito bem cuidado e tinha bastante incenso. Ou seja, não eram poucos os que ali acorriam para reverenciar o estranho animal. Logo, certamente era um ser sagrado.

Foi também por puro acaso que passeando pelas ruas de Pequim nos deparamos com um imenso mercado popular. Era o fascinante mercado Pan Jia Yuan, um gigantesco espaço da genuína arte tradicional e popular chinesa, misturado a um animado e diversificado brique, no qual se vendiam desde bonecas quebradas, lembranças de Mao, até as mais finas joias. O pavilhão, é claro, estava totalmente fora dos circuitos turísticos. 

Pois ao adentrar pelos seus portões mergulhamos na China mais verdadeira. Na praça estavam os vendedores avulsos, cada um com seu banquinho e  antiguidades de todos os tipos. Tranquilos e sorridentes eles nos convidavam para sentar e apreciar as coisas, com calma. Não importava que a língua verbal não fosse compreendida – de novo estávamos sem guia - o corpo falava, a mímica, a gente se entendia. Impossível descrever a beleza que explodia ali. O mercado, na sua concepção mais antiga. O olho no olho, a conversa, o regateio, tudo na paz.

E foi ali que, de novo, encontrei o estranho dragão. Estava em todos os lugares e era vendido em profusão, de madeira, de jade, de plástico, feito em tudo quanto era material. Não era possível que aquele animal não fosse algo muito importante para os chineses. Como no mercado praticamente só havia chineses, e muitos era bem velhinhos, eu tive de arriscar ser compreendida. Precisava saber o que era aquele ser, que já me tomara por inteiro.

Foi difícil, mas enfim consegui saber. O animal era chamado de “xilin”, com a grafia em chinês “Qilin”. Era, de fato, uma criatura mítica, oriunda das memórias mais antigas. E sim, era um elemento do sagrado mais profundo da gente do leste asiático. Então, como sempre acontece, lá estava eu de novo encontrando as raízes originárias do sagrado das gentes. Foi um encontro abissal.
Ele está em todas as partes porque os mitos ainda sobrevivem nas gentes, mesmo depois de tanto tempo de esquecimento, visto que com o fim do império e com o advento da revolução comunista, a religião foi apagada. Só que como sempre acontece, os elementos míticos não são coisas que se destroem assim. Eles vivem na memória histórica, na memória afetiva, no DNA.

O Qilin é uma criatura quimérica conhecida não apenas na China, mas em outros lugares do leste da Ásia. Queimar incenso para ele é pedir prosperidade, serenidade e felicidade. As primeiras referências a esse ser datam do século V antes de Cristo e há lendas que contam que o imperador Wu de Han chegou a capturar uma dessas criaturas vivas. 

Há os que dizem que ele é a estilização da girafa, que apareceu na China na dinastia Ming e que foi considerada pelo imperador como uma criatura mágica, capaz de gerar grande poder. Essa parece ser uma boa origem para o mito visto que o Qilin, apesar de seu aspecto feroz, é vegetariano, como a girafa. E também contam as senhoras no mercado que, mesmo sendo grandes, os qilins têm a capacidade de andar na grama sem perturbá-la e sem machucar qualquer ser vivo. Também dizem que sua voz é serena e auspiciosa, quase como o tilintar de sinos. Por isso, sua presença nas casas é sinal de desejos de paz e tranquilidade. 

A mitologia igualmente registra que os qilins tem a capacidade de discernir entre aqueles que são bons e maus, por isso sua figura aparece bastante em cenas de julgamento. Ser abençoado por um qilin é sinal de que se é bom e eles só ficam nas casas daqueles que conduzem sua vida pelo bem. Estando na moradia, o qilin é também proteção, pois podem ficar ferozes se a pessoa que eles abençoam é ameaçada.

As lendas dizem que os qilins só aparecem em corpo vivo para as criaturas muito bondosas, como apareceram para o mítico imperador Amarelo (Huangdi), que é considerado uma divindade dos tempos antigos. Também há registros de que foi um qilin quem previu o nascimento de um dos maiores sábios chineses: Confúcio. 

Saí do mercado com um qilin, é obvio. Comprei-o em jade de uma senhora bem velhinha, que o abençoou diversas vezes, e hoje ele mora na minha casa no altar dos meus afetos.  Por vezes, à noite, sinto-o respirar e caminhar pela habitação com seus passos de lã, mas ainda não o vi em carne e osso. Talvez porque ainda tenha que batalhar muito para chegar ao topo da bondade.

De qualquer forma é bom saber que o qilin guarda minha morada e meu espírito. Os deuses antigos de todos os povos tem em mim um altar. 



domingo, 27 de novembro de 2016

Dos totens do nosso tempo



Um totem é um uma construção sagrada, feita pelas comunidades, para designar sua relação com o transcendente. Pode ser a figura de um animal, pode ser uma figura mítica, pode representar alguém. O fundamental de sua existência é justamente estar ali, para lembrar que existe algo profundo no humano, que se conecta com a beleza suprema do sagrado. Não é religião, é abertura reverente para o não-sabido.  São comuns nas comunidades originárias, que nunca caíram na armadilha do monoteísmo. Ou seja, gente que não é a escolhida de um deus, mas que é capaz de compartilhar o mundo com várias entidades consagradas.

No mundo moderno também vamos construindo nossos totens, sejam eles reais ou simbólicos. Troncos fincados no chão que existem para nos chamar, nos interpelar, nos carregar de volta para nosso lugar sagrado. Algumas pessoas reconhecem como totens, os xópins, por exemplo. São seus lugares de devoção. Outros elegem determinadas igrejas, onde descansam seus corpos na dura batalha da vida. Há os que constroem totens com dinheiro, acreditando que ali está a redenção para todas as dores. E há ainda aqueles que erguem totens a partir de pessoas e ideias.

Desde bem pequena escolhi o meu, construído ao longo da vida, com desenhos e rostos. Imagens de vida boa, gente sorrindo, Minha mãe, Che, Camilo, Farabundo Martí, Sandino, José Martí, Zumbi, João Cândido, Chiquinha Gonzaga, Fidel, Carlos Fonseca, Juana Azurduy, Bartolina Siza, Anita Garibaldi, Dandara. Pessoas que, de um jeito ou de outro deram sua vida por um mundo melhor.

Ontem, quando Fidel encantou, fui acarinhar seu rosto no desenho do meu totem, esse que fica à entrada de mim, sempre me lembrando de que a vida só tem sentido se for para todos viverem em abundância. Chorei. Não por ele, que teve vida tão plena e se foi como quis, sem nunca se dobrar. Chorei pelos que não entenderam até hoje o que foi e o que é a revolução cubana. A obra de um povo, não de um homem.  Realizei minhas rezas e cerimônias, imaginando o gigante chegando ao paraíso, encontrando com todos os que, com ele, realizaram essa obra de amor. Sim, eu creio no paraíso, esse lugar onde as almas descansam.

A revolução não é um jogo de contas de vidro. É a explosão violenta de um povo oprimido também por violência. É campo de morte, de dor, de decisões duras. Mas, é construção de caminhos que levam ao bem-viver. Crianças nas escolas, comida na mesa, saúde de qualidade, arte. Cometem-se erros. Mas, claro, as revoluções são feitas por homens e mulheres. Não por santos. O que vale é reconhecer, fazer  autocrítica e seguir.

As figuras que compõem meu totem são criaturas humanas, com seus claros e escuros. Não são heróis, são caminhos. Veredas abertas chamando para o grande meio-dia. Não os reverencio por santos, mas por sua dolorosa e pungente realidade. Não peço licença por isso. É o meu totem. É a minha entrada da alma.

Nesses tempos obscuros do novo século, diante da inexorável perda física de Fidel, começo a esculpir novas caras no meu tronco sagrado. Três deles ainda vivos. Mais na frente, com certeza, serão lembrados como os que mudaram o mundo. Snowden, Assenge e Bradley Manning. Cada um deles, a sua maneira, e com objetivos diferentes, colocaram à nu o império. Snowden e Assenge, exilados de suas pátrias, vivendo como fugitivos. Bradley encarcerado numa solitária, nu, quase enlouquecido, dentro do país que tanto ama, e pelo qual decidiu revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelos exércitos de ocupação. Ele pensava, na sua ingenuidade, que se o governo dos EUA soubesse o que acontecia  no Iraque, iria por um fim em tudo aquilo.  Não, deram fim foi nele.

Nenhum desses três é comunista sanguinário. Não. São pessoas que querem viver na verdade. Que também sonham com um mundo livre, de pessoas soberanas.

Tampouco eu sou sanguinária, ainda que comunista. Preencho-me de ternuras e amores, de sonhos de vida boa e sigo, acendendo meus incensos, dizendo minhas orações, reverenciando meu totem sagrado. É esse tronco esculpido de gentes, desejos, lágrimas e risos que pontifica à porta de mim. Ali estão todos os mortos que nunca morrem, os que guiam meus passos e enchem os meus cântaros da água mais pura: essa que verte do desejo mais doce da “eko porã”, a vida bonita, como dizem os Guarani.