quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Apontamento sobre a censura e os conselhos de comunicação

Um tema bastante complexo tem tomado o imaginário brasileiro através das usinas ideológicas da classe média, as revistas semanais, e os telejornais das grandes redes: a censura. O motivo de tal questão ter vindo à baila é a proposta de institucionalização dos Conselhos Municipais e Estaduais de Comunicação. Jornalistas, comentaristas, analistas e palpiteiros tem se referido a esse assunto de forma rasa e redutora, o que é bastante prejudicial para a formação do juízo das pessoas sobre o que é verdadeiramente censura.

Para falar sobre esse assunto vou me remeter ao livro da historiadora Beatriz Kushnir, lançado em 2004, mas ainda pouco conhecido na área da comunicação. É o “Cães de Guarda – jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”. O trabalho tem uma importância tremenda porque, com ele, Beatriz desvela o outro lado da imprensa nos anos de chumbo, tempo da ditadura brasileira. Ali, é possível caminhar pelas intrincadas veredas do processo de censura que tomou conta do país depois do Ato Institucional número 5, em 1968, e ver o quanto a categoria dos jornalistas também colaborou para que a censura se fizesse real, seja através dos profissionais que assumiram o cargo de censores ou dos que assumiram a função de polícia.

O livro de Kushnir talvez não seja tão conhecido porque é justamente uma chaga aberta a sangrar, mostrando que não só os donos dos grandes meios foram coniventes com as barbaridades do regime militar, mas também muitos profissionais do jornalismo colaboraram de forma ativa. Naqueles dias, a censura era concreta e cotidiana. Palavras eram proibidas de serem pronunciadas, notícias sobre fatos de interesse público como uma epidemia de malária eram proibidas, informações sobre as arbitrariedades do regime, torturas, assassinatos e desaparecimentos então, nem pensar. Havia um setor que cuidava da censura aos meios de comunicação, aos artistas e a qualquer outro sujeito que usasse a palavra. A censura era uma imposição do estado ditatorial e impedia a livre expressão das idéias. Ela permeava todas as instâncias da vida, uma vez que também as reuniões eram proibidas. Um grupo com mais de três pessoas já era considerado motim.

No campo do jornalismo ela se expressou com a obrigatoriedade de revisão prévia das notícias feita pelos censores que, como revela o trabalho de Beatriz, tinha entre eles um número expressivo de jornalistas. As pessoas que se prestaram a esse papel eram contratadas como funcionários públicos e tinham curso superior, desfazendo-se então a idéia corrente de que os censores eram criaturas ignorantes e incapazes. Não o eram. No mais das vezes chegavam a ser “treinados” nas universidades, que ofereciam cursos sobre como censurar. O governo investiu muitos recursos neste tipo de capacitação. Vários dos censores foram entrevistados por Beatriz e a maioria tinha consolidada a certeza de que estava realmente ajudando a manter a moral e os bons costumes.

O livro de Beatriz também desvela como a censura explícita e realizada diretamente pelos funcionários públicos vai se transformando em autocensura. Os donos dos grandes jornais se mostravam incomodados pela intromissão governamental, mas não era muito em relação ao conteúdo noticioso, uma vez que a maioria dos empresários da comunicação apoiou o golpe e conspirava das mesmas idéias. Houve uma certa rusga, mas logo tudo foi se acomodando, e tanto, que os grandes jornais contratavam censores, aposentados ou não, para fazerem a pré-triagem. Ou seja, eles eram pagos pelo jornal para adequar as notícias ao gosto dos censores, para impedir que os jornais sofressem atrasos ou cortes. Isso foi gestando uma cultura de autocensura nos jornalistas, que acabaram incorporando a idéia de que certas coisas, temas, palavras e assuntos eram proibidos. Tudo se ajustou. A TV Globo, conta Beatriz, teve um funcionário deste tipo até os anos 90, ou seja, sobreviveu ao próprio regime militar.

Informações desta natureza dão conta do caráter conservador do jornalismo de massa brasileiro, ficando para a resistência – pequena, alternativa e quase ineficaz – o território do jornalismo crítico. A coisa ficou tão contaminada nas grandes redações que, no início dos anos 70, os jornalistas contratados para noticiar a vida, distorcida pelas lentes da censura, eram também policiais. Ou seja, desfaziam-se os limites da repressão e da notícia. Só era noticiado aquilo que interessava ao regime e os jornalistas eram eles mesmos os cães de guarda. Arrepiante relato.

A herança policialesca

Não foi sem razão que esta forma de autocensura acabou se irradiado pelos demais meios de comunicação. No geral, os donos da imprensa nacional compõem uma meia dúzia de famílias que, de forma capilar, acabam se reproduzindo em todos os estados da federação. Em cada um deles se pode observar o monopólio de um determinado grupo, que tem ligações muito próximas dos “jornalões” e TVs do eixo Rio-São Paulo. E, como os donos são sempre parte das elites locais, a forma de enxergar o mundo passa pelas lentes conservadoras e muitas vezes oligarcas.

Quando a ditadura militar terminou, o processo de censura estava consolidado. Mesmo com a volta da chamada democracia, nos veículos de comunicação os temas proibidos pelos militares continuavam proibidos. Basta lembrar a cobertura dos fatos que envolviam o MST. Ainda na metade dos anos 90, falar de sem-terra era aberração. E, quando estes temas puderam ser mostrados, a faceta policialesca do jornalismo seguiu de dentes arreganhados. Gente em luta logo era enquadrada nas caixinhas de “bandidos”, “baderneiros”, “invasores” e, agora, em pleno século XXI, “terroristas”.

Isso mostra que o terrível momento da censura e toda a sua organização institucional e empresarial, tão bem narrados por Beatriz Kushnir, ainda não acabou. Se assim fosse por que teríamos as matérias da Veja? Ou os editoriais raivosos do Jornal Nacional? Por que causa tanto medo à elite que domina os meios de comunicação um Conselho de Comunicação que junte movimentos sociais, sindicatos e gente do povo? Por que a idéia de ter gente “comum” discutindo a comunicação é apresentada como a possibilidade da censura? Por que regular a atividade de comunicação está sendo chamada de censura?

Na verdade, toda essa algaravia de que o Conselho vai trazer a censura é o exercício da má-fé dos mesmos de sempre, os que, inclusive, sustentaram todo o processo de censura nos anos de chumbo. A chamada “imprensa livre” não quer controle, não quer ninguém metendo o bedelho na sua extração de mais-valia ideológica, como bem já analisou o pensador venezuelano Ludovico Silva. A proposta do movimento social organizado não é a da censura. Não é esconder temas, proibir palavras, impedir que a vida real se expresse nos meios. Pelo contrário, o que foi construído pelos movimentos ao longo desta infindável transição para a democracia é a proposta de controle social, algo absolutamente natural num espaço que se diz democrático. As gentes têm sim o direito de opinar sobre o que sai na TV e no rádio. Estes setores são concessões públicas e a sede do poder é o povo. As pessoas têm sim o direito de estudar, discutir e deliberar sobre a programação e os horários de exibição de determinados conteúdos. Isso não é censura. Censura é o que os donos da maioria dos meios fazem hoje ao ocultar fatos, ao não contextualizar os acontecimentos, ao obscurecer a verdade. Isso é censura! O exercício do poder de veto de uma elite, dona dos meios.

Por isso que num momento como esse, de profunda desinformação provocada pelos mesmos meios, seria bem importante a leitura do livro de Beatriz Kushnir. Porque ela dá nome e sobrenome aos donos dos meios e aos jornalistas que colaboraram com a ditadura e com a censura. Porque mostra que ser jornalista não significa, em última instância, ser crítico. Não o era, naqueles dias, com grande parte dos jornalistas formados à facão, nas redações e na vida, e continua assim hoje, com os jornalistas formados em cursos na maioria medíocres e colaboracionistas em igual medida, articulados mais com os empresários do que com os trabalhadores.

Beatriz desvela esse universo desconhecido do período da ditadura militar que vai de 68 a 88 (quando da Constituinte), e isso é bom, porque, afinal, a imprensa só fala bem de si mesma, e os jornalistas críticos não têm onde escrever. Então, estas histórias muitas vezes só podem ser contadas assim, quando são objetos de dissertações ou teses. No caso da Beatriz avançou, virou livro e está aí para ser devorado.

Na história, o jornalismo sempre serviu às elites

É claro que um trabalho de gênese acadêmica tem suas limitações. Ele precisa de recortes, é o que pede a academia, tão pouco afeita a totalizações. Nesse caso, da discussão do jornalismo colaboracionista em tempos da ditadura militar, faltou um pouco da história do próprio jornalismo. Porque se a gente mergulha nessa história vai perceber que o papel da imprensa não é, nem nunca foi fiscalizar o poder. De que a imprensa não é, nem nunca foi um “quarto” poder. Ela é braço forte do poder instituído pelos poderosos, pelas elites.

O jornalismo como profissão, como espaço de divulgação diária de notícias sobre o mundo, nasceu com o capitalismo. Não que não houvesse jornalismo antes, se considerarmos jornalismo o ato de noticiar algo sobre o mundo. Os desenhos pré-históricos são notícias, as tábuas da mesopotâmia são notícias, as pedras chinesas são notícias, a bíblia, o alcorão, os vedas, a ilíada. Tudo isso são notícias. Mas o jornalismo, tal como o conhecemos hoje, como espaço da informação diária, ela própria virada em mercadoria, é cria do capitalismo. Os jornais diários são criados para o anúncio das mercadorias. Os textos são assessórios.

Assim, se é o capitalismo que cria o jornalismo, o que podemos esperar desta prática humana? Nada mais nada menos que ela trabalhe para a consolidação daquilo que é o próprio sistema que a engendra. Se for assim, é da natureza do jornalismo ser colaboracionista do sistema. Do status quo. Por isso, durante a ditadura iniciada em 64, assim como no Estado Novo, boa parte do jornalismo esteve a serviço do sistema. Então, o que o trabalho da Beatriz nos revela é pura e simplesmente o jornalismo sendo ele mesmo.

Ao longo da história do jornalismo nós vamos observar que o que sempre esteve em questão foi a liberdade de expressão dos donos do poder. As situações de crítica ou do jornalismo assumindo a frente de denúncias, desvendando maracutaias, etc, sempre foram coisas pontuais, espaço específico de alguns “jornalistas”, hereges, os fora da casinha. Pessoas, seres humanos comprometidos com uma outra visão. E também, ao longo da história podemos perceber que quando estes jornalistas tiveram poder, é porque de alguma maneira estavam ajudando seus patrões a ganharem dinheiro, ou porque estava acontecendo alguma mudança de temperatura do mundo, como por exemplo, no período da abolição.

E os dias atuais?

Vamos nos remeter ao hoje. Qual a diferença entre o jornalismo entreguista e colaboracionista dos anos de chumbo e o de hoje? Qual a diferença do jornalismo praticado pelos Frias/Caldeira naqueles dias, e o praticado pela Globo hoje, ou qualquer outro, Diário Catarinense, Record, etc??? Como eles noticiam as FARC, os fatos na Venezuela, na Bolívia, em Cuba? Como são as manchetes? Que denúncias aparecem na televisão, se não aquelas que são levantadas pelos repórteres/policiais, que sobem os morros no carro da polícia? Quem são os terroristas de hoje, apontados com nome e sobrenome na televisão? Nada mudou. É da natureza do jornalismo ser parceiro do sistema.

Agora, mesmo diante desta realidade e justamente porque o jornalismo é feito por pessoas, ele pode escapulir de seu leito. O jornalismo, então, pode ser crítico. Sim, pode. Assim como o direito pode ser crítico, a arquitetura, a história, a medicina. Todos os saberes podem ser críticos se as pessoas forem formadas para isso, se aprenderem a fazer uso da criticidade. Mas, como sê-lo se a escola é formatadora de uma mentalidade conservadora, se a universidade é hoje um dos espaços mais atrasados, de colonialismo mental, de reprodução do mesmo?

Há um autor gaucho que formulou seu pensamento mais original em Santa Catarina, na Universidade Federal: Adelmo Genro Filho. Ele criou o que chamou de “teoria marxista do jornalismo”. Também compreendeu que o jornalismo é filho dileto do poder instituído, do capitalismo, mas, igualmente percebeu que o jornalismo não é um “ente”, algo imobilizado, cristalizado. Ele é praticado por pessoas. E estas são passíveis da dialética. Portanto, o jornalismo apresenta brechas. E os jornalistas críticos podem e devem mergulhar nessas brechas, trazendo para os leitores/ouvintes/espectadores um texto que possa caminhar da singularidade do fato até a universalidade de toda a atmosfera que envolve aquele acontecimento singular. Isso tira o maniqueísmo do processo jornalístico e ele pode ser crítico em qualquer tipo de sistema. Adelmo é pouco conhecido na universidade, talvez por sua teoria ser “marxista”, o que só consolida o atraso da academia.

No caso da ditadura militar brasileira, foi o jornalismo alternativo que usou do expediente de ser crítico. E hoje, igualmente é o alternativo que combate o jornalismo chapa branca, que se entrega aos dominantes. Mas, já não mais apenas como o jornalismo, tal qual o conhecemos, e sim como uma proposta original, nascida das entranhas do que deveria ser, de fato, a sede do poder, ou seja: o povo organizado. É a proposta da soberania comunicacional, na qual está inserida a ideia de um conselho de comunicação democrático, onde as gentes sejam protagônicas.

A soberania comunicacional

Por isso que não trabalhamos mais com a ideia de democratização da comunicação, que era válida nos anos 90, mas que, agora, encontra seus limites. Democratizar implica em melhorar o que aí está. E não é isso que queremos. Nossa proposta é a de soberania comunicacional, algo que pressupõe o novo, o absolutamente novo. O jornalismo reinventado, o jornalismo assumido pelas gentes organizadas. Porque as pessoas sabem que o jornalismo que aí está não lhes diz respeito. Por isso foi tão difícil aos jornalistas, e eu diria que foi impossível, fazer as gentes compreenderem porque o STF devia manter a exigência do diploma para o exercício da profissão. As pessoas não se reconhecem no jornalismo dos grandes meios, não se vêem. Sabem que não os representa. E isso provocou uma profunda derrota aos trabalhadores do jornalismo, vitória para os patrões, que agora poderão explorar mais.

Mas, é por conta de não se reconhecerem no jornalismo oficial, dos grandes meios, que os movimentos sociais estão se apropriando das técnicas de comunicação para contar suas histórias. Querem produzir conteúdo, controlar os meios, decidir o que é importante ou não. Querem exercer a soberania. Uma grande batalha com a corporação, mas que precisa ser pensada e compreendida. A luta contra o capital pressupõe a parceria com o povo. Sem as maiorias os jornalistas que estão fora do sistema de colaboração tampouco poderão avançar.

Não é sem razão que o sistema de poder, a se ver ameaçado pelo povo, a verdadeira sede do poder, revê suas estratégias e as legaliza, como vimos no livro de Beatriz Kushnir “Os cães de guarda”, no qual ela mostra como a ditadura ia criando as leis que determinavam a censura, amparando “legalmente” os desmandos de um governo ilegalmente constituído. Por isso, não causa surpresa, hoje, a decisão jurídica definida pelo STF no que diz respeito à profissão do jornalismo. Os empresários temem a opinião pública bem informada, tal como já alertava George Orwell, no seu prefácio ao livro “Revolução dos Bichos”. Assim, com medo do povo informado e caminhando para a soberania, os donos dos meios inviabilizam a presença da massa crítica nas redações dos seus veículos. Desregulamentar a profissão é diminuir ainda mais a chance de qualquer pensamento crítico nos meios de comunicação de massa, porque, afinal, mesmo levando em conta a formação colonizada, sempre há a possibilidade de alguém escapar. Agora, sem lei que os ampare, sem exigência de formação, será mais fácil contar com os colaboracionistas, os que se autocensuram em nome da manutenção do emprego. Jogada de mestre.

Uma olhada no acórdão do STF e lá está: “os jornalistas são os que se dedicam profissionalmente ao pleno exercício da liberdade de expressão. Estão ligados e não podem ser pensados separadamente, então a regulamentação da profissão vai contra o direito inalienável de expressão”. Ora, que relações perigosas da justiça com o empresariado provocam uma fala como essa?

O jornalismo é uma profissão, a liberdade de expressão não depende do jornalismo. Qualquer ser humano pode escrever uma carta, pintar um muro, fazer um desenho, gritar na praça. O jornalismo é uma profissão que, por acaso, usa a palavra. Mas, agora, desregulamentado, se prestará ainda mais ao jogo obsceno na censura velada. E aí estamos de novo no mesmo mundo de 68, 69, 70. A proposta dos conselhos de comunicação, com a participação de outros setores da sociedade organizada, não garante nada, nem democratização, nem soberania. Isso pode ser visto em outros conselhos já existentes como o da saúde e o da educação. Mas é um espaço importante de organização, de compreensão. Ou seja, é espaço “perigoso”, que pode provocar esclarecimentos, que pode fazer as gentes avançarem para o desejo de soberania. Por isso esse é um tema tão atacado. As elites têm medo do povo e isso é muito bom. Não é à toa, portanto, que os dignos representantes da elite nacional falem tão mal do conselho, e se esganicem falando que eles trarão a censura. Porque, na verdade, é o contrário. O povo não trará a censura e sim o esclarecimento. E isso é coisa difícil de engolir.

Então, não surpreende que nas redações continuem vicejando os cães de guarda, mais do que nunca. Aos jornalistas críticos estão relegadas as margens, o alternativo. Com a diferença de que, agora, estes e as gentes, juntos, poderão avançar no rumo da soberania comunicacional, construindo com os movimentos organizados um outro tipo de estado, que não este, e uma outra forma de organizar a vida, que não a capitalista.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Os mortos


Esta bela homenagem aos mortos aprendi com os povos originários da Bolívia. Quando é dois de novembro eles fazem festas e comilanças para receber os que já partiram desta vida, porque acreditam que nesse dia eles vêm para passear entre os vivos. Na véspera as gentes ajeitam as fotografias ou qualquer outra lembrança dos seus e preparam pãezinhos doces para que eles sintam-se acolhidos com o gosto da vida boa. Junto das fotos ficam também dois pães bem especiais, feitos em formato de cavalo e de escada. É que contam os mais velhos que, durante a noite, os mortos descem do céu pela escada que ali está e, com o cavalinho, eles saem a passear de casa em casa, visitando parentes e amigos. Dizem ainda que sempre acontece algo inusitado para avisar que os mortos estão por aqui. Um vento, uma porta que bate, qualquer coisa assim...

Foi assim que neste dois de novembro preparamos nossos mortos. Cada um deles foi colocado na cesta dos pães junto com a escada e o cavalinho. Todos puderam descer e andar por aí, comendo, dançando, cantando ou apenas conversando. O Renato fez os pãezinhos com chocolate e nós desfrutamos de um delicioso café. Durante o dia percebemos que os mortos por ali passavam, um a um, fosse num passarinho a cantar desvairado, na brisa suave, no sol quente, no pula-pula dos gatos que, como se sabe, são os que podem ver os espíritos. Falamos dos nossos mortos com alegria, lembramos suas manias, sua loucuras, suas coisas boas. Demos bastante risada e comemos juntos.

Na Bolívia chamam estes pãezinhos com cara de gente de tantawawas, aqui os fizemos do nosso jeito, mas com a mesma fé. Lá, como aqui nesta humilde casinha do Campeche, se acredita que os mortos nunca morrem enquanto houver alguém que se lembre deles. E se lembra deles com alegria, porque um dia passaram por nossas vidas e nos deixaram toda essa beleza.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Uma mulher na presidência


Sempre admirei as mulheres valentes e ainda me arrepio ao lembrar Micaela Bastidas, vendo seus filhos e seu marido serem esquartejados, impávida, sabendo que havia feito a coisa certa: lutar pela liberdade, contra o colonialismo, pela sua terra e pelo direito de ser quem era. Encanta-me a história de Juana Azurduy, espada em punho, lutando pela libertação desta “nuestra América”, encurralada, com seus filhos nos braços, sem nenhuma vacilação. Ou ainda Bartolina Sisa, comandando as tropas aymaras no cerco a La Paz, poderosa como uma deusa, a alertar para o perigo da conciliação de classe. E Manuelita Saenz que, desde seu profundo amor por Bolívar, se fez generala, defendendo a liberdade assim como defendia seu homem, adaga na mão, lutando contra os assassinos. Ou Anita Garibaldi, que enfrentou o olhar de reprovação dos seus e partiu, montada em seu cavalo, com seu amor, empunhando a espada na luta pela liberdade. Ah, essas mulheres...

Poderia ainda citar outras tantas que, nestas terras de Abya Yala, mostraram seu valor, entregando a vida para construir um mundo novo, que garantisse a liberdade e a soberania popular. Mulheres guerreiras que simplesmente foram à luta sem reivindicar diferença de gênero, porque o que estava em jogo era o futuro das gentes e isso era tudo o que importava. E foi porque me criei ouvindo estas histórias que nunca fui muito afeita a esse debate feminista. Desde pequena, nas planuras da fronteira, as mulheres da minha vida, poderosas, estavam muito mais para Ana Terra que para Bibiana. Sempre prenhas de minuano e horizontes, as mulheres da minha infância empunhavam armas, corcoveavam nos cavalos bravios, banhavam-se nuas nas sangas, dormiam com seus homens na campina, disputavam carreira, queda de braço, tomavam caçacha e ainda lavavam roupa e faziam comida, com o palheiro acesso entre os lábios e aquele olhar de picardia.

Digo isso para alertar sobre o fato de que termos agora a primeira mulher presidente não quer dizer muita coisa. Porque antes de tudo é preciso saber: que projeto de país tem essa mulher? Que propostas têm para a educação, a saúde? Que modelo econômico vai defender? Com que valentia vai enfrentar a oligarquia agrária? Como vai enfrentar o tema dos povos originários? Até onde vai ceder diante da pressão das transnacionais? O quanto vai efetivamente tornar real o serviço público capaz de atender as demandas concretas da população? Assim, o fato de ser mulher não a torna especial. O que a fará única e “imorrível” é o caminho que vai trilhar. Basta lembrar Margareth Tatcher, a dama de ferro, mulher. E aí? Qual o seu legado para a Inglaterra? Para quem governou? Quem não se lembra da lenta e cruel destruição da categoria dos mineiros?

Dilma Russef tem uma linda história. É, sem dúvida, uma guerreira. Passou pela luta contra a ditadura, foi presa, torturada e tudo o mais do pacote básico das violentas ditaduras desta nossa América. Sobreviveu não só no que diz respeito à vida mesma, mas também na capacidade de superar e constituir uma bonita carreira profissional e política. Mas, no governo de Luis Inácio, foi “a mãe” do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que, muitas vezes, mal planejado e eleitoreiro, não cumpriu com a sua promessa de melhorar a vida das gentes. Um exemplo da minha aldeia: aqui, no bairro Campeche, o PAC financiou a construção de uma rede coletora de esgoto. Isso é bom. Mas a proposta que tem para o destino final é a construção de um emissário que leve os dejetos todos para o mar, poluindo e destruindo a natureza. Que crescimento isso acelerou? Também foi ela quem ajudou a derrubar os “entraves ambientais” para a construção de grandes usinas, comprovadamente nocivas ao meio ambiente e as gentes. Isso foi ruim, muito ruim. Que o digam as gentes ribeirinhas e os povos indígenas.

Agora ela aí está. Competente, séria, dedicada, criatura do Lula, a quem agradeceu emocionada no seu discurso de posse. “Sou uma mulher de esquerda”, declarou em uma entrevista. “Vou governar para todos”, insistiu na sua fala à nação pouco depois de eleita, e deu bastante ênfase a idéia de desenvolvimento, fazendo crer que o Brasil pode entrar para o seleto clube dos países centrais. Mas, é isso que se quer? Ser “desenvolvido” como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França? Ser predador, explorador, imperialista? Há que ver qual é a estação final a qual Dilma quer chegar.

Os oito anos de Luis Inácio foram anos de bonança para a elite nacional. Nunca os ricos ganharam tanto, nunca os bancos ganharam tanto, nunca os latifundiários ganharam tanto. O próprio Luis Inácio admitiu isso em um de seus discursos. É fato que os pobres tiveram um quinhão do bolo, mas, vamos combinar, um pequeno quinhão. O bolsa família deu sobrevida a uma gente que definhava, mais ainda não lhes apontou o caminho da libertação. Criaram-se 14 novas universidades, que ainda patinam na qualidade. Com o Prouni, deu-se muita grana para as escolas privadas, embora isso garantisse vaga para alunos carentes. Então, não dá para negar que houve alguns avanços, mas sempre se reivindicou que era preciso mais. Muito mais.

Hoje, na senda neodesenvolvimentista apregoada por Dilma, estão encerradas as promessas de crescimento econômico e social, o que parece coisa boa. Mas, talvez falte ao governo explicar a custa do quê isso pode acontecer. Se antes o chamado desenvolvimento estava bloqueado pela dívida externa, hoje, sendo o Brasil periferia e dependente, esse tal desenvolvimento só pode chegar com o sacrifício da maioria, os mais pobres. E sempre tem sido assim. Desenvolvem-se os mais ricos, recorrentemente.

Dilma falou em diminuir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, em acabar com a miséria, com a cracolândia, com o atraso. Promessas grandiosas que serão cobradas. Mas, na queda de braço com a elite nacional é que se poderá ver até onde vai a posição de esquerda da nova presidente. Existe aí um grande desafio que não será vencido sem uma mudança radical na proposta de organização da vida. O desenvolvimento sonhado não pode ser o mesmo dos países centrais. Há que se avançar para uma proposta nacional popular, capaz de realmente garantir a participação popular efetiva e protagônica. Sem a soberania do povo os avanços serão pífios.

Enfim, aí está a nova presidenta, uma mulher que “sim, pode”. Mas, feminina ou não, sua proposta de governo estará sob as luzes, e a nós cabe acompanhar. Sabemos que na composição PT/PMDB não deve haver espaço para o avanço no rumo do socialismo. O que se pode esperar são algumas reformas, e muitas delas serão contra as gentes, como a anunciada nova reforma da previdência, cuja versão européia está levando milhões às ruas no velho continente. Isso significa que não há tempo para esmorecer na luta por outra forma de viver. A luta das gentes segue e seguirá até que se construa, coletiva e conscientemente, a nova sociedade.

domingo, 31 de outubro de 2010

A eleição pelo mundo

Brasileiros no exterior votaram. Serra vence em Israel, Dilma vence na Cisjordânia. Sintomático não? Serra vence no Reino Unido, Dilma vence no Líbano. Tudo está no seu lugar...