sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Dia do papito


A manhã nasceu radiante no Campeche. O sol em esplendor, o verde das plantinhas e a alegria dos animais. Tudo isso para saudar os 86 anos do meu papito. Há dois anos vivendo comigo, ele resiste entre pequenos esquecimentos e doces lembranças do passado longínquo. 

Vamos vivendo um dia após o outro, entre risos e brincadeiras, reinventando a relação. Por vezes é duro, mas no geral é puro encantamento. Nada que o cuidado e o amor não resolvam... Hoje dou pago aos deuses e deusas por ainda tê-lo comigo e por ainda estar me ensinando coisas. Algumas eu havia esquecido e outras são surpreendentemente novas... 

Viver é um presente... E foi ele quem me deu..


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

O jornalismo na Realidade



O livro “REVISTA REALIDADE 1966–1968: Tempo da reportagem na imprensa brasileira”, de J.A. Faro, é um mergulho na saudade, na beleza e na nostalgia. Fala de um tempo no qual o Brasil despertava para a “modernidade”, ampliava horizontes, derrubava tabus. Caminhando junto com a recém-imposta ditadura militar, o país se debatia entre o arcaísmo e as mudanças revolucionárias nos costumes e na cultura. No meio disso tudo acontece o projeto Realidade, uma revista que, amparada no espírito do tempo, provocou uma mudança radical na maneira de fazer jornalismo. 

Jogando peso na questão cultural, Faro consegue estabelecer de forma clara como a revista vai se desenhando no cenário brasileiro e, ao mesmo tempo, redesenhando o próprio cenário a partir de suas matérias. Com textos belos, provocativos, literários, as reportagens se utilizam do extremo realismo para narrar as mazelas sociais e políticas do país. “Não era só um movimento estético-literário”, diz o autor. Havia uma cumplicidade patente com toda a revolução cultural que se esboçava na década de 60 e, mais do que isso, havia o desejo sincero dos jornalistas que faziam a revista em transformar a cara do país. 

Naqueles dias, a ditadura ainda não havia mostrado sua face mais terrível e havia esperança. A análise de J. A . Faro parte da discussão de como foi a formação cultural do povo brasileiro, a construção da identidade, a formação do nacionalismo e a obsessão de se criar uma imagem nacional unificadora. Depois, discute como a indústria cultural interfere e influi na produção nacional, sem, contudo, determiná-la, fazendo questão de frisar que há uma diferença radical no que seja a imprensa em geral, que chama de técnica, e o jornalismo, que chama de discurso. 

Para ele, a revista Realidade trabalha com a extinção dos limites do discurso racionalista e tenta superar o caráter mutilador da ideologia do cotidiano, abolindo sem dó nem piedade o mito da objetividade. Os textos de Realidade são construções literárias, carregadas de impressionismo, onde o repórter anda, sente, cheira, sente dor. É um texto quase cinematográfico, que vai descortinando as personagens, trazendo-as às retinas do leitor. Uma narrativa que rompe com a maneira convencional de fazer jornalismo, introduzindo elementos ficcionais e de verossimilhança. “Na Realidade o repórter tinha que se colocar como um pesquisador, nenhum detalhe, nenhuma personagem, nenhuma causa e efeito, nada podia faltar. Texto igual só no new jornalismo americano”, diz Faro. 

Como uma boa história, o livro vai carregando a gente pelo mundo da reportagem. E das páginas saltam João do Rio e Euclides da Cunha, os precursores dessa categoria hoje quase em extinção: o repórter. Faro lembra que tanto um quanto o outro não chegaram a inaugurar uma escola, pois faziam sua obra de forma isolada. Euclides, narrando Canudos; João do Rio, revelando a vida real das ruas, dos bairros do velho Rio. 

Depois, o autor vai contextualizando historicamente a trajetória da reportagem pelos anos 30 e 40, até os anos 50, quando a revista O Cruzeiro amplia a ideia desse gênero narrativo. O projeto Realidade, nos anos 60, vai ser então o ponto culminante da reportagem no Brasil. E é sobre ele que Faro discorre, mostrando quem eram os jornalistas que produziam as reportagens, de onde vinham, quais seus projetos políticos. Acaba revelando que havia uma estreita relação entre aquelas pessoas e os anseios sociais, típicos daqueles tempos. Havia um país que queria compreender-se e havia um grupo, articulado numa determinada publicação, que estava disposto a desvendar esse país, compreendendo-o e compreendendo-se. 

O profissional da imprensa, na Realidade, é mostrado como um militante do seu tempo. Os anos 60 eram tempos de ebulição. O mundo todo era sacudido por mudanças que iriam transformar para sempre a cara do planeta. O Brasil também estava inserido nisso e foi essa percepção, de que havia um mundo em mudança, que fez a diferença na revista Realidade. Valores até então intocáveis como a ideia de família, por exemplo, eram pautas permanentes na revista. Aborto, contracepção, feminismo, divórcio, jovens transviados, igreja progressista, tudo isso era discutido de forma aberta, com várias visões, deixando ao leitor a possibilidade de tomar posição. 

No trabalho de Faro cada tema desses é discutido com vagar. Há um capítulo específico para a mulher, a igreja, a política, a economia, a sociedade, visões de mundo, América Latina, cotidiano, ciência, educação, vida urbana. E em cada um deles se pode encontrar parte dos textos originais publicados na revista. Trata-se, pois, de um livro que todo o bom jornalista deveria ler, para se deliciar com as construções narrativas daquele grupo de repórteres que ousou sair dos velhos caminhos, da estrada asfaltada do jornalismo convencional, e se perder nos labirintos das estradas secundárias, da experimentação, da beleza, da autoria. 

O autor encerra seu trabalho sobre esses primeiros dois anos da revista Realidade afirmando que ela foi mesmo um divisor de águas, que mudou concepções, que abriu caminhos para reformulações até no jornalismo diário, como no Jornal da Tarde, que materializou a utopia do texto independente. Mas, segundo ele, esse tipo de jornalismo foi fruto de uma determinada conjuntura, de um momento histórico bem específico no país. Encerra dizendo que pensar em retomar esse projeto é absolutamente impossível. 

Depois de viajar por cada letrinha da bem construída história de Faro, esse final deixa um gosto meio amargo na boca. E remete a uma reflexão sobre sua conclusão tão definitiva. A história é sempre um turbilhão e, se considerarmos o seu movimento contínuo, quem garante que esse texto impressionista não possa voltar, dialeticamente, num outro nível, de outra forma. O jornalismo belo, utópico, impressionista, realista, de autor, continua aí latente, talvez um pouco escondido nas estradas laterais, secundárias, nos jornais alternativos, nos jornais comunitários, em algumas publicações do interior, e até nos grandes veículos nacionais. 

Talvez seja necessária uma nova conjuração de astros, como a que houve em 60, para que esse tipo de jornalismo venha a ser, se não hegemônico, pelo menos mais visível. Mas que ele ainda existe, disso não tenho dúvidas. Assim sendo, retomá-lo não é impossível. Impossível é não acreditar que ainda é possível fazer reportagem com o mesmo amor, com a mesma gana, com o mesmo compromisso político-social daqueles que fizeram acontecer a Realidade. 

Texto publicado na Revista Famecos, em junho de 2000