sábado, 4 de setembro de 2010

Passeio no inferno


Florianópolis, sexta-feira, véspera de feriadão do sete de setembro. Vindo da UFSC para o centro, num trajeto que demora em média 15 minutos, amarguei 50. Tudo muito lento e nem eram cinco da tarde. Fila no túnel, final por todo lugar. No centro da cidade aquele burburinho de bandeiras e sons, coisas da política. Desci do ônibus e fui dar uma fuçada na vida que se espraiava pelas ruas. De repente, uma infinita tristeza, uma saudade imensa dos tempos em que fazíamos política com amor e gosto.

Quantos namorados perdidos por conta das intermináveis reuniões, os briques de venda de materiais na esquina democrática, as passeatas com a Banda de Amor à Arte, aquele orgulho de carregar a bandeira vermelha. Tudo era tão cheio de paixão. Nas ruas, abundavam os militantes, pessoas que trabalhavam sem parar em nome de uma mudança sonhada. Éramos tão felizes naquele esperar...

Agora não é mais assim, as bandeiras ainda tremulam nestas épocas de eleição, mas as pessoas que as seguram não o fazem por amor ou crença. Estão ali ganhando seu pão. 10 ou 20 reais por dia. Não há passeatas, nem venda de badulaques na esquina democrática, não há militantes nas ruas. Tudo está esterilizado. Não há paixão. É mesmo um tempo de seca política. Falta tesão!
Sozinha e perdida no mar do vazio decidi voltar para o meu Campeche. Quarenta minutos esperando o ônibus no terminal central. Filas quilométricas de gente. Quando finalmente chega o coletivo parece que dá um frisson, as pessoas se acotovelam, se empurram e há uma corrida aos lugares, para que a viagem seja menos terrível, pelo menos sentado. Entra mais gente que cabe no ônibus. Bolsas gigantes nos roçam a cara, bundas e pernas se amassam. Os vidros fechados, o ar não funciona. Um sufoco danado.

Lá vamos nós para a viagem que deveria durar 20 minutos. O ônibus se arrasta. O povo bufa. As caras são de profunda tristeza. Os olhares são vazios, não há sorrisos nem buliço. As pessoas vão quietas, com o rosto sem expressão. Cada um está sozinho no seu mundo interior. Boa parte ouve alguma coisa no mp3, mas nada animado, pelo jeito. Ninguém ri. A viagem dura hora e meia e ainda há mais um terminal para enfrentar, outro ônibus para entrar, antes que a acolhedora imagem da nossa casa apareça.

No terminal do Rio Tavares o ônibus acabou de sair, o que significa que ficaremos mais meia hora na fila. E ela se agigantando. As mesmas pessoas sem expressão, como zumbis, naquela espera sem fim. Enfim, o ônibus. E lá vão todos se empurrando, tentando garantir um banco. Serão mais 30 minutos de viagem até chegar ao Jardim Castanheira, vindo pela Eucalipto. O ônibus parte, tem um cheiro estranho no ar, de queimado. As pessoas se olham. Hum!!! Isso não vai dar certo. O ônibus supera toda a Pequeno Príncipe e dobra na rua dos Eucaliptos. Numa das paradas, ele apaga. O povo começa a murmurar. O cobrador diz que tem um probleminha elétrico, o motorista insiste em dar a partida. O motor geme e arranca. O povo suspira aliviado, rezando para que ninguém mais aperte a campanhinha. Azar. Mais alguém quer descer. O ônibus para e novamente apaga. Ai Jesus. De novo a partida, geme, geme, geme e vai... E assim vai se arrastando o coletivo numa viagem que também se arrasta. Os que ficam no fim da linha estão em pânico. Não vai chegar. Alguém começa a xingar. Outro reclama sozinho e “la nave vá”... 45 minutos depois de sair do segundo terminal o ônibus finalmente para no Castanheira, meu ponto. Eu desço e fico olhando para ver se os demais terão sorte de chegar ao destino. O ônibus não dá partida, geme, geme, geme, e morre. As pessoas descem, gritam com o motorista. “Não tenho culpa”, ele diz, desolado. E o povo segue à pé. O cobrador pega o celular e chama o guincho. Fica ali, igualmente desacorçoado. “É a terceira vez esta semana”.

E assim termina o dia. Vou andando, cheia de mau humor. Dia duro. Lágrimas escorrem, para ver se afogam a raiva, a impotência, a solidão. O transporte coletivo em Floripa é sempre um passeio no inferno. Minha casa assoma na escuridão das ruas de areia. O cachorro acolhe, alegre. Os gatos enroscam seus corpos peludos. As estrelas brilham sob minha cabeça, o cheiro de dama-da-noite invade as narinas. Jogo as coisas no chão - livros, pão, mel, revistas - e fico ali no escuro. Amanhã é sábado e eu vou estar no Campeche, com minha bicicleta, a praia, o sol, os bichos, os meus. Ai que bom!!!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Na terra do Minotauro


Era manhã cedinho quando chegamos a Heraklion, capital da famosa ilha de Creta, espaço bendito do deus Taurus. Tudo ali evoca o sagrado. Desde o mar, azul demais, morada de Posseidon, até os corredores labirínticos do palácio de Knossos. Mas, foi difícil a tarefa de conectar com toda esta história antiga, repleta de mitos e lendas, devido ao burburinho dos turistas que mal escutam a fala das gentes locais, preocupados em tirar fotos. Depois de certo desconforto com tanta gente, tivemos sorte. A guia, que falava um fluente espanhol, era uma senhora de quase 70 anos, de nome Catarina. Experiente na profissão, ela levou o pequeno grupo do qual eu fazia parte pelo caminho inverso. Assim, enquanto todos os barulhentos turistas começavam o passeio pela porta de entrada principal, nós começamos pelo final, no anfiteatro.

A ilha de Creta é a maior ilha da Grécia e a quinta maior do Mediterrâneo. Transformada hoje num Centro Mundial de Turismo, tem 260 quilômetros de comprimento, variando de 12 a 60 na largura, e 650 mil habitantes que se dividem por entre três grandes cordilheiras. Está ao sul do Mar Egeu e tem sua economia baseada no turismo e na cultura da vinha, da oliveira e dos cereais. Segundo a história, ela já foi habitada desde o neolítico, há cinco mil anos antes de Cristo. Mas foi já na Idade do Bronze, no ano de 3000 a.C que na ilha floresceu uma das mais antigas civilizações da Europa: a civilização cretense. Por volta do ano 2000 a.C começa o período minóico, no qual foram construídos palácios gigantescos. Havia um profundo conhecimento da engenharia, da astronomia e o povo cultuava um deus personificado na figura do Touro. Conta-se que no ano de 1.700 a.C aconteceu um terrível terremoto que colocou no chão quase todos os palácios, mas, sob o comando do rei Minos tudo foi reerguido, com maior pompa e riqueza de detalhes, em alabastro, pedra e madeira.

A cultura minóica é reverenciada na Grécia como um dos momentos de grande desenvolvimento dos povos antigos. O povo de Creta dominava os mares e tinha a maior frota da época. Seu declínio começou por volta do ano 1.400 a.C. quando o vulcão de Santorini cuspiu fogo, seguido de um forte terremoto. Naqueles dias, uma onda gigante atingiu a frota e abriu caminho para a ocupação grega, que chegou sem guerra, uma vez que quase tudo estava destruído.

A descoberta dos palácios

O tempo passou e a civilização minóica virou lenda. Entrou para a cosmogonia grega como o território de um mito: o do Minotauro, monstro metade homem, metade touro, que vivia nos labirintos dos palácios do rei Minos e que só era acalmado com o sacrifício de virgens. Conta a lenda que ele – que era filho de Minos - só foi destruído quando Ariadne forneceu a Teseu o segredo para entrar e sair do labirinto. Ele entrou, matou o monstro e saiu seguindo um fio que deixara preso à entrada do palácio. Na verdade, conta Catarina, o mito do Minotauro surgiu por conta de que, na ilha, o Touro era reverenciado como um deus e nas festas de primavera havia celebrações onde os jovens dançavam e brincavam com um touro. Estes afrescos podem ser vistos com detalhes no Palácio de Knossos.

Até 1890, os palácios do rei Minos eram considerados frutos da imaginação dos contadores de história. Foi nesta época que um morador da ilha, coincidentemente chamado Minos, encontrou algumas cerâmicas com inscrições e percebeu que ali poderia estar um tesouro. Ele tentou levar adiante a escavação, mas, naqueles dias, o território estava ocupado pelos turcos, que não permitiram a busca. Foi em 1900 que um inglês chamado Sir Artur Evans, atraído pelas histórias dos palácios veio para Creta e comprou a colina onde Minos havia encontrado as cerâmicas. Não demorou muito e os palácios estavam descobertos, tudo sob a tutela do Museu Britânico. Hoje, o palácio de Knossos é parada obrigatória de quem vai à ilha e uma caminhada por ele torna bastante óbvia a origem da lenda do labirinto. O lugar é gigante e suas edificações são cheias de labirintos de salas e corredores.

A civilização minóica, que floresceu sob o comando do rei Minos era festiva e alegre. Tanto os homens como as mulheres passavam grande parte do tempo em atividades lúdicas, ao ar livre. Gostavam de dança, canto e touradas. Tinham uma escrita própria que demorou muito a ser decifrada. Na verdade, boa parte permanece inacessível, apenas se decifrou uma que trazia dados sobre o palácio, tais como detalhes da construção e controle dos armazéns. As diferenças de classe eram quase inexistentes e havia um equilíbrio muito grande. Minos era considerado um rei muito justo e no seu trono de pedra – o mais antigo da Europa – está estampado um glifo que representa um animal com cabeça de águia, corpo de leão e serpente, representando os três elementos da cosmogonia cretense: o céu, a terra e submundo.


Andando no labirinto

Sob o sol de quase 40 graus o palácio de Knossos adquire uma luminosidade impar e fica difícil imaginar um monstro meio homem, meio touro andando por ali em busca de virgens. Mais fácil pensar numa comunidade simples e prosaica, vivendo feliz à beira do mar. A estrutura tem um grande pátio central e um outro na parte oriental, próximo aos aposentos da rainha. Há grandes buracos com vasos gigantes, sobras de rituais e cerimônias sagradas. A sala do trono é pequena e muito singela. Há um pequeno trono de pedra e uma cabaça ritual, onde Minos fazia suas oferendas. Nela eram colocados óleos sagrados que fluíam para debaixo da terra, onde reinava a serpente, deusa do submundo, controladora dos terremotos. O teto é baixo e com pouca luz, para deixar mais profundo o ar de mistério. Já os aposentos pessoais, tanto do rei quanto da rainha são altos, arejados e cheios de luz, com pátios internos por onde crescem plantas.

Há dezenas de corredores de armazéns onde se guardavam o óleo, o ouro, a prata e os mantimentos. As paredes são pintadas com afrescos cheios de delicadeza e graça. Os homens são representados em marrom e as mulheres em branco, sempre com roupas frescas e vaporosas. Também aparecem com muitas jóias e em cenas de brincadeiras com o touro, danças e jogos.

O touro era sagrado porque a comunidade acreditava na antiga lenda de que o principal deus daquelas terras, Zeus, disfarçado de touro, havia raptado Europa e com ela gerara um filho. Este filho seria o rei Minos, daí a sua fama de homem sábio e justo, uma vez que era um semideus. Por conta desta lenda, todos os anos, acontecia a “taurocatapsia”, uma espécie de brincadeira com o touro, que reunia os jovens em jogos, acrobacias e festas, tendo nascido daí a lenda do Minotauro.

O palácio de Knossos também tem um sistema hidráulico muito sofisticado. Pode-se perceber que os cretenses tinham vários banheiros e cultivavam o hábito do banho diário. Há um sistema de canais que dividiam as águas negras da água da chuva, esta última sempre seguindo o rumo do rio, para que fosse renovado o ciclo da água. É bom lembrar que os construtores de Knossos também estão imortalizados pela história grega: são os arquitetos Dédalo e Ícaro. Para quem não se lembra, foi de cima de uma das torres do palácio que, Ícaro – sonhando em voar como pássaro - alçou vôo com suas asas coladas com cera. Diz a lenda que tanto chegou perto do sol que a cera foi derretendo e ele caiu no lindo mar Egeu.

A saída do palácio fez-se pela entrada norte, que dá caminho para o mar. Era por aquele portão que entravam e saiam os trabalhadores que tornaram famosa a frota cretense. Não é sem razão que bem ali está um enorme afresco com a figura de um touro. É Taurus, o deus, guardando e vigiando a vida de seus súditos.

Pelo caminho de mais de dois mil anos, ainda bastante bem conservado, seguimos em direção ao porto com a profunda sensação de ter estado num lugar mágico. Apesar do buliço das gentes, as colunas pretas imitando o alabastro, os afrescos cheios de vigor e a figura do deus em todo o lugar, dão a oportunidade de um encontro único com um povo antigo que, há mais de cinco mil anos, ali viveu de maneira tão alegre e pacífica. A brisa fresca das árvores que margeiam a saída do palácio murmura bênçãos, o touro nos mira e nos despedimos com a certeza de que os deuses ainda guardam o lugar.