terça-feira, 23 de abril de 2013

Democracia de ocasião



As eleições no Paraguai dispararam um alarme no quesito democracia. Imediatamente ao resultado, presidentes de diversos países da América Latina se manifestaram dando os "parabéns" ao presidente eleito. Cristina Kirchner, da Argentina, Pepe Mujica, do Uruguai e Juan Manoel Santos, da Colômbia. Com isso, ao que parece, já estão sinalizando que a Unasur, bem como o Mercosul, certamente restabelecerão o Paraguai que estava suspenso desde o golpe parlamentar do ano passado.  Conforme se pode ver divulgado em vários jornais, Cristina praticamente garantiu o retorno e Mujica declarou que "é muito importante que as eleições tenham ocorrido com normalidade e que o país tenha vivido a democracia na sua plenitude”. O embaixador Tovar da Silva Nunes, do Ministério das Relações Exteriores do Brasil também declarou que as eleições foram uma demonstração inequívoca de civismo.

Ora, isso não é verdade de forma alguma. Várias denúncias foram formuladas sobre a vergonhosa compra de votos que ocorreu pelo país afora. Tem até vídeo comprovando a ação de um senador do Partido Colorado, que teve como punição apenas a suspensão por dois meses. Então, seria bom fazermos algumas análises sobre de que democracia estamos falando, pois como dizia Lênin, a democracia não existe em seu estado puro, ela sempre pede um adjetivo. Nesse caso do Paraguai, em que comprovadamente as ações ilegais de compra de votos e coerção aconteceram, qual o adjetivo que haveria de ter a democracia? 

Ocorre que o Paraguai não é a primeira nação a passar por uma situação de golpe nos últimos anos na América Latina. A Venezuela foi golpeada em 2001, mas justamente a democracia participativa incentivada pelo presidente Chávez e pelo bolivarianismo, foi a que jogou as gentes na rua e exigiu a volta do presidente constitucional.

Depois, foi a vez de Honduras, que por haver se acercado da Venezuela recebeu o "castigo" do golpe militar. Mel Zelaya, ainda que saído das elites latifundiárias, defendia a soberania de Honduras e estava trabalhando para sair do atoleiro de nação sempre satélite dos Estados Unidos e das empresas multinacionais. Por esse "crime", pagou com a deposição pelas armas. Os países da órbita da América do Sul rechaçaram o golpe. O Brasil chegou a abrigar Zelaya na sua embaixada por muito tempo. Mas, foi só o país chamar eleições que todo mundo se aquietou. "Agora sim, voltou a democracia". Não importava que essas eleições tivessem acontecido sem a participação dos partidos de esquerda, ou que continuassem a ser assassinados os militantes sociais, sindicalistas, estudantes e jornalistas. As tais das eleições redimiam tudo. 

A pergunta que fica então é essa: é de eleições que se trata a democracia? Se elas acontecerem, não importa como, está tudo bem?  Pois, ao que parece essa é a receita que temos visto os Estados Unidos apresentar para os países que não se alinham com suas políticas ou que tenham alguma riqueza que eles cobiçam. A democracia que esse país imperial tem exportado para o mundo é a das eleições. Não importa que seja num mundo em que todo o ethos cultural exija outra forma de organização, não importa que elas aconteçam sob ocupação militar, com assassinatos em massa. O que tem de haver é eleição. As formas como elas se dão, ou o contexto na qual acontecem tampouco importa. Botou voto na urna e já chamam de "festa cívica".

Na América Latina já está soando o alerta vermelho. Só não vê quem não quer. Seria bom que a Unasur pudesse fazer uma longa discussão sobre esse tema porque se agora foram Honduras e Paraguai, amanhã pode ser a Argentina, ou o Brasil. E o que todos farão? Chorarão durante o golpe e celebrarão a democracia assim que eleições sejam chamadas? Fecharão os olhos para as condições objetivas nas quais estarão se dando as eleições? 

Democracia é muito mais do que eleição. É participação efetiva das gentes. É um sistema de governo em que o executivo manda obedecendo, sempre conectado com a maioria da população. É quando a maioria das gentes pode decidir sobre as coisas importantes que acontecem no país. Quando o poder popular é exercido de forma livre e sistemática e não apenas de quatro em quatro anos depositando um voto na urna, muitas vezes em condições de exceção ou subordinados ao poder financeiro.

Li várias opiniões nas redes sociais sobre o povo do Paraguai. Que gostam de seguir falsificados, que não têm cabeça por votar num multimilionário que vai depredar o país, que são burros e muitas outras coisas depreciativas. Mas, muito pouca gente sabe o que se passa no Paraguai desde que a Inglaterra, em 1864, incitou Brasil, Uruguai e Argentina a fazer uma guerra contra o país destruindo quase toda a sua população. Desde aí, desta vergonhosa invasão - que nem pode ser chamada de guerra, tamanha a desproporção das forças  - que o Paraguai vem servindo de chacota, como um lugar onde apenas existe contrabando e falsificação. 

Ocorre que o Paraguai tem um povo forte, que resistiu aos mais bárbaros sistemas de extermínio, que luta por terra, por moradia, por saúde, educação. Tem uma juventude que lutou bravamente contra o golpe. Tem trabalhadores batalhando por direitos. Mas, ao mesmo tempo, são acometidos por governos despóticos, ditaduras militares, e gângsteres. Não é coisa fácil se mover nesse universo, daí que fica difícil fazer julgamentos sobre as escolhas que fazem nesse momento ritual de eleição. Os paraguaios que estão em luta sabem muito bem que a eleição, da forma como acontece, é só um momento ritual, que não define nada. Nela atuam as forças econômicas, os interesses multinacionais, os embaixadores obscuros de países ricos. E também há os que se movem com medo, que precisam proteger as famílias ou o pouco que conseguiram amealhar. 

O Paraguai não pode ser motivo de chacotas por parte dos brasileiros. Esse país e tudo o que lá acontece também é nossa responsabilidade, porque como povo nós já fizemos parte de momentos duros e impactantes para as gentes irmãs. Da mesma forma, Honduras precisa estar na nossa agenda, porque lá, mesmo depois das tais "eleições livres" seguem sendo assassinados os seguidores de Zelaya, os sindicalistas, os jornalistas, os militantes sociais. 

A democracia não é uma coisa mágica que faz sua retumbante aparição num domingo qualquer, em que as pessoas saem a votar. A democracia é batalha diária, disputa cotidiana, participação sistemática. Essa democracia é que precisa ser incensada, lembrada, amada, buscada. O demais, é rito. Perigoso rito. 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Geografia da cultura em Florianópolis




A cidade de Florianópolis se vende como a capital do Mercosul, um espaço de belezas turísticas capaz de atrair os mais refinados gostos. Até aí não existem inverdades. De fato, a cidade é pura beleza, de uma natureza exuberante e uma cultura rica e original. Mas, ao longo dos últimos anos, tudo isso está esboroando. A beleza natural cede espaço para os prédios, condomínios e empreendimentos imobiliários de todo o tipo que estão apagando a beleza da costa. Das 42 praias que  só a ilha possui, pode-se contar numa mão aquelas que ainda não foram transformadas para dar lugar ao "progresso". Um certa insanidade porque os turistas que aportam na ilha querem ver a beleza das praias. Só que com a ocupação desenfreada e irregular, aos poucos a natureza vai dando lugar ao cimento e à loucura da vida urbana. Ou seja, transforma-se no contrário daquilo que os turistas, e os que buscam a cidade para viver, desejam.  

E, da mesma forma como a natureza vem sendo destruída, também a cultura está pagando o preço do crescimento da cidade. Com o inchaço das comunidades, muitas vezes de maioria forasteira, a cultura local vai desaparecendo. Nada contra os "de fora", mas, ao que parece, muitos dos que aportam na ilha preferem não se integrar aos ritmos culturais autóctones e, aos poucos, a riqueza da vida ilhoa vai se perdendo, com a priorização de eventos de caráter homogeneizado, representando a cultura "global" tais como os grandes shows musicais e festas ao estilo "jet-set".

Uma das construções culturais que pena para se firmar é o boi-de-mamão, brincadeira de danças e cantorias típicas da região de descendência açoriana. Poucos são os grupos que sobrevivem na cidade e raras as escolas que ainda se dedicam a ensinar a brincadeira e a construir os personagens. Mesma a festa do boi que a prefeitura realiza de tempos em tempos, não reverte em vivencias cotidianas locais, ficando apenas como um evento a mais no cartel turístico. O pão-por-deus, outra tradição cultural na ilha também já vai se perdendo nas brumas das memórias dos mais velhos. Os pequenos versinhos rimados, escritos em um coração de papel, oferecidos junto com um pão, vivem no cotidiano de poucos e também o seu caráter comunitário se esfuma, já que as comunidades cresceram e estão cheias de pessoas que não se importam com as velhas práticas locais. A renda de bilro ainda resiste na lagoa e em alguns outros espaços bem delimitados. Não se vê a juventude aprendendo a construir belezas com o batucar delicioso dos bilros de pau. Assim também acontece com a prática da olaria, hoje praticamente transformada em folclore, quase sem seguidores.  

A cultura para quem?

E se a cultura popular da ilha de Santa Catarina se arrasta em indigência e falta de apoio, também falta à população espaços de outras formas de cultura, para que possam se alimentar de belezas e reinventar as práticas comunitárias. Há alguns anos, a prefeitura criou um projeto bastante interessante chamado "Floripa Letrada", a partir do qual foram instalados espaços nos terminais de transporte urbano, para o empréstimo de livros. As pessoas, esperando o ônibus, podiam pegar livros e revistas e, inclusive, levar para casa. O projeto ainda existe, mas o cuidado com os livros oferecido é praticamente nenhum. O que se vê são depósitos de livros velhos, sem maiores critérios e sem uma preocupação real com a distribuição de obras de autores catarinenses, por exemplo. Na verdade, são livros que ninguém quer. Perde-se a chance de encantar as pessoas com boas obras.

No que diz respeito ao acesso aos equipamentos culturais que uma cidade deve ter, também a situação é sofrível. Os cinemas estão praticamente todos dentro dos "xopingues", cercados de tantas outras formas de sedução e com ingressos tão caros que é praticamente impeditivo para um trabalhador assistir a um bom filme.  Os teatros, excetuando o belo e velho TAC (Teatros Álvaro de Carvalho), que fica no centro da cidade, ficam completamente distantes da vida da maioria. O Centro Integrado de Cultura (CIC) sequer tem uma parada de ônibus na frente. Para chegar até lá, aos que não tem carro, é preciso pegar um ônibus que para na parte de trás e andar um bocado para entrar no local. Da mesma forma, por conta da falta de mobilidade na cidade, se uma pessoa  que mora num bairro do norte ou do sul decidir ver um filme no CIC, está frita. Com a sessão terminando perto das onze da noite, a pessoa corre o risco de não conseguir pegar um ônibus para chegar em casa.

O mesmo acontece com o Teatro Pedro Ivo, construído na sede do governo estadual que fica na SC 401. Uma pessoa ônibus-dependente não pode desfrutar dos eventos teatrais ou dos shows musicais. Certamente não chega em casa por falta de mobilidade. Assim, a geografia da cultura em Florianópolis está toda preparada para uma pequena parcela que pode se deslocar de carro e pode pagar caro para usufruir dos bens culturais.

Os eventos que acontecem no centro da cidade ou no mercado público são muito esporádicos e, por conta disso, não conseguem criar vínculo com as pessoas. A sede por cultura é grande e isso pode ser notado em momentos como o  do Festival Isnard de Azevedo, que leva o teatro para a rua, para os bairros, gratuitamente. As pessoas participam, gostam, se deixam ficar. Mas, isso só acontece uma vez ao ano, quase como um evento ritual. Não se vê, no cotidiano da cidade, o teatro pelas ruas. Até porque, como também não há uma política de incentivo à arte por parte do poder local, os artistas tampouco conseguem oferecer espetáculos á maioria da população . É um triste círculo vicioso que não encontra paradeiro. Os realizadores culturais precisam se virar nos 30 para conseguir montar uma peça, fazer um show, montar uma exposição. É tudo muito difícil. Para complicar, também não existe uma organização ativa dos artistas e gente da cultura. Cada um batalha por si e a força se esvai.

Algumas ações isoladas sempre acontecem nos bairros. Na região de Santo Antônio de Lisboa, o Baiacú de Alguém,  por exemplo, que era só um bloco de carnaval, hoje também se dedica a promover outras formas de cultura. Ou o Cine Dona Chica, no Campeche, que busca levar o cinema para a comunidade, bem como a discussão dos temas importantes da vida cultural do bairro. Há a ação da Banda da Lapa, no Ribeirão da Ilha e a quase heroica resistência de Valdir Agostinho, na Barra da Lagoa, a Barca dos Livros, na Lagoa, entre outras experiências semelhantes. Mas, são ações que estão sempre dependendo dos fluxos e refluxos dos financiamentos, patrocínios ou doações das comunidades. Não estão unificadas nem tampouco fazem parte de uma política clara de promoção cultural da cidade.

Assim, nessa geografia que privilegia os mais abastados e isola cada vez mais as práticas locais mais tradicionais, a cidade segue seu curso, enchendo-se de prédios, afogando-se no cimento, perdendo dia-a-dia a sua beleza natural e o patrimônio cultural de extrema riqueza. Não é sem razão que nas tardes de outono, quando baixa o vento sul, as pessoas  que ainda podem ouvir o chamado telúrico desse belo lugar,escutem a gritaria das bruxas, resistindo na pedra grande do Morro das Pedras. Elas embaraçam os cabelos das gentes e lhes sopram no ouvido  a verdade inabalável: se esquecermos nossas raízes, ficaremos à deriva no mar da vida. Ainda há tempo para a cidade, através das forças vivas que atuam politicamente nas lutas gerais, assumir a batalha pelo direito à cultura. Faz-se a luta por parques, pelo plano diretor, por mobilidade e tantas coisas da vida prosaica. Mas também é hora de brigar pela cultura, essa coisa aparentemente inefável e etérea, mas que, na sua concretude, torna as gentes sempre melhores do que são. Todos os seres precisam ter o direito de desfrutar dos bens culturais.