quinta-feira, 8 de maio de 2008

Encontrei o Odimar


Foi num destes dias em que tudo o que tem para dar errado, dá. Saí de casa meio dormindo, por conta do cansaço de dias de trabalho duro. Acenei para o ônibus e lá fui, balançando, em pé, pois, como é comum em Florianópolis, os coletivos estão sempre lotados. Tudo por conta da ganância dos empresários que diminuem horários para ter mais lucro. Quem sofre é a ralé. A minha bolsa, enorme, ia colada nas costas, arqueando o corpo fraquinho. Numa dos braços levava uma caixa com uma filmadora, com a qual precisava registrar uma conferência. No outro braço carregava uns sete livros, que devolveria na biblioteca. Como sou baixinha, meu braço não alcança o ferro do ônibus e preciso me agarrar nas beiradas dos bancos. Nenhuma alma das que estavam sentadas se dispôs a uma gentileza urbana, que consiste em carregar as coisas dos que vão em pé. Assim que eu me equilibrava com todo aquele peso. Até aí sem novidade.

O problema é que o busu não ia para a universidade, eu havia pegado o carro errado. Saltei e caminhei umas cinco quadras até encontrar uma parada na qual passasse um que para a UFSC fosse. Entrei, esbaforida, pois já estava atrasada. Passei o cartão e, pasmem, não tinha mais crédito. Fui pegar dinheiro na bolsa, depois de toda uma novela com os livros e a filmadora e, adivinhem: não tinha dinheiro. Maior mico. Todo mundo no ônibus me olhando com aquela cara de paisagem, ou seja, estavam vendo, mas fingiam que não. Umas crianças, mais verdadeiras, riam. Pedi desculpas ao cobrador, que também não se prestou a gentileza de me deixar ir sem pagar, e saltei. Tive de andar desde o centro comercial Iguatemi até a UFSC com todo o peso. Soltava faíscas.

Passado o mico fui resolver a entrega do meu imposto de renda. Toda uma profusão de erros e complicações no programa. Arrisquei ligar para Receita Federal para ver se conseguia ajuda. Meio descrente, pois há o mito de que o povo atende mal no serviço público. Já ensaiava umas lágrimas, pois nada parecia dar certo. A telefonista atendeu e me deixou pendurada. Minutos eternos... E aquela musiquinha. Não agüentei, comecei a chorar. Então atendeu ao telefone o Odimar. Com a maior paciência do mundo foi ouvindo meu desespero e desmontando minha crise. Sem preocupar com o tempo, desenredou meus nós. Tinha a voz tranqüila e um riso sereno. Então, como por encanto, tudo se acertou. E foi assim que, num dia de terrores urbanos, de transporte desintegrado, de “mala suerte”, de lei de Murphy, eu encontrei o Odimar. Um servidor público, um trabalhador, que amparou minha angustia, que me fez sorrir, que resolveu minhas dúvidas.

E toda essa odisséia foi para dizer que o serviço público é tudo o que temos. E que os trabalhadores públicos ali fazem sua parte, muitas vezes sem incentivo, sem condições. Vez ou outra são amargos, tristes, mal-educados. Mas outros há que não, e nos salvam, quando tudo o que queremos é alguém que nos diga: “calma, vai dar tudo certo”. Assim fez o Odimar. E tudo deu certo. Valeu compa!!!

terça-feira, 6 de maio de 2008

Defender o Pomar

A cidade tem de formar barricadas e fazer o que tem de fazer

Ele ainda tem cara de garoto, apesar de já não mais o ser. E carrega no próprio nome a generosa idéia da gratuidade. Chama-se Pomar. Marcelo Pomar. E é bem isso que ele parece ser, o abrigo frutuoso de um mundo coletivo, feliz e pródigo. Não é à toa que seu nome é pronunciado com reverência por um grande número de jovens que construíram, com ele, o movimento pelo Passe Livre na cidade de Florianópolis.

Naqueles dias de 2004, quando na capital catarina iniciou o movimento pelo passe livre, Marcelo ainda era um apaixonado estudante universitário do curso de História. Junto com outras tantas centenas de estudantes da UFSC, UDESC e secundaristas, ele foi para a rua lutar por esse direito. Foram muitas as caminhadas, os atos e discursos, e foi neste espaço libertário das assembléias de democracia direta em frente ao terminal que ele foi aparecendo como uma liderança. Nada por querer, apenas aconteceu. Talvez por seu jeito seguro, sua voz firme, seu compromisso, sua doçura.

Depois, quando em junho explodiu a “revolta da catraca”, ele estava li, no meio da multidão, somando o movimento do passe livre com a indignação do povo de Florianópolis contra mais um aumento de tarifa do transporte desintegrado. Milhares de almas foram às ruas, fecharam a ponte e se confrontaram com a polícia local. Em uma semana de mobilizações, recheadas de violência oficial, acabaram vencendo a prefeitura. Foi um momento bonito da política da capital. Aquele bando de estudantes, de novo na rua, puxando o cordão da mudança, tendo as gentes como aliadas.

Mas, a primeira vitória foi só o começo de uma luta maior. Pelo passe livre, pela melhoria da mobilidade urbana, contra os aumentos absurdos das tarifas. Depois, passada a semana de revolta e arrefecidos os ânimos populares, só os estudantes seguiram mobilizados. A luta surtiu efeito e eles conseguiram fazer passar na Câmara de Vereadores a lei do passe livre. Parecia que tudo apontava para mais uma vitória. Mas, apesar de já ser lei, nada foi implementado e a luta dos estudantes teve de seguir.

No ano seguinte, 2005, mais uma vez o povo voltou às ruas, liderado pelos estudantes em outra revolta da catraca. De novo a prefeitura aumentava o preço das tarifas e o povo dizia “não”. Outra vez também a polícia protagonizou novas cenas de violência contra estudantes e população. O movimento pelo passe livre esteve à frente das lutas, decidido a fazer valer também a lei aprovada pela Câmara.

Em 2006, a vida dos florianopolitanos seguia o mesmo diapasão: transporte ruim, caro e nada do passe livre. Por conta disso, a movimentação de estudantes, sindicalistas e movimento popular seguiu firme e sistemática. Em fevereiro, em frente ao terminal, durante uma manifestação, um grupo de aproximadamente 15 homens avançou sobre os estudantes, rasgando faixas, cartazes e quebrando a caixa de som que auxiliava no diálogo com a população. O tumulto causado pelo grupo de desconhecidos atraiu a polícia, mas para a surpresa de todos, a força da ordem não veio proteger os estudantes que estavam sendo agredidos e sim o grupo dos agressores. A revolta foi grande. Neste momento Marcelo Pomar, que estava no grupo dos estudantes, agiu, pedindo calma, evitando que tudo se deteriorasse em mais violência.

Pois o seu grito de calma e de apaziguamento virou faca de corte contra ele mesmo. A polícia abriu inquérito para levantar o mandante da ação que culminou com a agressão dos tais homens contra os estudantes. Mas, este inquérito não foi levado adiante. Já Marcelo Pomar foi indiciado como aquele que incitou ao linchamento dos homens do grupo de agressores. Ora, nada mais irreal. Marcelo pediu foi paz. Ainda assim, estará sendo julgado no mês de maio como se fosse um delinqüente.

Na mesma manifestação que resultou nesta ação suspeitíssima do grupo agressor, o fotógrafo do jornal Diário Catarinense, Cláudio Silva da Silva, que fotografou tudo, o que seria uma prova da confusão armada pelo tal grupo contra os estudantes, teve seu equipamento quebrado pela polícia, foi preso por fazer seu trabalho e ainda acabou demitido do jornal. Mais um caso surreal em que a vítima vira vilã, tal qual ocorreu com Marcelo.

E agora a cidade de Florianópolis vai ter de mostrar seu valor. Marcelo Pomar será julgado, como se bandido fosse, no dia 13 de maio. Marcelo, o garoto que foi às ruas lutar por passe livre, por transporte de qualidade, o guri que deu sua cara a tapa, seu corpo à ponta do fuzil, sua palavra à paz. Esse mesmo cara vai a julgamento feito um criminoso.

O Pomar, esse abrigo de esperanças, de santa rebeldia, de doce revolta, de compromisso com o público, com os estudantes, com a população. Ele estará no tribunal, como réu, sendo julgado. E o povo de Floripa? Que padece nos latões apertados, que gasta metade de seu salário na tarifa, que amarga nos terminais de desintegração, o que fará?

Há duas possibilidades: ou faz de conta de que não é com ele e se omite. Ou age, com a mesma garra com a qual um dia Marcelo Pomar agiu para melhorar o transporte de todos. A segunda opção é, sem dúvida, a que se espera. Porque existem momentos na vida em que temos de tomar posição. Não é bandido quem luta. Não é criminoso quem se rebela contra o que está mal feito. Não é delinqüente quem se revolta com a injustiça. Marcelo Pomar fez o que tinha de fazer. Agora é hora de a cidade fazer o certo: formar uma barricada, defender o Pomar, como se ali estivessem as doces frutas benfazejas da vida digna, da cidade sonhada. Porque afinal, ali estão, de fato!