quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Livro à venda



Com a pandemia e o confinamento em casa tratei de começar a pôr ordem nos livros que tenho. Praticamente todos eles já esgotados, pois tiveram edições pequenas. Minha ideia é ir digitalizando cada um deles e colocando para vender na internet, já que essa é uma forma bastante eficaz de difusão do trabalho. Vender sempre é a pior parte, principalmente para quem, como eu, não tem a menor vocação comercial. Aproveitei o pdf finalizado pelo meu querido amigo Leopoldo, que editorou o livro “Olimpia Gayo visita o diabo”, lançado em 2013, e coloquei para vender como minha primeira experiência internética. Assim, quem tiver interesse é só visitar a página e comprar. O livro em questão recupera a história da irmã Olímpia Gayo, que foi coordenadora da Pastoral da Mulher Marginalizada da cidade de Lages e, inaugurou um importante trabalho de luta para as mulheres da região. Sua história é um caminho de amor, dedicação, batalhas e extraordinárias vitórias no processo de organização das mulheres. Perseguida, censurada, calada, ela nunca esmoreceu e ainda hoje segue seu trabalho de entrega com aqueles que estão à margem da sociedade. O  diabo, o qual ela visita amiúde, mostra sua cara na sociedade conservadora e hipócrita. Olímpia sabe seu nome, conhece seus segredos e o vence, em cada batalha travada. É uma bela história e uma boa leitura.  

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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O sono, os remédios e as escolhas com o pai


Nessa batalha que é cuidar de uma pessoa idosa com demência um dos pontos mais difíceis é o sono. Desde que o pai chegou aqui em casa para meus cuidados que eu venho batalhando formas de tornar sua noite um momento de descanso, já que ele é igual a um dínamo, não para um segundo durante o dia todo. Só que quando a noite chega, também não tem parada. E isso é ruim. Ele não descansa.

Devo dizer que ao longo desses mais de quatro anos tentei de tudo e ele passou por todos esses remédios que são ministrados para pessoas com Alzheimer. Psicotrópicos, calmantes, antidepressivos, ansiolíticos, uma infinidade. E a cada um desses remédios eu observava uma reação diferente. Acontecia de tudo, menos o sono. Em alguns casos vinham as alucinações, o desespero, a agitação desenfreada, a loucura desatada, levantando no meio da noite, querendo sair, batendo portas e forçando o portão, gritando sem parar. Em vez de melhorar, piorava. Outros o deixavam completamente dopado durante o dia, prostrado numa cadeira, com a boca torta.

Participando de grupos de ajuda de familiares com Alzheimer fui conhecendo os casos de pessoas que iam ficando com os músculos rígidos, paravam de andar, problemas para engolir, tudo aparentemente efeito colateral dos remédios. Uma aflição dos diabos vai tomando conta da gente porque não queremos ver a pessoa sofrer, e esse troca-troca de remédios ia me parecendo uma experiência meio desumana. Sabe-se que não há um remédio para o Alzheimer, o que os médicos podem fazer é ir tentando resolver os problemas que a doença causa. Eu entendo isso, mas os experimentos com o pai me causavam muito sofrimento também.

A gota d´água pra mim foi uma noite em que ele apareceu na porta da cozinha com a cara lavada de sangue. Eu havia dado um desses remédios para ele dormir e estava na minha cama, no meu quarto, dormindo. Pois ele havia acordado em surto e caído, abrindo um corte na testa. Aquela cara ensanguentada, aquele olhar de desamparo acabou comigo. Decidi mudar toda a minha abordagem.

A primeira coisa que fiz foi tirar os remédios. Mais nada. Depois, me mudei de mala e cuia para o quarto dele. Iria dormir com ele e observar sua noite, dando suporte para o que fosse. Antes, ele tomava o remédio e ficava sozinho, com a luz acesa e a televisão ligada. Não me deixava desligar. Ficava brabo. Percebi então que ele levantava várias vezes durante a noite e com a luz ligada, pensava que era dia, queria sair. Com muito carinho e tato fui mudando essa rotina. Apaguei a televisão depois de certa hora, depois a luz, e fui criando um ambiente aconchegante, mas penumbroso.

Hoje estamos assim. Ele janta as seis e lá pelas sete e meia vai para o quarto ver a novela. Assistimos juntos. Depois vimos as notícias e lá pelas nove já preparo tudo para o dormir. Ajeito a cama e vou insistindo com ele para deitar. Ele deita, eu apago a televisão, desligo a luz e o quarto fica silencioso e escurinho. Ele apaga na hora. Dali até o amanhecer acorda mais umas quatro vezes para fazer xixi, mas eu estou bem ali do seu lado. Limpo a bagunça, seco os pés e indico a cama para que ele volte a dormir. No geral dá certo. Há dias que ele está bem consciente e fica rindo por eu estar feito um fantasma ao seu lado. E quando está meio viradinho, resmunga um pouco mas volta pra cama. Há dias, é claro, que ele está bem mais agitado. Não deita, fica mexendo nas cobertas, tiras as coisas do guarda-roupa. Eu mantenho a luz apagada, só com a claridade do banheiro e fico quieta, esperando. Seus agitos podem durar duas horas seguidas na madrugada, mas depois disso ele cansa, aí eu venho e digo: vamos dormir agora? Ele deita e apaga.

Claro que isso é bem mais custoso e cansativo pra mim. Mas, percebo que é o melhor pra ele. Nenhum medicamento causando efeitos ruins, só a fixação sistemática da rotina. Tudo é feito na mesma hora, do mesmo jeito. Isso tem me custado as noites e toda a minha rotina de escrever e ver filmes nessas horas de calmaria. Isso se foi. Mas, por outro lado, quando ele desperta de manhã está mais descansado, e com o descanso também ficam mais raros os seus momentos de descontrole.

Tenho aprendido que essa doença danada tem pouco controle. E que o melhor remédio mesmo é a atenção e cuidado sistemático. Durante o dia uso um óleo natural abençoado por deus que o deixa lépido e falante e também garanto uma boa dose de nicotina – receita médica contra a agitação. Ele caminha bastante, come muita fruta, ajuda na horta, “trabalha” com seus papeizinhos, ouve música. E, de noite, na caminha. Não é coisa fácil mudar toda a vida da gente, mas foi o caminho que encontrei. Espero poder levar essa rotina até o fim. É só o que peço ao universo.



segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Mostrando as vísceras do capital


 

O Brasil vive um momento de extrema desolação. Além de toda a tragédia provocada pela inexistência de um combate centralizado ao vírus da Covid 19, que já ceifou quase 150 mil pessoas, Amazônia e Pantanal queimam, por incêndios criminosos. Há algumas dezenas de pessoas que lutam contra as chamas, desesperadamente, de maneira quase inglória. E há um governo que corta verba para o combate aos incêndios, faz piada e divulga vídeos falsos, minimizando a tragédia que se abate sobre a terra, as gentes e os animais. Há milhões de criaturas que negam a realidade, que se manifestam contra a vacina e que aplaudem a lógica governamental. Esse é o triste cenário com o qual nos deparamos. Trágico, mas não surpreendente, afinal, o que importa para quem governa é apenas o bem-estar de uma minoria dominante. O que passa ao largo dessa pequena parcela de gente é absolutamente irrelevante. E por quê? Porque essa é a natureza do sistema capitalista no qual estamos inseridos.  

Existe um livro, que deveria ser leitura obrigatória nas escolas, que se chama “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, escrito por Friedrich Engels, em 1845. Ele inclusive serviu de fonte para que Marx escrevesse o seu clássico “O Capital”. Engels era um jovem rico que em 1842 vai para a Inglaterra aprender sobre a indústria, visto que seu pai era industrial na Alemanha. Naqueles dias, a Inglaterra, especialmente Manchester, era a ponta de lança das inovações e da modernidade capitalista. Ali Engels vive por 21 meses e ao observar os avanços na indústria local e a urbanização das grandes cidades, começa a perceber também as condições de vida dos trabalhadores.  

Quando volta para casa, na Alemanha, Engels conhece Marx e com ele discute tudo que viveu. Logo em seguida começa a redação desse livro que é uma obra prima sobre a realidade do capitalismo. É uma espécie de ver por dentro, de narrativa do escondido, do que não aparece aos olhos de quem apenas usufrui dos produtos que nascem das mãos dos trabalhadores. O livro é uma espécie de “Globo Repórter” da época, pois Engels consegue descrever como vivem, onde moram, o que comem, que doenças têm, como se divertem e que expectativas têm os trabalhadores da meca do capital.  

Engels mostra como se deu o movimento do camponês para a cidade grande, saindo da condição de trabalhador da terra, com casa para morar e um pedaço de terra para tirar seus sustento, para a condição de proletário, sem nada de seu a não ser a força de trabalho, cujo pagamento por ela sequer era suficiente para mantê-lo em pé. O jovem alemão visita não apenas as fábricas, onde vê de perto as condições de trabalho de homens, mulheres e crianças, mas também circula pelos bairros periféricos, morada dos trabalhadores, os quais eram desconhecidos pela elite dominante e também pela chamada classe média que ocupava as profissões liberais, ou cargos mais elevados nas fábricas.  

Nessas andanças pelas vielas fedorentas de Manchester – os chamados “bairros de má fama” - Engels viu gente morrer de fome, dividir casa com os porcos, dormir na maior imundície, padecer das doenças mais horrendas. Aquelas ruas e casas que ficavam na parte mais feia da cidade, eram o espaço da morte, e não da vida. Não recebiam cuidados por parte da administração local e eram conhecidas como redutos da criminalidade. Isso lhes lembra algo?  

Engels descreve com riqueza de detalhes aquele universo e tanto que se pode até sentir o cheiro das ruas e das casas. “Não há um único pai de família em cada dez, que tenha outras roupas além das de trabalho e muitos só têm à noite, como coberta, esses mesmos farrapos e por cama, um saco de serragem”. Ou ainda a visão de uma mulher que morrera de fome: “jazia morta ao lado do filho, sobre um monte de penas, espalhadas pelo corpo quase nu, porque não havia lençóis ou cobertores. As penas estavam de tal modo aderidas à sua pele que o médico só pode observar o cadáver depois que o lavaram, e o encontrou descarnado, todo marcado de picadas de insetos”. 

E por aí vai a toada. O livro de Engels é como um soco na boca do estômago, detalhando de maneira crua a vida daqueles que fizeram a riqueza do capital. Uma gente que morria cedo, com fome, sem nada de seu. Uma gente que não era visível para ninguém que vivessem fora daqueles antros de podridão e dor. Da classe média, essa excrescência que sonha em virar exploradora ele diz: “Tive de observar a classe média, vossa adversária, e rapidamente concluí que vos tendes razão em não esperar dela qualquer ajuda, seus interesses são diametralmente opostos aos vossos, mesmo que ela procure incessantemente afirmar o contrário e vos queira persuadir que sente a maior simpatia por sua sorte.” Para Engels a classe  média só quer enriquecer às custas dos desgraçados e simplesmente pode deixá-los morrer de fome quando não puder mais lucrar com o que chama de “comércio de carne humana”. 

Mas, o que realmente é espantoso no livro de Engels, é que a situação que ele descreve na Inglaterra de 1842, segue absolutamente igual nas periferias do mundo inteiro. As cenas descritas dos horrores, das condições das moradias, da saúde dos moradores e da exploração que sofrem não apenas nas fábricas, mas também dos donos dos armazéns onde compram seus víveres, poderiam ser vislumbradas hoje em qualquer grande cidade ou mesmo em países inteiros. Porque o Engels mostra não é apenas a situação dos trabalhadores da Inglaterra, mas sim as vísceras do modo de produção capitalista. O lado de dentro, o lado escondido, que os poderosos preferem deixar invisível para que não haja revolta. Pelo contrário, o capitalismo dispõe de uma pedagogia da sedução que leva os explorados a acreditar que um dia poderão ultrapassar o limiar da miséria, basta que trabalhem bastante. Mas, isso não é verdade. A roda do capital que gira desde o 1800 segue fazendo o mesmo de sempre: moendo gente. É assim que se mantém.  

É justamente por isso que, hoje, no Brasil, enquanto milhares de famílias choram seus mortos, que partiram por não conseguir amparo médico, ou um respirador, ou uma UTI, a classe dominante não está nem aí. E se não está nem aí para as pessoas, porque motivo estaria preocupada com as milhares de vidas animais perdidas nos incêndios da Amazônia e do Pantanal? Isso não importa em absoluto. Assim como não importam as vidas dos indígenas - esses seres que consideram inúteis e um atrapalho ao progresso – dos negros da periferia, dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos sem-terra, dos zé-ninguéns. Enquanto essa gente morre a classe dominante segue com suas festas, suas mansões, seus banquetes. A dor dos que lhes servem não lhes toca, não lhes chega. Porque, ao fim, alguém dos seus está enriquecendo enquanto as terras ardem e as gentes morrem. 

O que nos resta, então? Primeiro conhecer a realidade. Entender porque uns tem tanto e tantos não tem nada. Entender porque existe a pobreza, a miséria, a exploração. Entender a lógica do capital. Debruçar-se sobre as vísceras desse sistema, ter coragem de olhar adentro e, a partir daí, compreender que é o trabalhador quem produz a riqueza e que os ricos não trabalham. E que se quem produz a riqueza é o trabalhador então a ele tudo é devido. Não a morte, não a fome, não o desespero. Mas a alegria, a fartura, o bem-viver. E que isso pode ser conseguido se essa minoria que domina tudo for vencida. É uma minoria. Os trabalhadores são maioria, logo, mais fortes.  

É certo que no caminho haverá quem não acredite no que mostram as vísceras, haverá quem defenda o algoz, haverá quem traia os companheiros. É a vida. Mas, os trabalhadores, coletivamente podem enfrentar cada um desses obstáculos, e avançar.  

O capitalismo tem essa aparência bonita, de sucesso, de possibilidades. Mas, dentro dele estão as vísceras. Engels mostrou as da Inglaterra. Nós vamos mostrando as nossas. E, assim, conscientes do mal, haveremos de encontrar o caminho para a libertação.