quinta-feira, 2 de abril de 2020

A canalha ataca os trabalhadores


Diante da providencial crise “do coronavírus” aparece, no dia 24 de março, a proposta de Emenda Constitucional apresentada por um empresário, dublê de deputado federal, Ricardo Izar, do Partido Progressista (PP), que prevê redução de salários dos trabalhadores públicos em até 20% “enquanto durar o estado de calamidade pública. Diz ele, na sua justificativa, que os recursos serão todos usados em ação de combate a evolução do Covid-19. 

Para o empresário, é óbvio que o “sacrifício” precise vir dos trabalhadores. Afinal, sua categoria precisa seguir garantindo lucros. Já a elite brasileira, que segundo os últimos números chega a pouco mais de 200 famílias  e amealha mais de um trilhão de reais, é intocável. Nada de taxar a riqueza. Os trabalhadores que paguem a conta. 

Mas, a proposta de Izar ainda era insuficiente, e o governo decidiu dar uma “melhorada”, partindo do que aventara o Ministro da Economia Paulo Guedes, que já vinha ameaçando os trabalhadores com medidas dessa natureza bem antes do coronavírus. 

As informações sobre a nova PEC dão conta de que a redução dos salários deverá ser de 25% e não 20, como propunha o deputado do PP. E mais, em vez de durar só enquanto houver a “crise do coronavírus”, deve se estender até o fim de 2024. E os jornalistas boca-alugada festejam que a medida vai pegar “apenas” os que ganharem mais de três salários mínimos. Rodrigo Maia, presidente da Câmara já apelidou a PEC de “orçamento de Guerra”. Uma guerra na qual a bucha dos canhões serão os trabalhadores. 

Mas não é só isso. A PEC que deverá ser discutida na próxima semana no Congresso ainda prevê congelamento dos salários - já reduzidos  - até dezembro de 2022, alteração nos planos de salários que impliquem em aumento, e o congelamento das contratações. 

A canalha é insaciável.

Se isso passar, vai se somar a outras medidas que já atingem os trabalhadores da iniciativa privada os quais também poderão ter seus salários reduzidos. O governo diz que vai pagar até 80% deles e mais uma vez os jornalista boca-alugadas festejam como se fosse uma grande coisa. 

Assim que a tal “crise do coronavírus” servirá para, mais uma vez os representantes da classe dominante, que comandam o Congresso, tirarem o couro dos trabalhadores. 

Resta saber como será a organização dos trabalhadores nesse momento. As sessões poderão ser virtuais e muita gente está em casa. Não se vêem lideranças de esquerda ou sindicais tomando à frente nesse debate. Cada um está sozinho. 

O que é certo é que tirar o pão da boca dos trabalhadores provavelmente renderá bem menos do que taxar em apenas 1% os mais ricos do país. A escolha do governo é absolutamente esperada. Salvar os ricos e escalpelar os trabalhadores. Não há novidades. Esperamos que a novidade venha da luta. Porque se algo essa pandemia deixou bem á mostra foi a verdade que muitos ainda não conseguiam ver: só os trabalhadores geram riqueza. Sem eles, não há economia e não há vida.


Tristes dias


Abro os olhos nessa vigésima manhã de quarentena. O despertar é sempre sobressalto. Ao meu lado, meu pai, de 88 anos, acorda sempre confuso e tonto. Preciso pular da cama para ampará-lo e guiá-lo no seu conturbado amanhecer. Não há tempo para pensar em nada, tudo fica enredado no turbilhão. Quando toda a parafernália do despertar ameniza e o pai já está tomando café é que eu cevo um mate, encho de maçanilha, e sento no alpendre. Enquanto a quentura do chimarrão vai aquecendo a goela, sinto a presença da ceifadora ao meu lado. Tem sido assim, assustadoramente, todas as manhãs. E como Antonius, de Bergman, eu recomeço o jogo que temos jogado desde que nasci.  

Ela ronda, incansável. E eu tenho medo. Porque viver é bom. Porque gosto de andar no centro, de sentir o cheiro do mato, de dar risada nos corredores da UFSC, de discutir política, de escrever e narrar, de caminhar na praia, de tomar cerveja, de ir ao Bar Do Zeca, fazer meu programa de rádio. Gosto de caminhar pelo Campeche com o pai, de beijar meu amor, de brincar com meus gatos e cachorros, de encontrar meus amigos. 

Mas, ela me olha, impassível. Na televisão, todos os dias, os homens e mulheres da saúde dizem: todos vão ter de pegar o vírus, mais dia, menos dia. Alguns vão morrer. E eu tenho medo. Meu pai tem 88, meu compa 60, eu mesma já estou quase lá, os sobrinhos têm rinite. Minha irmã e meu irmão estão longe, não tenho controle sobre ninguém. O vírus está no comando. Não há qualquer beleza nessa espera. Porque é uma espera sem esperança. Nada vai nos livrar do vírus. Ele vai chegar. Só podemos controlar um pouco o quando. 

Há quem me diga: mas a morte é certa mesmo. Por que temer? Sim, ela é certa, mas caminha invisível entre nós enquanto nos ocupamos em viver. Agora não. Ela senta ao nosso lado e toma mate conosco, olhando nos olhos. E em todos os aplicativos – rádio, TV , internet – ela está nos dizendo: Já chego, Já chego.  Ela fala com a gente, sem pejo. 

Os dias correm, lentos. Procuro manter certa rotina, necessária por causa do pai, que sequer consegue entender o que estamos passando. Mas, vez ou outra me pego com os olhos no vazio, esgotada dessa espera. Por conta da doença do pai, a cada tentativa dele de sair pelo portão afora, preciso explicar tudo de novo, sobre o vírus, sobre a quarentena, sobre o fato de não podermos sair. Não posso alienar o pensamento e fingir que estou de férias. Não são férias, não são dias de descanso, nem de meditação. São tempos sombrios de confrontação direta com a ceifadora, que me encurrala justamente nos meus dias preferidos de outono. E a cada minuto tenho de mirar seus olhos vazios. 

Hoje, depois de conturbada madrugada saio com o mate para a manhã emburrada. E ali está ela, olhando pra mim. Respiro fundo, sento ao seu lado e ofereço o chimarrão. Ela pega, e sorve. Depois vira pra mim e sorri. Seus olhos expressam profunda ternura, como a me dizer: desculpa, mas em algum momento teremos de nos tocar. Eu olho pra ela e digo: eu sei. E seguimos, ombro a ombro, olhando o infinito. Que demore, que demore!



Enquanto a cidade dorme, voluntários trabalham, na periferia


É de manhã, a vida segue em suspenso na capital catarinense, totalmente parada pela quarentena. Os trabalhadores dos setores essenciais estão saindo, no rumo do trabalho e, junto com eles, outro pequeno grupo se move. São os voluntários que, nesses dias de isolamento, abrem mão de seu próprio cuidado para cuidar de outras pessoas. É que nas comunidades de ocupação, pelo menos mil famílias, que são invisíveis para o poder público, assomam com cara, nome e sobrenome para esses lutadores sociais que, desde anos, lutam por uma política de moradia capaz de garantir casa e vida digna a essas famílias.

Loureci Ribeiro, Elisa Jorge, Gerson Shatkoski, Ruy Wolf e Albani Pawelki Lopes coordenam a Campanha Solidária em Defesa da Vida com o trabalho de distribuição de cestas básicas e material de limpeza e higiene pessoal nesses territórios concretos de vida. Junto com eles mais 26 outras lideranças da base das comunidades também se organizam e se movem. Há que criar cumplicidade política e solidária de apoiadores externos, receber doações ou comprar os alimentos, há que montar as cestas e garantir que elas se multipliquem, podendo chegar em cada casa onde vive um trabalhador que agora está sem poder sustentar sua vida. É que na maioria dos casos são trabalhadores informais, catadores, precarizados, que a cada dia precisam garantir o sustento. Com a cidade parada, não há como. Por isso é necessária agora a solidariedade concreta. “Não é uma política de gueto nem assistencialismo. Trata-se de uma denúncia de ausência do Estado Social através da ajuda absolutamente imprescindível de sobrevivência”, diz Loureci Ribeiro.

Loureci é a prova viva de que não é diletantismo nem caridade. Desde quando era estudante de Arquitetura, e lá se vão mais de 30 anos, que ele começou essa caminhada de luta pelo Direito à Cidade. Esteve nas primeiras ocupações de terra urbana no final dos anos 1980, acompanhou a batalha do Caprom, do Cedep, atuou na construção do Estatuto da Cidade e tem se mantido esses anos na militância da Reforma Urbana pelo acesso à terra e moradia numa cidade cada vez mais especulada e inalcançável. Com ele, a também arquiteta Elisa Jorge, cumpriu a mesma estrada, atuando ainda como assessora e consultora de política urbana aos vereadores que foram fundamentais no processo de consolidação das primeiras ocupações em Florianópolis como Vítor Schmidt, Lázaro Daniel e agora Lino Peres, todos do PT.

Lutar pelo acesso à moradia, pela inclusão na vida da cidade, pela vida digna passava e ainda passa pela organização das comunidades. Isso é luta concreta, no chão da vida. É luta de classe, com os trabalhadores explorados e excluídos. E é assim que as coisas andam, dia após dia, nas antessalas do poder entregando documento, cavando reuniões, organizando atos, caminhadas, protestos. Nenhum ganho ao longo da caminhada foi concessão de governo. Tudo foi arrancado no braço. Agora, quando o terror de um vírus desconhecido cai sobre a cidade, são essas famílias as que mais precisam de um apoio real. E, com eles estão essas lideranças, que não são figuras de um dia só.

A emergência dos dias que correm diz respeito a pelo menos mil famílias em oito ocupações. Mas a luta pela moradia digna, contabilizadas as comunidades ainda em litígio, cheias de casas mal havidas, sem banheiro e sem condições de vida pode chegar a 80 mil pessoas em 70 comunidades que estão irregulares, fruto da falta de compromisso com uma politica de moradia popular, sem secretaria, projetos e orçamento municipal para habitação social . Gente demais, é fato, e que, apesar disso, segue invisível para governantes e demais moradores dos bairros “bons”.

Assim que nesses tempos de coronavírus esses lutadores sociais se dividem entre a ação junto a outras entidades e a Campanha Solidária para dar condições de sobrevivência a pelo menos 350 moradores em situação de rua que estão na Passarela Nego Querido, e outros que seguem na ruas, e ainda encontram tempo para coordenar essa ação das cestas básicas nas comunidades de ocupação.

Na semana que passou mais de 200 cestas foram entregues, com alimentos, mais 100 sabonetes, 200 litros de detergente e 200 litros de água sanitária nas seguintes comunidades: Beira-Rio, Mestre Moa e Nova esperança, em Palhoça.   Contestado, em São José. E em Florianópolis nas comunidades Fabiano de Cristo, Marielle Franco e Vila Esperança. Famílias do Mocotó, Jagata, Mont Serrat, Caieira da Barra do Sul e Quilombo Vidal Martins. Também foram lembrados e receberam cestas os estudantes indígenas abrigados na UFSC, os Kaingang que ocupavam o TISAC e os Xokleng que estão em Blumenau. É um trabalho gigantesco que, quando se trata de direitos humanos, permanece invisível para a grande mídia, tal qual as famílias as quais eles atendem.

O silêncio da mídia não é por acaso. Dar luz aos dramas da periferia seria expor o fato de que a cidade é um espaço especulado e que o poder público reserva quase 100% dos recursos para os territórios que são de interesse do capital e da acumulação privada. Tornar visíveis as famílias que lutam pela terra, que vivem em espaço degradados, de risco, seria colocar na tela da TV ou do computador a contradição viva do sistema capitalista de produção, no qual para que um viva outro tenha de morrer. Os trabalhadores, que são aqueles que verdadeiramente geram a riqueza, precisam o tempo todo estar batalhando para garantir atenção básica e condições de existência. E agora, com a pandemia, isso fica ainda mais claro. O que podem fazer aqueles que perderam o emprego ou que não têm como ganhar o pão do dia nos seus trabalhos informais? Como enfrentar esses dias tão sombrios se já no cotidiano sem vírus essas famílias já vêm seus filhos morrer por conta da falta de saneamento, moradia, emprego? A pandemia coloca à nu a luta desigual travada dentro da cidade.  Só no campo da moradia, por exemplo, a previsão orçamentária municipal para 2020 é praticamente zero e é por isso que o Movimento Nacional de Luta pela Moradia já vinha travando a luta para que a prefeitura e o estado revisassem os valores e metas essenciais. Agora, com a crise aprofundada pelo vírus o tema desaparece da mesa.

Para o MNLM e os voluntários que se somam a essa campanha solidária, mais do que dar suporte ás famílias nesse momento crucial, o trabalho é seguir organizando e lutando para que essa periferia esquecida não seja a que cotidianamente coloca os mortos, justamente por já não ter saneamento, saúde, moradia e salário.

Ainda falta muita gente para ser atendida, a quarentena se estende, e as promessas de renda mínima são para a maioria deles um futuro incerto por falta de cadastro. Por isso, o grupo de voluntários – ligados ao coletivo OCUPAÇÕES URBANAS, MNLM Movimento  Nacional de Luta por Moradia, INSTITUTO IGENTES, Igreja PRESBITERIANA de Florianópolis, MST e Tenda Lula Livre – continua insistindo em buscar doações solidárias e humanistas com a população de Florianópolis, seja em produtos ou dinheiro. Qualquer valor ajuda, então não precisa ficar com vergonha se não pode doar muito. Com menos de 40 reais é possível montar uma cesta. A compra e entrega das doações de Alimentos e Materiais de Limpeza e Higiene Pessoal é feita pelos voluntários, orientados pelo Coletivo Ocupações Urbanas e MNLM Movimento Nacional de Luta por Moradia. Uma gente voluntária e de luta que trabalha no amor e na vontade de ver o outro – vítima de um sistema tão cruel – em pé e alimentado, para que a luta por moradia e vida digna não pare.

Nas fotos, capturadas durante as entregas, o que assoma, poderoso, é o riso: de alegria de quem recebe, e de quem doa. Um povo que, em comunhão, já vive aqui e agora o amanhã sonhado.

Para contribuir entre em contato com as seguintes pessoas:

Ci Ribeiro 48 999421196

Elisa Jorge 48 984133043

Ruy Wolff 48 996740451