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quinta-feira, 5 de maio de 2022

O SUS e a atenção aos velhos


 

CARTA ABERTA AOS CONSELHEIROS DA SAÚDE DE TODO PAÍS

Na sistemática luta que travamos pelo aperfeiçoamento do nosso SUS há um tema que precisa de mais discussão: a velhice. Vivemos no país um aumento cada vez maior do número de velhos, e doenças como a demência – nos seus mais variados tipos – tem sido um desafio para as famílias que precisam conviver com ela.  

Faço parte de um grupo no facebook de familiares de pessoas com Alzheimer e uma das coisas mais impressionantes são os depoimentos sobre a dificuldade que é encontrar um médico que realmente saiba o que fazer com o velhinho. No geral, as famílias que não têm outro recurso a não ser o SUS enfrentam toda a tragédia que é não ter o sistema funcionando, com falta de profissionais, filas e tudo mais. E aí, o atendimento acaba também prejudicado. Até porque muitos dos profissionais que estão nos Postos não têm muita prática com a coisa da demência. Então é difícil. Como é comum na formação do médico brasileiro, a lógica é tratar a doença e não observar o aspecto da saúde na sua totalidade. Assim, um problema básico do velho com demência, a falta de sono, por exemplo, é tratada com remédios para dormir, sem se levar em conta toda a situação que envolve a demência. Isso acarreta, frequentemente, um sem número de problemas. Grande parte desses remédios causa ainda mais confusão mental e não induz ao sono.

Outro sintoma, como as alucinações, são tratadas com antipsicóticos, o que é um erro, pois acaba piorando a situação na maioria dos casos. Isso sem contar os efeitos colaterais de cada um dos remédios, que no velho com demência parecem se fazer todinhos, quando não dopam completamente, impedindo o velho de ter uma vida em família.

Nesse sentido, garantir que o médico do posto tenha uma capacitação para o trato desses pacientes é fundamental. Ou, melhor, que as equipes dos Postos de Saúde passem a contar com um geriatra, também capacitado para as demências, que hoje parecem ter aumentado significativamente de número. Essa é uma batalha necessária para garantir verdadeiramente uma melhor qualidade de vida ao velho com demência.

Outra questão envolve os cuidadores. Como as famílias são pequenas, em geral é sempre muito sacrificante para quem assume o cuidado. No caso das famílias empobrecidas geralmente alguém precisa parar de trabalhar ou de estudar para assumir o cuidado e esta é uma situação que esgota demais a pessoa, que passa também a adoecer. Até porque um a menos trabalhando significa ainda mais dificuldade para reproduzir a vida.

Seria muito importante que o SUS pudesse oferecer cuidadores capacitados para que as famílias pudessem contar com a possibilidade de solicitar um profissional para quando precisam descansar ou fazer alguma atividade de lazer. O cuidado de 24 horas arrasa com as pessoas. Alguns familiares comentam que deveria haver creche para idosos, onde eles pudessem ficar durante o dia, mas isso não funciona bem para o velho com demência. Esse tipo de doença exige uma rotina fixa e é impensável para um cuidador deslocar o doente para outro ambiente, acordá-lo em determinado horário e coisas assim. Ter um atendimento domiciliar é extremamente necessário. Muitas vezes um dia de descanso repõe as energias de quem vive um carrossel de emoções a cada 24 horas.

Estas são apenas algumas ideias para a discussão, afinal, parece cada dia mais necessário que o Estado deva garantir políticas públicas que atendam às demandas dos velhos com demência e suas famílias. Já basta termos de vivenciar a romantização da velhice, como se fosse uma “melhor idade”. Não é. E para as famílias empobrecidas  - que conformam a maioria  - a situação é ainda pior. No geral, os cuidadores são pessoas que também estão entrando na fase da velhice e o desgaste acaba sendo maior. São velhos cuidando de pessoas mais velhas. E os dramas envolvendo a doença bem como a impossibilidade de lidar com ela vai constituindo almas em escombros, também incapacitadas para o cuidado. O sofrimento é duplo: enfrentar a doença dos pais ou avós e desenvolver sofrimentos mentais inexprimíveis.

É tempo de o SUS abarcar esse grupo e é momento de os conselheiros de saúde começarem a pressionar para que também esses serviços sejam prestados pelo SUS, com a qualidade necessária. Envelhecer no capitalismo – sendo da classe trabalhadora - é ter de enfrentar essa fase da vida com muito mais dificuldade que a fase adulta – quando da exploração pelo trabalho. Porque o velho é visto como um inútil, não produtivo, o que torna tudo ainda mais difícil.

Que o SUS avance para o cuidado com os velhos, dementes ou não.

 

quarta-feira, 15 de março de 2017

Há mais velhos no Brasil, e eles estão fodidos


Os velhos são lentos, mas não são idiotas

Sempre me encantou a cidade de Porto Alegre. Desde que me lembro, é muito comum ver os velhos circulando pelas ruas, no comércio e principalmente nos restaurantes. Geralmente são aqueles que vivem sozinhos os que têm o costume de comer fora, por conta da comodidade. E é bacana ver como os restaurantes estão completamente adaptados à presença dessas pessoas que, ao contrário dos adultos, são lentas e, por vezes confusas. Sempre há um trabalhador pronto para ajudar, e no mais das vezes, sorridente e prestativo.

Mas, penso que isso é uma raríssima exceção. No geral, as pessoas tratam muito mal os velhos, ignorando que eles estão num outro patamar da realidade, completamente diferente da loucura que já foi incorporada pela maioria das gentes, desse mundo acelerado e tecnológico. No serviço público, a situação é lamentável. Outro dia, levei meu pai a UPA do Sul, por conta de uma febre de 29 graus. Ele tem 85 anos e sofre do mal de Alzheimer. O enfermeiro que o atendeu para a triagem pediu que ele colocasse o termômetro embaixo do braço. E o pai completamente confuso, atarantado pela febre, deixava o termômetro cair. Foi assustadora a reação do rapaz. Falou com o pai de maneira desrespeitosa, voz alta, ríspido.

-Eu já coloquei esse termômetro três vezes, tem de segurar.

Pois não via ele que ali estava um velhinho doente? Não podia ter um pouco de paciência? Não! Não teve o cuidado de tratar com carinho alguém que não estava no seu normal.  E que nem fosse carinho, mas com um pouco de respeito pela condição da pessoa idosa.

Da mesma forma são absurdas as regras do SUS. Para marcar consulta o velho tem de ir até o Posto, ficar na fila, às seis da manhã. Tem a opção de marcar pelo telefone, mas no geral é para dois ou três meses. Logo, se quer ser atendido tem de ir para a fila. Não importa se está doente, se não pode caminhar, se está com febre. Também o remédio de uso contínuo só pode ser retirado pelo paciente, “para evitar fraudes”. E olha que nunca uma palavra significou tão bem: paciente. Haja paciência para lidar com tudo isso. Quem mora longe do posto, e não tem carro, cada vez que precisa pegar o remédio tem de carregar o velhinho, todo estropiado, pelo transporte desintegrado. Um absurdo. Com certeza deve ter uma forma mais humana de lidar com isso sem dar moleza para a fraude.

Mas um dos lugares onde o velho mais padece é no banco. Obrigado que é a receber sua aposentadoria nessas malditas casa de usura, lá vai ele todo o mês para retirar seu pagamento. Os mais velhos não conseguem acompanhar a loucura da informatização. E por mais que o funcionário explique, a coisa é incognoscível. Experimente tentar ensinar como é que retira o dinheiro aplicando a senha de 4 dígitos, depois a senha de letras e números e toda aquela sorte de botões. Não dá! É impossível. Outro dia vi uma velhinha chorado copiosamente, dizendo: “não entendo, não entendo”. E não podia entender mesmo, e o funcionário fazendo cara de paisagem. Por que, com todos os caralhos, não capacitam essa gente para lidar com os velhos? Isso deveria ser prioridade num país onde o número de velhos aumenta significativamente a cada ano.

Tenho andado por aí com meu pai e vivenciado essas experiências todo o dia. É de arrasar. Porque a gente fica pensando que um dia também vai chegar nossa hora e teremos de igualmente viver toda essa sorte de humilhações e desrespeitos.

O velho pertence à classe dos homens e mulheres lentos. Tudo neles é pausado, tranquilo, vagaroso. Eles demoram a decidir a comida, eles demoram em entender as sentenças imperativas, eles se confundem com os sinais, as placas, eles param no meio da rua para olhar os passarinhos, eles escutam, mas por vezes não ouvem, eles se distraem com uma música, eles caminham bem devagar, eles são frágeis e precisam que as pessoas lhe toquem o braço, sorriam e repitam várias vezes as mesmas coisas, sem exasperação, sem rispidez, sem pressa. Eles não são crianças, para serem tratados como bebezinhos. São velhos. Portanto precisam que as pessoas os reconheçam na sua capacidade e autonomia. Estão baleados, mas ainda sabem quem são. Estão confusos e lentos, mas ainda podem tomar decisões sobre as coisas. Só demoram um pouco mais.


Fico pensando que, talvez, quando os capitalistas descobrirem que os velhos são também “consumidores”, quem sabe comecem a mudar a forma de atender, respeitando essa diferença. Mas, seria bom que as pessoas já pensassem sobre isso e começassem a mudar no trato com eles. Não custa nada desacelerar e ouvir delicadamente a confusão. Depois, ir desenrolando o novelo da desordem, com carinho e atenção. Veja o velho como um espelho. Ele é tu amanhã. 

E a considerar a reforma da Previdência que o governo Temer está planejando para os brasileiros, o destino de todos os trabalhadores será esse: de sofrimento, miséria e desrespeito. Barrar a reforma é preciso, mas ainda há muita estrada para caminhar no que diz respeito ao cuidado com os velhos do Brasil.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre velhinhos...


Eu comecei a cuidar de pessoas velhas quando tinha ainda uns 14 anos. Meus avós por parte de mãe foram morar conosco. O vô era agricultor e fora expulso das terras que arrendava. Era um sem-terra e eu nem sabia. Como toda sua vida tinha sido no campo ele não se acostumava com a vida na cidade. Seguido eu o surpreendia no jardim da mãe, mexendo com as flores, a terra escorrendo entre os dedos. Sentia pena e tratava de ir ajudar na tarefa. Não falávamos nada, apenas cuidávamos das plantas, cúmplices. Vez em quando trocávamos sorrisos. Então ele contava alguma de suas piadas. Comecei a ter por hábito vigiá-lo. Caso o percebesse triste, lá ia eu me encostar, feito um gato. Outra coisa que fazíamos juntos era jogar pife. Pelas noites afora. Minha vó também gostava e era o melhor jeito de levar alegria para os dois.

Quando meu vô ficou doente e foi para o hospital, eu entrei em desespero. Não sabia o que fazer para aliviar sua dor. Sentava na cama e ficava a lhe fazer carinho. Em silêncio. Quando ele acordava eu contava das notícias e ele sorria. E de novo voltávamos ao silêncio, só sentindo o toque suave da carícia. Ele se foi poucas horas depois da minha última vista. Até hoje sinto seu cheiro, misto de cigarro e terra.

Depois fomos para Minas e a vó foi com a gente. Também tomei como tarefa cuidar de seu bem estar. Ela gostava de massagens. E eu aplicava todos os dias. Longas sessões com arnica e álcool. Também cuidava de fazer limpeza de pele e preparar as unhas, sempre de vermelho vivo. Nas noites de sábado, nada de balada. Era o pife com a vó. E como ela tinha outro filho morando no Rio Grande, cabia a mim levar e trazer a vó, nas longas viagens de ônibus. Todo o ano fazíamos a jornada.

Quando já fora de casa, trabalhando em Caxias do Sul, consegui alugar minha primeira casa, foi com ela que dividi a morada. Ela dizia cuidar de mim, mas era eu quem cuidava de seu bem estar. Ela gostava de ter sua casa novamente, sem se sentir dependendo dos filhos. Sua maior diversão era reunir as amigas para o pife, e lá elas iam noite adentro enquanto eu servia bolinhos de chuva. Como os tempos eram duros a vida era regrada, mas nunca faltava a música e o vinho. Foram anos muito alegres com a minha vó, sempre ao som do Tijuana Brass.

No final dos anos 80 eu vim para Florianópolis em situação bem ruim. Sem emprego e sem dinheiro, e ainda fazendo a faculdade. A vó já morava com minha tia em Porto Alegre. O tempo passou, a vó encantou, eu segui meu caminho, sozinha. Agora, depois de tanto tempo, revivo as aventuras que tive com meus avós cuidando do meu pai. Ele não está tão velhinho, mas com sérios problemas de memória. Todos os dias são como um eterno retorno. As histórias têm de ser contadas e recontadas. A memória vai e vem. Por vezes ele fica triste e eu fico como ficava diante do meu avô. Sem saber bem o que fazer. Acabo inventando coisas para fazer junto. Regar o jardim, secar a louça, dar um passeio, conversar, comer coisas gostosas, tomar vinho. Também há tempo para risadas e brincadeiras. Fazer massagem nas mãos, cortar as unhas dos pés, tirar os cravos do nariz.

Depois de tanto tempo sem essa missão de cuidar de alguém fiquei enferrujada. Mas já estou melhorando. Cada dia é uma descoberta. Há horas que são tristes, outras não. O melhor caminho ainda é aquele que, intuitivamente, fui trilhando com meu vô Dionísio. Carinho, cuidado, amor. Assim, vou me fortalecendo e garantindo a esse querido companheiro dias de mansidão.

Agora, por esses dias, andamos, ele e eu, a cuidar de nossa cachorrinha paralítica. Enquanto eu arrumo a água e a comida, ele fica do lado da Chiquinha, acarinhando cada vez que ela chora. E faz questão de lembrar a cada hora: Já deu água? Já deu ração? Já deu o remédio?

Fico pensando que o amor é mesmo uma experiência estonteante. Quanto mais a gente dá, mais a gente tem.