segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Eu te abraço, senhora!


Eu sei que roubaram muito com a recuperação da ponte. Eu sei. Quase 30 anos, de projeto em projeto. Mas, devo dizer que me saltam as lágrimas ao ver a velha senhora de novo abrindo seus caminhos para as gentes dessa cidade que eu amo tanto. Porque a ponte não é só um símbolo de ferro, que serve a cada tanto aos governos de plantão. Não. Ela é memória viva da existência real das pessoas que constroem essa Florianópolis de todos nós.

Os mais antigos sabem das histórias da construção, contadas por seus pais, e re/contam extasiados como aquela coisa de ferro foi tomando forma e criando o caminho jamais sonhado entre a ilha e o continente. E quem se dedica a ouvir os velhos que colorem as praças no dominó já soube dos tantos causos de vida, amor e de morte que se sucederam nos quatro anos da obra nos anos 1920. Tem até causo de assombração de trabalhador que morreu ali e a alma não quis ir embora. Diz que esse tempo todo ele anda por ali, consertando, e há até quem já ouviu o barulho do martelo.

Meu companheiro, nascido no Estreito, tem milhares de histórias sobre as aventuras da gurizada que atravessava a pé para a ilha, buscando os bailes no Morro do 25. Uma pernada e tanto que ficava ainda maior quando tinha de levar as moças, depois do baile, para casa em outros bairros, e retornar atravessando o braço do mar na madrugada. E quando ele conta desse tempo seus olhos brilham.

A ponte faz parte da vida de cada pessoa aqui nessa cidade desde o ano de 1926. Impossível ficar imune. Não entender isso é não compreender o que é definitivamente a memória afetiva dos lugares.

Até eu, que nem aqui nasci, tenho a ponte na minha biografia. Assídua que fui dos bailes no Clube 15, quase ali na cabeceira, tenho gravado na memória todas as vezes em que a velha senhora assistiu aos beijos quentes trocados sobre o mirante, seja nas madrugadas abafadas ou no frio do inverno. Ela ao longe, cúmplice. E a gente vivendo à larga.

Por isso que as pessoas acorreram à ponte hoje de manhã, apesar do sol de rachar. Porque a ponte está na vida de cada um, e cada pessoa ali deve ter uma linda história pra contar. Eu não fui porque não pude. Pudesse, ali estaria, sentindo o seu pulsar de coisa viva, ainda mais viva.

Não importa o nome do político que estará na placa, poucos ligarão para isso. O que importa é que a ponte está ali, zelosa, cuidando, companheira de tantas histórias. A ponte que é nossa, que é da nossa memória.

Por isso eu também vou vê-la, tomada de emoção. Quero encontrar com ela, de vestido novo, em solidão. Talvez em alguma hora perdida da noite. Um encontro de amor. E, quem sabe, não ache por lá a tal alma que ficou perdida por aqui. Eu posso entendê-la. E difícil estar aqui e não amar esse lugar. Talvez então a gente tome uma cerveja gelada, nós dois. Eu e a alma, que apesar de forasteiras, sentimos profundo o pertencimento.

Lutemos contra os políticos vilões, mas deixemos que a velha senhora siga constituindo memórias em nós. Vida longa para a ponte! Eu te abraço, eu te abraço...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O pai e o banho


A parada do banho é uma das mais difíceis. Não sei porque essa implicância. Basta falar a palavra e o pai já começa a resmungar e ficar nervoso. Ou diz que não quer mesmo, ou diz que já tomou. É uma dança louca e demorada que temos de empreender até acabar no box. Tem dias que não tem jeito mesmo. Há que pular o banho. O que é bem complicado porque limpar "as partes" pode ser ainda mais difícil. Levo horas nesse ritual, tentando encontrar o caminho. Nunca é o mesmo. Cada banho é uma descoberta. Quando ele finalmente diz "sim" eu faço a maior festa, dançando, pulando e carregando ele para dentro do banheiro.

Hoje foi assim. No natal não teve jeito. Pulou o banho. Mas, nessa quinta calorenta eu comecei a ensaiar já de manhã.
- Bora banhar?
- Não mesmo.

E assim vamos, pelo dia afora.
Quando deu cinco horas topou. Fiz a festa. E dá-lhe banho. Uma alegria.

Depois, saímos para a nossa caminhada diária. Eu ia conversando, mostrando os passarinhos, até que arrisquei.
- Coisa mais boa tomar um banho, ficar bem limpinho, né?
E ele, virando a cabeça, fez um muxoxo e respondeu.

- Sinceramente? Não vejo diferença. E seguiu, pitando seu cigarro apagado.


segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Gujo Teixeira



Conheci a poesia do Gujo Teixeira na voz do Luiz Marenco. A música me caiu como um raio e eu a escutei infinitas vezes, lágrimas nos olhos, arrebatada por tamanha beleza. Era a “quando o verso vêm pras casas”, uma dessa maravilhas que simplesmente nos tomam para sempre. A música ficou grudada em mim. Então, fui procurar o poeta. Era uma cornucópia de esplendores. Desde aí fui seguindo, nas músicas e nos livros. Gujo é incrível.

Essa semana me chegou o seu livro “Escritos de Terra” que condensa 30 anos de sua escritura campeira. Sua poesia é forte, é densa, é profunda. Ela me remete a um tempo distante demais, mas que ainda vive em mim, pulsante. A campanha gaúcha, os trabalhadores ponteando as tropas, os esquiladores, o cheiro de rio, as taipas de arroz, o gado na sombra do tarumã, a imensidão dos horizontes.

Não, nunca tive terra, meu avô foi meeiro, lavrando sempre em terra alheia, e com ele pude vivenciar as alegrias e as dores daqueles que fazem a terra parir, sem nunca ter direito à ela. É por isso que na poesia campeira as imagens que me assaltam são a dos paysanos silentes e taciturnos, na beira do fogo de chão, rocando um mate. Homens calejados, estradeiros, valentes, e ao mesmo tempo doces. E são eles que assomam nas folhas do livro de Gujo.

“Estes gaúchos de barro
Semelhados pela estampa
Foram moldados no tempo
Com a terra bruta da pampa”.

No passar das folhas vou caminhando pelas canhadas, nas tardes de inverno do Japejú. Esse Rio Grande que não sai de mim...

“A mansidão da campanha traz saudade feito açoite
Com olhos negros de noite que ela mesma querenciou
E o verso que tinha sonhos prá rondar na madrugada
Deixou a cancela encostada e a tropa se desgarrou”.

E por aí andam as tropas de versos, desgarradas do livro, que agora galopam na minha cabeceira...


Então, é Natal


2019 passou. E o que me sobra é o pasmo. Como sobrevivi? Não sei! Talvez alguma poeira cósmica de energia e de amor, vinda sabe deus de onde.

E agora, é Natal. Penso no meu deusinho, que sempre vem me visitar. Às vezes ele vem menino, outras homem criado, depende da conjuntura. Eu gosto de passar a “noite feliz”, sozinha, esperando por ele, que é o aniversariante. Geralmente conversamos, rimos, dançamos, tomamos Pureza, fazemos coisas de criança, para manter a ternura do advento.  

Esse ano, não sei, creio que vamos chorar. Foi um ano duro, no qual tanta maldade se produziu em seu nome. Não que tenha sido muito diferente ao longo dos tempos humanos, mas me choca que aqui, nesse espaço geográfico sempre tão caloroso, a crueldade tenha aparecido assim, com carimbo cristão. Penso que ao menino isso também vá chocar.

Ainda assim seguirei meus rituais de natal com presépio, luzinhas, capim para o burrinho e o sapato na janela. E esperarei Jesus como sempre faço, jesuânica que sou. Sua presença doce haverá de me animar para enfrentar mais esse novo ciclo, que igualmente não será fácil. Vamos conversar pela noite afora, sérios e compenetrados. Tristes. Talvez ele invente alguma graça pra me alegrar, e eu diga algum chiste para ver seu riso. E enquanto a noite adentra, ficaremos abraçados, ouvindo só o som do coração, emponchados na tristeza.

Na madrugada haverá de cair uma estrela e faremos um pedido. Então, sorriremos, cúmplices, porque saberemos que foi o mesmo. O dia de aniversário romperá invencível e trará com ele todas aquelas esperanças que nos movem. O menino irá embora, e eu seguirei trilhando os caminhos dessa vida terrena, até que venha o grande meio-dia. Sempre na estrada do amor, ainda que ele não vença sempre. Sempre na estrada do amor!

Feliz Natal pra toda gente. Força na peruca que esse mundo exige coragem. Vamos em frente, sem esmorecer.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Avança a construção da revolução brasileira



Coletivo nascido em 2017 realiza seu primeiro congresso em 2020 amparado no nacionalismo revolucionário e na construção da revolução brasileira

Era verão. 2017. Florianópolis. Na casa do professor Nildo Ouriques, ele e alguns ex-alunos discutiam a política brasileira. O Brasil estava vivendo um turbilhão, fruto do processo de destituição da presidenta Dilma Roussef iniciado em 2016. Por isso, todas as conversas convergiam para o tema. A falta de uma ação mais ousada por parte do governo petista, que enfrentou os ataques sem convocar a população para a luta, mostrava que estava mais do que na hora de uma nova práxis na política. Esse era um debate que Nildo vinha fazendo desde há anos, mas de certa forma restrito à universidade e a alguns circuitos sindicais onde o professor realizava formação. Para ele, a dobradinha PSBD/PT , configurada no que chama de “petucanismo”, estava com os dias contados. A população já estava farta do liberalismo, tanto de direita quanto de esquerda. E estava bem claro que os brasileiros precisavam de um novo radicalismo político. Naquele dia, o pequeno grupo reunido na casa do Nildo, avaliava que desde os partidos de esquerda esse radicalismo não viria. Provavelmente a direita haveria de aproveitar desse buraco. E foi o que se viu com a ascensão de  Jair Bolsonaro. 

Pois foi naquele verão que o grupo decidiu ser necessária uma ação político/partidária capaz de fazer emergir esse radicalismo. Bradar desde a universidade já não era suficiente, havia que encarnar a ideia de uma revolução brasileira nas gentes. E isso só poderia ser feito se houvesse uma organização nacional. Filiar-se a um partido era condição imediata. A escolha recaiu sobre o PSOL entendendo que ali poderia haver espaço para crescer a proposta que vinha sendo madurada ao longo de anos de estudos acerca da tradição revolucionária brasileira que tem suas raízes na gênese do que é o Brasil, sendo fortalecida a partir dos anos 30 do século XX. 

Quando ainda era estudante de Economia Nildo teve contato com as teses da POLOP (organização revolucionária marxista Política Operária), nas quais o conceito de revolução brasileira aparecia de maneira bastante clara. Depois, militando no Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) essa proposta foi se consolidando ainda mais. Os estudos no México e o trabalho cotidiano junto a Ruy Mauro Marini, um dos teóricos mais importantes da Polop e expoente da Teoria Marxista da Dependência, ficaram bases sólidas no pensamento e na práxis de Nildo Ouriques. A revolução brasileira não era um sonho dos anos de chumbo. Ela era um processo em curso. 

Pois se a revolução era um processo, a proposta do grupo de Florianópolis – que já incluía Mauricio Mulinari e Daniel Correa da Silva, hoje formadores na Revolução Brasileira – foi de reacender o debate e retomar uma tradição histórica e uma tradição teórica. Só assim seria possível romper com o engessamento da política nacional baseada no petucanismo e construir o novo radicalismo político que parecia ser uma exigência da população. 

O primeiro passo então foi reunir mais gente no debate da proposta e começaram as reuniões em Florianópolis e em outros estados brasileiros com aqueles que já se vinculavam ao grupo. Foi assim que em agosto de 2017 nasceu oficialmente o coletivo “Revolução Brasileira”, com o lançamento do manifesto, que abria o debate da seguinte maneira: “A sociedade brasileira vive uma verdadeira guerra de classes. Guerra declarada pela classe dominante, que bombardeia diariamente o povo brasileiro sem encontrar grande resistência. Reféns do projeto conciliatório e desarmados ideologicamente, os setores populares encontram-se em completa desorientação e são incapazes de reagir e apontar qualquer saída ao povo brasileiro. O contra-ataque só se mostra possível mediante um acerto de contas com o passado.”   

Houve então uma filiação em massa ao PSOL, com pessoas ligadas ao grupo da Revolução Brasileira em muitos outros estados do país, pois a proposta era já partir para o ataque na campanha presidencial que estava em curso. O grupo entendia que para enfrentar o radicalismo que vinha da direita, via Bolsonaro, era preciso outro radicalismo, desde a  esquerda, capaz de compreender os anseios da população e dar o devido combate aos sistema político que estava totalmente carcomido. 

Os fatos se aceleravam, a direita crescia. Então, em dezembro de 2017, a corrente da Revolução Brasileira organizada no PSOL decide lançar o nome de Nildo Ouriques como pré-candidato à vaga de presidente da República, uma tática para possibilitar o debate sobre a revolução em nível nacional. O entendimento era de que os anos de governo petista haviam empobrecido a práxis e alimentado um desprezo pela teoria. Isso precisava mudar e a proposta da Revolução Brasileira (RB) era a de reconciliar a teoria com a práxis militante. Foi um divisor de águas na esquerda e acabou com o discurso “paz e amor”.  A guerra de classes voltava à cena e a possibilidade da revolução vinha sustentada teoricamente. 

Como pré-candidato, Nildo começou a rodar o país levando a proposta da revolução brasileira e nas fileiras do PSOL começaram a aparecer novos militantes atraídos pela possibilidade da constituição de uma nova práxis. Muitas filiações se faziam ancoradas nessa linha. Mas, sem prévias – nas quais todos os militantes partidários poderiam votar – prevaleceu a decisão da corrente majoritária que escolheu Guilherme Boulos para ser o candidato presidencial.  O resultado é história. Sem radicalidade na esquerda, a direita nadou de braçada e elegeu o novo presidente cuja palavra de ordem era: “mudar tudo isso que está aí”, o que para a população aparecia como uma proposta de mudança radical. 

Para o grupo da Revolução Brasileira a derrota de Nildo na disputa interna só deixou mais clara a necessidade de seguir atuando e formando gente nos caminhos da revolução. Por isso, o trabalho de formação seguiu tomando corpo, crescendo, avançando para todos os espaços do país. “Entendíamos que era papel da RB contribuir para a formação de uma nova vanguarda política, capaz de compreender as teses da revolução e atuar com capilaridade nos  sindicatos, movimentos, universidades e organizações populares”, aponta Nildo. 

Ele lembra que as novas tecnologias de comunicação têm sido muito importantes para esse trabalho de formação de novas lideranças. “Antes, quem falava pela esquerda eram o Lula, o Brizola, o João Amazonas. Agora não, nós podemos falar sobre a política nas redes sociais, qualquer um pode falar. E também não precisamos viajar o país inteiro para discutir política. É possível debater usando as ferramentas tecnológicas. Antes, esse trabalho de formação era caro e difícil. Agora não, verbalizamos para milhares de pessoas. Essa é uma potencialidade que a estrutura da rede dá. Tem seus limites e suas contradições, mas também ajuda”.  

É assim que vai caminhando a revolução brasileira, com atividades sendo realizadas todas as semanas, em algum lugar do país. O núcleo de formação se ampliou com novos militantes como os professores Waldir Rampinelli e Angélica Lovatto, além de outras importantes contribuições que surgem fora dos muros das universidades, brotando desde os sindicatos e movimentos sociais. Com isso novos grupos de pessoas vinculadas aos coletivo surgem, tanto nas capitais como nos rincões mais inauditos, nas profundezas do Brasil.

O coletivo da Revolução Brasileira atua prioritariamente junto aos partidos políticos e sindicatos, buscando influir diretamente nos setores que podem verdadeiramente bloquear o capital, cortando seu circuito de circulação. Tem como elemento suleador do debate o nacionalismo revolucionário e com essa proposta busca abrir espaço também junto às Forças Armadas, outro flanco importante para a transformação do país. O circuito de formação avança nesses grupos e a preocupação é caminhar com aqueles que realmente podem contribuir na construção da revolução, gente que tenha autonomia intelectual, que não despreze a teoria e que esteja buscando vivenciar uma nova práxis. A preocupação não é quantitativa, tampouco eleitoral, mas procura garantir, nesse momento, a formação de gente que possa formar mais gente, ampliando e capilarizando a ideia da revolução brasileira.

Em abril de 2020 a Revolução Brasileira fará seu primeiro Congresso Nacional, nos dias 16, 17 e 18 de abril, em São Paulo, já contando com uma significativa militância formada nesses três anos de trabalho ininterrupto. Será o momento de fortalecer as teses, organizar a corrente e planejar os novos caminhos. O coletivo cresce e se espalha de maneira segura.

Devagar, despacito, a revolução vai se forjando. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Helena

Foto: Helena, com Brenda Piazza. Aqui, de novo, no apoio concreto às novas lideranças, durante uma das campanhas eleitorais.


Hoje vou falar de uma pessoa muito especial que é uma referência para mim: Helena Dalri. A conheci quando cheguei à UFSC em 1994. Funcionária nova, na primeira assembleia da categoria tratei de ir para saber a quantas ia a luta dos trabalhadores públicos, categoria a qual eu me integrava. Naqueles dias as assembleias eram realizada no Restaurante Universitário, porque eram sempre gigantescas. Já nas primeiras falas, de análise da conjuntura e nas proposições, vi que a direção não era de esquerda e que havia um grupo bem articulado fazendo oposição. A Helena era uma das pessoas que faziam parte do grupo. Alta, forte, firme na fala, ela logo chamou minha atenção. Ali estava uma liderança, pensei. E era.

Poucas assembleias depois eu já decidira me integrar ao Movimento Alternativa Independente, grupo do qual Helena fazia parte, junto com outras figuras importantes da luta na UFSC tais como Silva, Maneca, Valcionir, Moisés, Ângela, Aldo, Silvana. Em pouco tempo já estávamos articulando chapa e em 1997 vencemos as eleições para o Sindicato. Pegamos uma bucha. Havia uma dívida de 500 mil reais. Helena era a presidente. Poucas vezes na vida pude trabalhar junto com uma pessoa tão íntegra e tão firme nas suas convicções. Aparentemente dura no trato, ela é de uma doçura e generosidade incomensuráveis. Os reitores a temiam e ela era mesmo implacável na defesa dos direitos dos trabalhadores. Sob a sua batuta entramos no Sintufs e, em um ano, já tínhamos quitado todas as dívidas deixadas pela gestão anterior. Trabalho sério, honesto, comprometido.

Durante todo o tempo em que atuamos juntas no sindicato e mesmo depois que ela saiu da direção, todos nós que chegamos nos anos 1990 pudemos aprender sobre como atuar na luta sindical e como administrar um sindicato sem perder a noção de que aquilo ali é um espaço de toda a categoria, coletivo, único. E que, cuidá-lo, é como cuidar de cada um e cada uma. Com ela enfrentamos as feras cotidianas da UFSC, as batalhas na Fasubra, as negociações com a Fapeu, as quedas de braço com os reitores. A liderança que Helena exercia sobre os trabalhadores era tão forte que a uma palavra dela as gentes seguiam sem pestanejar. Quantas ocupações da reitoria fizemos a partir de seu sinal. Um braço levantado, seu corpo gigante na frente, e lá íamos todos nós, na certeza de que ela nos conduziria bem.

Quando veio o governo Lula ela já não estava mais no sindicato. Tinha deixado o espaço aberto para as novas lideranças que surgiram durante a década dos 90. Mas, não faltava uma assembleia sequer, sempre de olho e pronta a puxar as orelhas de quem não atuava como tinha de ser. Muitas batalhas travamos também, inúmeras vezes na divergência. Só que Helena nunca permitiu que a política interferisse nas relações pessoais. Podíamos bater boca nas assembleias , mas não faltava o abraço, o sorriso e o companheirismo. E mesmo quando muitos companheiros nos abandonaram por conta da nossa crítica ao Lula, ela continuou nos acolhendo no seu abraço caloroso. Nunca se perdeu de nós, seus aprendizes. E eu sempre serei grata por isso. Afinal, esse foi mais um ensinamento.

Hoje a Helena está aposentada e já não atua mais diretamente nas lutas sindicais da UFSC. Mas, isso não significa que ela está fora do mundo. Não. Segue atenta, apoiando sempre as lutas que são travadas. E continua igualmente atenta às novas lideranças que vão surgindo, no suporte, e ensinando.

Sempre que eu penso em sindicato e em como viver essa passagem de atuação coletiva, a imagem que me vem é definitivamente a da Helena. Seu exemplo, seu cuidado, sua vontade férrea, sua capacidade de trabalho. Não consigo imaginar a vida dos trabalhadores da UFSC sem sua figura altaneira. Com ela nasceu o sindicato, com ela realizamos as mudanças mais significativas da entidade, com ela aprendemos sobre companheirismo, dignidade, força e humildade.

Eu a reverencio como uma das mais importantes pessoas que já passaram pela UFSC, deixando sua marca indelével. E eu a amo profundamente. Gracias Helena, por tudo que és e representas! Inesquecível. Eterna!


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

A fortaleza vem do coletivo


Esse é um tempo de solidão, de desespero, de nojo. E isso não é um problema pessoal, que atinge um ou outro. É um drama social. Li outro dia o belo trabalho do nosso companheiro, agora jornalista, Pedro Cruz, seu texto de final do curso de Jornalismo. Nele, Pedro narra a dor psicológica de alguns estudantes nos seus dramas aparentemente singulares. Cada história vai descortinando sofrimentos psicológicos, mentais e espirituais que não são exclusivos da vida pessoal. Eles se forjam no embate com o público, com a vida na sua concretude, nas relações desconstruídas, sem tecimento, provocadas por essa maneira absurda de organizar a vida que nos é imposta pelo capitalismo.

Daí o sofrimento de uma juventude de classe baixa ou média sem horizontes, sem objetivos de longo prazo, sem ilusões, sem propostas. A vida se lhes aparece como uma sucessão de dias que são cumpridos automaticamente, no torvelinho das redes sociais, dos relacionamentos sem estofo, do emprego precário ou da tragédia diária vivida nas comunidades empobrecidas, de miséria e morte.

Esse é um tempo de solidão, no qual as pessoas deixam de falar umas com as outras: mandam mensagens por uatizape, mensagens que não permitem interação. Não há afeto, abraços, beijinhos, afagos. Não há horas de completo ócio, com as pernas pra cima, pensando na revolução. As pessoas esqueceram que a revolução é possível. Estão domesticadas num sistema que lhes mente o tempo todo sobre felicidades vãs, inalcançáveis.

E a solidão vai ficando tão grande que as pessoas já não acreditam mais na força da amizade, do amor. Não se permitem se deixar acolher, abraçar, ficar. Pensam que seus dramas são pessoais e que só a elas cabe resolver. Esse círculo louco vai fazendo com que o que sofre fique sozinho, e os demais não se importem com a dor do outro. O circuito da solidão existencial. E é aí que aparecem as igrejas oportunistas, puxando esses tristes seres do vazio, dando-lhes comunidade, pertencimento, mas ao mesmo tempo fortalecendo ainda mais o cerco do capital, na medida em que oferecem a promessa dos bens materiais como isca. Isso não é por acaso.

Ontem eu perdi um amigo. Ele se recusou a responder as mensagens, os telefonemas, os correios. Ele estava longe. Ele estava só. Acuado na sua dor. Ele foi embora pensando que os problemas dele eram só dele. Não eram. Eram meus, eram nossos, eram de todos os brasileiros fodidos, de todos os seres humanos submetidos à moenda do sistema capitalista que tudo destrói.

É preciso que nos recusemos a isso. O sofrimento de um dos nossos companheiros é o sofrimento de todos. E só tem um jeito de mudar esse mundo sombrio: transformá-lo. É tempo de revolucionar, mudar, revolver, virar patas arriba. O mundo precisa ser solidário, amoroso, cooperativo. Só que isso não vai acontecer no privado, no particular, no nosso movimento particularista, ou apenas no nosso grupo de amigos. Precisa ser geral, para a classe trabalhadora, para os oprimidos. E para isso, só a revolução mesmo. A revolução brasileira. A mudança total das coisas. Um mundo no qual as pessoas possam viver sem medo, amparadas socialmente, criando belezas. O mundo do comum.

Não quero prantear corpos vencidos pelo sofrimento. Quero a alegria compartilhada. E te convido. Quando esse sistema for destruído, as coisas vão mudar. Para todas as pessoas. Temos que decidir por isso. Basta!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A informação e o direito à cidade



Conversa sobre informação e o direito à cidade realizada no I Congresso de Direito à Cidade realizado nos dias 9 e 10 de dezembro de 2019.

1 – A mídia comercial, tal qual a justiça, é um instrumento da classe dominante e se ampara em duas pedagogias fundamentais: a Pedagogia da Sedução e Pedagogia do Medo. Uma olhada no seu conteúdo e pode-se perceber que os conteúdos estão voltados ora para seduzir, ora para amedrontar.  Na sedução: o capitalismo é bom, compre isso, compre aquilo, seja bonito fumando tal cigarro, seja feliz comendo tal margarina, veja como os empresários da novela são bonzinhos. É o que o pensador venezuelano Ludovico Silva chamou de mais-valia ideológica. O trabalhador, ao acessar a mídia, não se descola do sistema que lhe rouba vida. Assim que da mídia comercial não podemos esperar nada, democratiza-la, dentro do sistema capitalista, não significará absolutamente nada para os trabalhadores, para a maioria da população. O sistema capitalista, para se consolidar e seguir poderoso, precisa desse braço armado, sedutor, por onde divulga suas ideias, expressa a cultura do sistema, trabalha a pedagogia da sedução e define os inimigos que precisam ser combatidos. Ele pode conceder uma coisinha aqui, outra ali, para se dizer “democrático”, mas na essência continuará mentindo e seduzindo.

2  - A mídia comercial não mostra nem nunca mostrará a cidade real, essa cidade dos desvalidos, dos condenados, dos sem casa, dos sem esgoto, dos sem lazer. Não tem interesse nisso, porque ao apresentar a realidade expõe as contradições do sistema. Assim, quando a cidade aparece na mídia é sempre de maneira ritual e fragmentada. Matéria sobre buracos de rua, sobre problemas estruturais são dadas como se fossem pequenos furúnculos num corpo sadio. Aí os repórteres mostram a denúncia e depois mostram o poder público dizendo que vai arrumar. Pronto. Problema resolvido.

3 – Já com relação aos que enfrentam o sistema, a proposta da mídia comercial é aprofundar a  pedagogia do medo. Tudo é feito para amedrontar as pessoas e para criar os estereótipos do que vem a ser o inimigo da ordem e do progresso. Programas como os do Datena, que tem sua filial em todos os estados do país, são usinas do medo. Mortes, assassinatos, coisas horríveis sendo praticadas por quem? Por gente pobre, preta, desempregada, favelada. Raramente um crime de gente rica, branca, bem alimentada. E quando aparece soa como algo assim, quase inusitado. Parece que nada de ruim acontece nos palácios. A parada ruim é só nas comunidades empobrecidas. Por isso que massacres como os de Paraisópolis são vistos como normal, já que aquele povo lá, nos bailes funk, é pobre, preto e favelado, logo, para a maioria alfabetizada pelo medo é “tudo bandido”.

4 - Quando as gentes se levantam em luta, a mídia também mostra. Mas essas lutas igualmente aparecem como uma parte doente de um corpo saudável, reforçando o preconceito instalado pela pedagogia do medo. São pessoas que incomodam. E sobre elas já está manufaturado o conceitos necessários para fazer com que a sociedade encare esses movimentos como coisas ruins. São os baderneiros, os contra tudo, os eco chatos, os vagabundos que querem mordomia sem trabalhar, que querem casa sem pagar por ela. Ou seja, tudo de ruim. Gente ruim. Isso não é por acaso. É preciso fortalecer essa ideia para que a sociedade os veja como seus inimigos também. Então, a pedagogia do medo já fez o seu trabalho.

5  - A mídia mostra como inimigos de todos aqueles que são apenas os inimigos do capital, da classe dominante, ou seja, uma pequena parcela da humanidade que domina o mundo e que produz tanta dor, destruição e desgraça. É um trabalho eficaz e a conjuntura nos mostra isso. De novo estamos enfrentando o ódio de nossos iguais. Esse ódio foi apaziguado por um tempo, durante a era do “politicamente correto”, mas ele não desapareceu. Permaneceu vivo. Porque a mídia continuou seu trabalho de sedução/medo. É importante frisar que o ódio de classe é bom e necessário. Só que o capital faz com que o ódio fique entre a classe trabalhadora, sem envolver a classe dominante. Odeia-se o índio e não o sistema que rouba suas terras (os ricos, os latifundiários, os grileiros). Odeia-se o negro e não o sistema escravocrata que o aprisionou, odeia-se o pobre e não o sistema que o produz. Odeia-se o gay, o trans, o anarquista, o sem teto, o sem terra, o comunista, porque eles desestabilizam a “paz”. Uma paz que não existe, mas que as pessoas acreditam que exista, porque bombardeadas com toda a maquinaria ideológica do capital que também se reproduz na família, na escola, na igreja e na mídia. 

6 – O dramático de tudo isso é que a luta dos empobrecidos pelo direito a cidade sempre se volta contra eles. Quando ocupam um vazio urbano, por exemplo, na batalha por moradia, estão abrindo caminhos para que se expresse a renda da terra, já muito bem explicada por Marx. As famílias ocupam, sofrem a ação da polícia, e quando finalmente conquistam a terra, o posto de saúde, os caminhos, acabam por valorizar os espaços. E os endinheirados olham para o que era um vazio sem estrutura e querem tomar para si. Porque já está ocupado, já conquistou a estrutura, valorizou. Então, os empobrecidos voltam a sofrer a pressão do capital querendo tomar suas terras. Vivemos isso todos os dias na nossa cidade, nas praias e nos morros.  

6 – Diante disso, que fazemos? Como informar sobre a cidade real num sistema de contrainformação? Como desfazer as armadilhas ideológicas montadas via rádio, tv, jornal, internet, redes sociais? Como enfrentar o monstro midiático? 

7 – Ao longo dos tempos sempre procuramos montar nossa própria mídia. Os jornais de bairro, jornais sindicais, as rádios comunitárias. Processos importantíssimos de resistência, mas praticamente ineficazes, porque não atingem a massa. Tem pequeno alcance e, no geral, são incapazes de trabalhar a notícia com a totalidade, igualmente fragmentando a informação, passando um discurso ideologizante que não ajuda no processo de emancipação do sujeito. O que quero dizer com isso? Que não basta mostrar a ocupação, por exemplo, há que dizer que ela só existe por conta de um sistema de produção que tem como norma básica a existência do empobrecido. Para que um viva, outro tem de morrer. Esse é o tema. Então, se há uma ocupação de luta por moradia, a nossa mídia tem de contextualizar de tal maneira que quem está na ocupação entenda sua posição dentro da realidade, e quem está de fora perceba que a responsabilidade daquela situação não é só do prefeito de plantão, mas de um sistema que se organiza pra que as coisas sejam assim , um sistema global do qual o prefeito é braço. Temos dificuldade com isso. Em mostrar isso. 

8 – Adelmo Genro Filho, um teórico do jornalismo, já nos mostrou como é possível fazer jornalismo sem manipular. Usar a informação como formação de conhecimento e não só como uma informação a mais. Mas, infelizmente, nossos companheiros jornalistas, que atuam nas mídias independentes, comunitárias e populares, apesar de conhecerem a teoria, ainda não se apropriaram desse modo de escrever e narrar e, no mais das vezes, produzem ideologia também. Agora nas redes sociais isso é ainda mais óbvio. Quanta mentira sai no campo da esquerda. Não é só a direita que mente. Isso não pode acontecer. Na nossa mídia a informação tem de ser veraz, confiável, correta, totalizante. 
9 – E, diante do assombroso volume de informações que hoje nos chega via redes sociais, como atuar, como se defender, como encontrar a verdade? Não é coisa fácil e demanda um trabalho conjunto entre partidos políticos, movimentos sociais, educadores, lutadores sociais, no sentido de ajudar a criar o pensamento crítico em cada pessoa com a qual atua. 

10 – Partilho da ideia de que ainda é muito preciosa a formação cara-a-cara, a comunicação interpessoal e ainda aposto no impresso. As pessoas querem saber das coisas, elas têm fome de informação, porque hoje a informação é uma necessidade social. Mas, elas também estão mergulhadas num redemoinho de palavras que lhes chegam no celular, fragmentadas e sem amarração totalizante. Então, temos dois caminhos:

a) Ou tentamos responder a enxurrada de ideologia e mentiras que são divulgadas pela mídia comercial e pelas redes sociais, coisa que não conseguimos, porque não temos o controle dos meios. Uma emissora de TV chega a milhões de pessoas. Uma empresa disparadora de uatizapi chega a milhões e nos não temos isso. Não temos essa estrutura, esse alcance de massa. Não temos como competir. Nossa mídia é pequena. Não é de massa. 

b) Ou enfrentamos com criatividade, fugindo do modelo que nos é imposto. A loucura do roubo do tempo nos é imposta pelo capital. O sistema nos quer enredados nessas maluquices informativas que desinformam, nos rouba o tempo para que não pensemos. E entramos na loucura, querendo competir com o tempo do capital. Um exemplo: estamos hoje em Florianópolis sem nenhum jornal. As empresas fecharam, atuando só nas redes sociais.  Acredito firmemente que um jornal pode ter papel importante nesse momento histórico. As pessoas querem ler, gostam disso. A Igreja Universal – que é uma usina ideológica tremenda – sabe disso e distribui um jornal bonito e capaz de tocar as pessoas. Eu as vejo no ônibus, lendo o jornal, que é standard ( grande). E por quê? Porque ali têm coisas que lhes interessa. Então, o que nos falta para ter um jornal, capaz de mostrar a cidade real, provocar o desequilíbrio, fazer a pessoa sair do uatizapi?

11 – Finalizo dizendo que a mídia popular sozinha não faz a revolução, não é o motor da mudança. Hoje, é apenas resistência. Mas, já passamos do tempo da resistência. É preciso avançar e construir o processo da revolução brasileira. Garantir o país para os trabalhadores, os empobrecidos, os oprimidos. Garantir uma cidade para quem a constrói cotidianamente. Para isso nossa mídia tem de atuar para além da resistência. Tem de formar gente. E claro, precisa que também existam partidos políticos forjando o novo, sindicatos formando seus trabalhadores, movimentos sociais lutando, mas também estudando, vanguardas políticas e intelectuais fazendo seu trabalho de pensar em profundidade, totalizar os desejos e concretizar em propostas as demandas populares. O trabalho tem de ser conjunto. Uma andorinha sozinha não faz o verão. 

12 – E finalmente, deixo como provocação final a seguinte afirmação: não é possível democratizar a comunicação no capitalismo. Isso nunca vai acontecer. Não gastem cartuchos com isso. Há que destruir o capitalismo como modo de produção, como maneira de viver. Um novo modo de produção, uma nova cosmovivência apontará também uma nova comunicação, na qual os meios de informação de massa estarão nas mãos dos trabalhadores, da maioria das gentes. Precisamos avançar para além da resistência. Essa é a nossa hora histórica.  


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Eu gosto do natal

Foto: um guri palestino - Karine Garcêz

Gosto de esperar o menininho fazendo meus rituais. Ver dezenas de filmes de natal, colocar o sapatinho na janela para os presentes espirituais, estender o capim para o burrinho comer enquanto espera o menino que vem para brincar comigo, montar o presépio, enfeitar a árvore. Tudo coisas simples, mas que me dão felicidade. Aprendi tudo isso com minha mãe, que era bem católica e tinha apreço por esses momentos de celebração do aniversário de Jesus. Nada de presentes, compras, grande comidas. Só a espera, carregada de ternura, pela hora do advento. Quando muito uma cerveja bem gelada, que ninguém é de ferro. Prefiro passar a meia-noite em solidão, sem alardes, enquanto nas demais casas as pessoas se empanturram. Eu não. Eu canto.

No geral, a noite de natal sempre é noite de paz. A meia-noite o pai já dormiu, o companheiro já foi brindar com a família, o sobrinho saiu com a namorada. Tudo é silêncio. Eu, os gatos, os cachorros, a cerveja. Celebrar mesmo, em família, a gente curte no almoço do dia 25. O momento do nascimento do menininho pede essa calmaria.

Esse ano, não sei, creio que vai ser um natal bem triste. Afinal, foi um ano em que muita gente ruim fez coisas ruins em nome do meu deusinho. Imagino que nós dois estaremos no alpendre, acabrunhados, sentindo aquele sentimento ruim, de impotência e de raiva. É certo que sempre teve gente ruim usando o nome de deus para justificar seus horrores, mas esse ano parece que foi mais, e a ruindade esteve bem mais próxima. Já posso até ver a carinha do meu menino, com seus olhos graúdos, marejados. Ele que veio para firmar uma nova aliança, baseada no mais profundo amor, vendo seu nome usado para o mal. Acho que não brincaremos, nem daremos gostosas gargalhadas. Acho que ficaremos abraçados, quietos, coração com coração. “Não tenho poder”, ele vai dizer, como sempre disse. E eu responderei: “Eu sei, eu sei”.

E quando a barra do dia surgir e ele tiver de ir, não daremos cambalhotas, nem faremos currupiu entre gritos de alegria. Soltaremos o abraço bem devagar e choraremos. Ele subirá no burrinho e seguirá o caminho para o infinito e eu ficarei, impávida, no portão. Ele acenará tristonho e eu gritarei: “Tranquilo, vamos enfrentar com brio, como tem de ser”. Um dia, menininho, esse mundo vai ser todo de amor, quando a propriedade for comum e o trabalho for para a vida. A gente vai chegar lá.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O centro



Quem me conhece sabe da paixão que tenho pelo centro. Percorrer aquelas ruelas é minha terapia de todo dia. Meu corpo anda automaticamente pelos caminhos tantas vezes percorridos e meu coração saltita todas as repetidas vezes, como se fosse a primeira vez. Conheço cada detalhe, cada cheiro e cada rosto dos que, como eu, também costumam andar ali. Tenho particular amor pela Conselheiro Mafra. É o meu encanto.

Por ali flano como se estivesse na minha própria casa e sei de todos os personagens que fazem daquela rua seu lar, os quais cumprimento com um sorriso, ainda que só eventualmente tenhamos nos falado: as prostitutas, os vendedores haitianos, os equatorianos, os africanos, as senhoras que vendem panos de prato, as que vendem meia, os que vendem agulha pra fogão à gás, os que consertam relógio, os que afiam tesoura, os vendedores de pipoca, os vendedores de água de coco, de caldo de cana. Minha família estendida.

Outra rua que me enternece é a Francisco Tolentino. Gosto de andar por ela nas tardes de calor entrando naquelas lojinhas de maravilhas que vendem toda a sorte de coisas, bem como nas lojas de roupa barata e as de calçado ruim. Posso ficar por horas escolhendo parafusos, ou peças estranhas de fogão, ou pegadores de armários, ou saias indianas falsificadas, ou bichinhos de pelúcia. E, antes de ir embora, tomar um cafezinho nas lanchonetes mocozadas com cheiro de fritura.

O centro é pura vida! Sem ele não existo. Se um dia eu morrer, e vou, com certeza minha alma errante ficará saracoteado por ali, como a do Mosquito (Hamilton Alexandre), o qual vejo sempre nas imediações do mercado público. Hoje mesmo o vi, rápido, com o computador na mão, passando ligeiro na Jerônimo Coelho. Olhamos um para o outro, almas irmãs, sorrimos, nos abraçamos longamente e seguimos, mergulhados na nossa paixão por essa cidade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O pai e a quadra das coisas perdidas


O pai é como um dínamo, e não para um minuto sequer. Acorda as cinco, cinco e meia da manhã e passa o dia inteiro ligadão. Anda pra cá e pra lá milhões de vezes, dá dezenas de voltas no jardim e caminha do alpendre para o portão o tempo todo. Vai até o muro e pega os sacos de lixo que estão descansando esperando o lixeiro, e se vem com eles pra dentro de casa. Se a gente não vê ele leva pra dentro do quarto e esconde.

- Pai, isso é lixo. Deixa lá que os moços do caminhão vêm pegar amanhã.
- Que moços?
- Os que coletam o lixo.
- Ah, tá.

E lá se vai ele de volta com os saquinhos. Dali uns dez minutos a cena se repete, tudo igual. Até que ele arranja outra distração. 

Dentro de casa nada lhe escapa, mexe em tudo. Como eu tenho muitas coisinhas pelos armários, lembranças de viagem, ele tem um universo de tarecos para surrupiar. Pega as pedrinhas do Pacífico e enfia nos bolsos, os saquinhos de areia da Núbia, os bonequinhos chineses, as figurinhas do Jornadas nas Estrelas, o senhor Yoda, o jesusinho do presépio, e vai escapulindo para o quarto com toda a sorte de tarecos. Também se farta na fruteira onde pega laranjas, bananas, e até os grandes maracujás que não consegue acomodar no bolso, mas ainda assim sai de fininho com eles na camisa que transforma em sacola. Chegando ao quarto ele guarda nos lugares mais inauditos. Eu deixo que ele faça seu circuito de pequenos “furtos”, sem atrapalhar a sua viagem. Ele se distrai.

No armário da cozinha ele fuça tudo que há, nos talheres, nas panelas, nos pratos, nos potinhos de plástico. Desarruma tudo e vez quando sai com alguma coisa escondida na camisa. Também mexe nos livros e no saco do pão. É uma faina incansável. E assim passa o dia amealhando coisas, carregando como se fosse uma formiguinha. 

Quando chega o fim do dia o quarto dele é um universo, uma espécie de Nárnia onde as coisas mergulham e ficam invisíveis. É hora então de ele “trabalhar”, que é mexer nos papéis que mantém na mesa. Mexe, mexe, mexe, rasga, faz barquinho, fica entretido. Lá pelas dez da noite eu consigo colocá-lo na cama, com muito custo. Ele deita, esticadinho, eu o cubro com o edredom, dou o beijo de boa noite e digo: “agora fecha os olhos e dorme”. Ele obedece. 

Espero que o sono fique mais pesado e então começo silenciosamente a catar as coisas perdidas. Abro o guarda-roupa e vou coletando. No meio das roupas, nas gavetas, dentro de meias, embaixo das cobertas, ajeitadas em pacotinhos, sempre tem alguma coisa. Outras desaparecem mesmo, por dias, e eu vou encontrar quando já nem mais tenho esperança de vê-las novamente. Elas simplesmente surgem, como mágica. 

Feita a recolha trato de sair, pé ante pé, de fininho. Antes de fechar a porta dou a última olhadinha. Ele está ressonando, bonitinho. Ao lado dele vejo sacis, duendes e até alguns etezinhos, que ficam por ali com seu amiguinho surrupião. O quarto é um reino encantado. Tudo parece bem, a noite vai se alongando e eu finalmente vou dormir.  

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Morremos sempre, mas levantamos



Quem estuda história sabe. Desde os tempos mais remotos, quando o ser humano decidiu dividir-se em classes, há os que dominam em nome de suas demandas particulares e os que são dominados, geralmente conformando a maioria. Nem sempre foi assim, certo? Houve uma infinidade de povos que existiu em sociedades livres, comunitárias, de mando compartilhado, cooperativo, nas quais as demandas de todos eram levadas em conta. E até hoje podemos encontrar entre algumas nacionalidades originárias essa forma de ser e estar no mundo, ainda que ilhadas pelo capitalismo. 

Dominar em nome de interesses particulares não é coisa fácil. Há que ter todo um trabalho cultural, ideológico, de disseminação de mentiras, que de tantas vezes ditas, se fazem verdades. É preciso fazer a maioria das pessoas acreditar que os interesses de uns poucos são os interesses de todos. E há que ter as forças da repressão para empurrar, pela força bruta, as mentiras feitas verdades àqueles que não foram enganados. É assim que ao longo da história humana as coisas aconteceram e seguem acontecendo. 

Nesse processo, sempre que os dominados se levantam em luta contra todas as dores que lhe são impostas, a saída encontrada pelos que dominam em interesse próprio é o extermínio de quem luta, para que não apareçam como laranjas podres a contaminar toda a gente com a verdade que se impõe. Então, começam as campanhas de mentiras e difamações contra os rebelados: “bandidos, subversivos, comunistas, loucos, desagregadores da boa ordem, insatisfeitos, baderneiros, etc...”. E se isso não basta para que uma massa significativa sirva de anteparo à rebelião, chegando ao ponto de matar seus vizinhos, parentes e amigos, acreditando piamente que os rebelados são “do mal, do demo, do capeta”, então vêm as forças da repressão: tiro, porrada e bomba. 

Essa é uma receita que se repete, e se repete, e se repete. 

Mas, se é assim, porque então as pessoas se levantam em luta? Ora, porque chega uma hora na qual a mentira já não mais se sustenta e as condições da vida material das pessoas ficam tão horríveis que não há mais saída. Os filhos não têm escolas, não têm saúde, não há segurança, a morte ronda pela miséria, pela fome, pela violência social. Como num átimo, as pessoas se dão conta de que os interesses defendidos pelos poderosos não lhes dizem respeito. 

Essa é a compreensão de boa parte do povo chileno, agora mesmo, em luta contra um estado que lhes tirou tudo. Eles observam e vêm que há uns poucos que juntam riquezas sem fim, enquanto a maioria empobrece sem parar. 

Essa é também a compreensão de grande parcela do povo boliviano, que tinha um governo que apresentava sensibilidade social, garantindo que pelo menos parte das riquezas do país fossem investidas no próprio país, servindo a toda gente. Por isso os bolivianos não aceitam o golpe. Sabem que os que estão a clamar por democracia em nome de deus serão bem piores, e que governarão para si e para garantir seus interesses particulares. 

Aos que não têm nem a máquina ideológica, nem as forças da repressão, resta juntar-se e, a partir daí, lutar. Quem decide enfrentar o horror sabe bem o que arrisca: nada menos do que a vida. Porque o poder não tem piedade, nem compaixão, nem clemência. É o que podemos ver no Chile, com os soldados do governo atirando para matar, ou, suprema crueldade, cegar. É o que vemos na Bolívia, com os mortos se acumulando. 

Morrem, fatalmente, morrem sempre os do lado da luta pelas demandas coletivas. Os que se atiram frente à repressão em nome de um mundo que possa ser bom e bonito para todos. E são esses mortos os que garantem as conquistas. É assim que é. E é por causa deles que o mundo avança. São os heróis dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos índios, de toda a gente que começa a enxergar. Caem, estão mortos. Mas, desde a beirada de suas tumbas, se junta todo um povo, que se levanta e caminha. E é assim que os mortos levantam e caminham também. 

Hoje, no Chile, na Bolívia, no Equador, na Colômbia, nas ruas do Rio de Janeiro, nas veredas das terras indígenas do Brasil, no campo,  tombam os mortos das nossas fileiras. Nós os reverenciamos, os choramos, e os colocamos para andar. Que seja assim, sempre. 

Para os que ficam vivos, o poema de César Vallejo: Massa


Terminada a batalha,
E morto o combatente, veio até ele um homem
E lhe disse: “Não morras, te amo tanto”.
Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo.

Vieram mais dois e repetiram:
“Não nos deixe! Valor! Volte à vida!” 
Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo.

Acudiram a ele vinte, cem, mil, quinhentos mil
Clamando” “tanto amor e não poder nada contra a morte”!
Mas, o cadáver, ai! Seguiu morrendo.

Rodearam-no milhões de indivíduos
Com um pedido comum: “Fica aqui, irmão!”
Mas o cadáver, ai! Seguiu morrendo.

Então, todos os homens da terra o rodearam,
Os viu o cadáver triste, emocionado;
Incorporou-se lentamente
Abraçou o primeiro homem, pôs-se a andar.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Ataque aos trabalhadores públicos



A proposta do ministro Paulo Guedes para o serviço público é a volta aos tempos dos coronéis. Ou seja: para ser um servidor público haverá de ter QI, o famoso “quem indica”. Todo o processo de luta que os trabalhadores travaram para garantir um serviço público livre das ingerências dos governantes de plantão irá para o ralo com a reforma que está em curso.

Segundo a proposta do ministro não haverá mais servidores públicos com estabilidade. E a estabilidade é justamente o único mecanismo que o Estado tem para não sucumbir aos humores dos governos. Ou seja, um trabalhar estável não pode ser demitido simplesmente porque o governo que está de plantão não gosta de sua cara ou de sua posição política. A estabilidade é uma garantia de que, independentemente de quem está no governo, o trabalho público segue visando apenas o bom atendimento à sociedade.

Pois a ideia do governo de Bolsonaro é colocar na máquina pública apenas os amigos e os amigos dos amigos. A estabilidade estará reservada apenas para um grupo muito seleto de trabalhadores como os auditores fiscais, diplomatas, policiais federais e fiscais do trabalho. Mas, mesmo esses terão de viver um período de “treinamento” de três anos, podendo ser demitidos se não houver vaga ou se não for bem avaliado. Caso passe por esse funil, que significa passar três anos fazendo as vontades das chefias para poder ser bem avaliado, o trabalhador ainda terá pela frente sete anos de estágio probatório, provavelmente o estágio mais longo já criado no universo. Assim, se a pessoa conseguir ficar 10 anos servindo aos seus chefes de maneira cordata e servil, sem meter-se com greves e reivindicações - aí sim terá o direito à estabilidade.
As demais carreiras não terão possibilidade de pleitear a estabilidade. Tudo ficará ao sabor do chefe de plantão. E, caso o governo decida, pode acontecer demissão. Também poderão ser contratados servidores temporários, ou seja, o trabalho precário e sem direitos.

Não bastasse isso quando o governo decidir que vive uma emergência fiscal, poderá passar a mão no salário dos trabalhadores, reduzindo-o em até 25%. Tirar dos ricos nem pensar, os empresários estão cada vez mais recebendo as benesses da desoneração de impostos. Vão tirar mesmos é dos trabalhadores.

Aí está. O plano “Mais Brasil” é na verdade um plano de “mais amigos meus mamando no estado”. Provavelmente só sobreviverão no serviço público os que fizerem a “aliança” pelo brazil e servirem ao senhor deus de Israel. Quando à sociedade? Que se dane!

E os trabalhadores? Esperarão a Justiça?


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Passeando com o pai



Toda a tarde, quando chego a casa, o pai já me espera no portão. Eu nem entro e ele já começa com o mantra: quero ir embora. Eu vou enrolando. Primeiro cumpro a rotina da limpeza. Limpar banheiro, trocar a roupa do dia, fazer a higiene. Tudo isso leva tempo, porque é preciso inventar mil e uma estratégias.

Depois, saímos, porque o ritual de abrir o portão e sair de casa já serve como um escape. Como não dirijo nem tenho carro, o jeito é caminhar. E agradeço aos deuses e deusas pelo fato de ele ser um homem forte, com o corpo ainda firme e as pernas rijas. Adora andar. Sempre foi assim. Aqui onde eu moro não tem aonde ir. Nenhuma praça, nenhum parque, a praia fica longe para ir andando. Então, o único lugar possível é o mercado. São mais ou menos uns 600 metros da casa até lá, trecho que cumprimos em uns 40 minutos para ir e outros tantos para voltar.

Andando com ele, no passinho lento, tudo é motivo de parada. Um passarinho no muro, um gato, um cachorro, um avião que passa baixinho, um carro em alta velocidade, uma criança brincando, alguém que passa. Mas sua alegria mesmo é chutar coisas. Não pode ver uma pedrinha, um papel, uma tampinha de garrafa, uma bituca de cigarro, vai logo aplicando o bicudo. E ri às gargalhadas, como se fosse um grande feito.

Chegando ao pequeno centro comercial passa pelo barbeiro e fica olhando lá pra dentro até o Luiz acenar. Ele acena também, alegre. Ali é aonde vai a cada 15 dias para o ritual da barba. É bom, porque interage com outras pessoas. Depois entramos no mercado e compramos alguma coisinha. No geral é o cigarro, receita médica, que não pode faltar. As meninas já o conhecem e logo pegam o Hollywood vermelho e entregam direto na sua mão. “Guarda no bolso”, elas dizem. E ele fica bem faceiro.

Cumprido o roteiro, voltamos. E lá vem ele, tapado de meninice feito o Armandinho do Alexandre Beck, chutando tudo que vê pela frente. Não sem razão o bico do sapato é todo esfolado. Nesse passeio levamos mais de uma hora e quando voltamos para casa a ansiedade já diminuiu. Ele acende o cigarro e fica no alpendre, acarinhado os cachorros. A tarde cai, a barra da noite vai subindo e nós passamos por mais um dia.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Os brasileiros por conta própria


As cenas no nordeste são de arrepiar. O óleo vazado dos navios da Shell chegando a mais de 180 pontos de praia. E nenhuma ação do governo brasileiro para conter o desastre. O presidente chegou a dizer que o país não tem responsabilidade alguma, logo, nada fará. Está brincando de rei no Japão. E, como o governo acabou com o Comitê que trabalhava na contenção de desastres, não há qualquer política de ação. Cada cidade está tendo de agir por si.

Enquanto isso, as gentes que vivem nas cidades afetadas estão tirando o óleo da praia do jeito que dá, com apenas sua intuição e desejo de vencer o drama. Quando o dejeto chega à praia, eles enrolam com as próprias mãos e colocam dentro de sacos plásticos, que são levados sabe-se lá para onde.O importante para os moradores é tirar o óleo da praia, já que o mar é o espaço de sustento de grande parte das pessoas.  

O abandono do governo tem a ver com o imenso ódio que o grupo de poder têm dos nordestinos. Primeiro, porque acreditam que lá, todo mundo é do Lula e do PT. E segundo, pelo racismo explícito, sempre alardeado pelo agora presidente da nação. A impressão que se tem é de que essa gente que está no poder agora fica vendo o desastre, rindo e comemorando o fato de os “petralhas nordestinos” estarem sofrendo. Há quem diga que o desastre foi provocado em represália contra os nordestinos. Não sei se chegariam a tanto. Mas, dado o desastre, a inação é deliberada, com certeza.  

Nos grupos de apoiadores do governo os comentários são os mais abjetos: “ que se virem”, “peçam ajuda ao Lula”, “ vão se ferrar”, ou seja, representam e expressam justamente o mesmo sentimento do governo.  Já os liberais aplaudem a ação dos moradores dizendo que é isso mesmo, que se organizem sozinhos e não fiquem pedindo ajuda ao “papai” Estado. Segundo eles, o Estado não tem de dar respostas para tudo.Cada um que se vire.   Ora, se o papai estado não deve ser chamado num desastre dessa natureza, talvez os brasileiros atingidos também não devessem ficar sustentando o “papai” estado, já que são as pessoas que sustentam essa máquina com seus impostos. Logo, não existe um papai estado. O que existe é uma nação sustentada pelo povo que ali vive. O governo não é pai. O governo deveria ser o organizador do espaço, gerindo os recursos que são criados pela população em benefício dessa população. 

Mas, claro, isso seria o ideal. Na verdade, o estado é “papai”sim, mas não da maioria da população. Ele sente-se pai de apenas uma fatia bem pequena da população, que é a dos empresários e grandes proprietários. Para essa parcela ínfima tudo está reservado. Se os bancos, por exemplo, sofrem algum colapso, lá vai o Estados salvá-los. Se alguma grande empresa tem problemas, lá vai o Estado salvá-la, se algum empresário bem rico precisa de ajuda para ampliar os negócios, lá está o Estado para ajudá-lo. Mas, se a floresta pega fogo, que se virem as gentes. E se o óleo de uma empresa multinacional é jogado no mar, que as pessoas encontrem formas de limpar as praias. Nada de esperar pelo “papai” Estado. Porque o estado não é pai dessa gente mesmo. 

O estado é balcão de negócio da classe dominante. Só a ela serve.

Por isso, no nordeste, são as pessoas que estão se virando por conta própria. 

O estado brasileiro está se desobrigando de sua gente, todos os dias, um pouco mais. Além de abandonar o nordeste de maneira perversa, hoje também celebra o fato de jogar na sarjeta todos os seus velhos. O senado aprovou a reforma da previdência que define o fim da aposentadoria dos brasileiros. Raríssimos trabalhadores conseguirão chegar a essa situação visto que terão de trabalhar mais de 40 anos para requerer o benefício. E se chegaram a isso, terão ainda um benefício bem encolhido, que não será suficiente para sobreviver, que dirá viver.  

A reforma passou sem que as grandes centrais sindicais dessem sequer um suspiro. As lideranças burocratizadas preferiram negociar com o Congresso alguns destaques, tentando evitar o pior. Obviamente também não conseguiram porque esse Congresso que aí está não representa a população e sim os grupos de interesses e poder.  

Assim, o Estado brasileiro vai mostrando sua cara real,eliminando qualquer ilusão que alguém possa ter sobre ser o pai das gentes. Não há absolutamente nada que se possa esperar do Estado. Muito menos do sistema que o sustenta e que alguns chamam de “democracia”.  O quanto antes a população entender que nem o Estado a representa, nem a democracia existe, mais rápido será possível mudaras coisas.

Vejam que o sistema de poder é muito eficaz na sua batalha discursiva. Tanto que chama de ditadura sistemas de governo como os de Cuba, da Venezuela e agora da Bolívia. E chama de democracia países como os Estados Unidos, Iraque, Brasil. Ora, Cuba exerce muito mais a dita democracia que qualquer lugar do mundo. Lá, a população sabe o que acontece e decide os rumos do país em cada rua, cada bairro. Na Venezuela, a maioria da população é chamada para decidir sobre os rumos do país. Isso é apresentado como ditadura e ponto final.

Já um país como os Estados Unidos que nem eleição direta para presidente tem– o que seria um pilar básico da tal democracia – é visto como modelo de liberdade no mundo. E só são reconhecidos como “democracia” os governos que se aliam aos Estados Unidos.Ou seja, tudo está “de patas para o ar”. Aquilo que dizem ser democracia é na verdade ditadura, e o que chamam de ditadura são governos de liberdade. E é incrível que as pessoas não consigam perceber isso, tão ofuscadas que estão pela comunicação massiva e ideológica. 

Por isso que o governo brasileiro e a mídia local mentem dizendo que o óleo chegado ao nordeste veio da Venezuela. Ligam assim o desastre à “ditadura” e ficam isentos da responsabilidade. Ora, mesmo que o óleo fosse da Venezuela – e não é  - o governo tinha de ter um plano de contenção de desastres. E se vier um furacão? Ou uma tormenta? Ou um tsunami? O Estado não vai agir? Ao que parece, não.  

Estamos por nossa conta e, inclusive, sem direito a ficar velho. Bueno, isso pode ser bom, se estamos por nossa conta, e estamos dando conta, isso significa que esse Estado aí não é necessário. Logo... um mais um são dois. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Não matem o jornalismo, façam-no viver



Amanheci impactada com a notícia sobre a demissão de tantos jornalistas, mais de 20, de uma só vez, em Santa Catarina, em uma única empresa. Alguns dos companheiros e companheiras com mais de 20 anos de casa, vindos da antiga RBS e incorporados pela agora NSC, que os demite. Perder o emprego nesses tempos sombrios parece adquirir uma carga mais pesada. Com meus colegas me solidarizo e os abraço.

As demissões acompanham toda uma mudança de estratégia da empresa que abocanhou o monopólio dos jornais impressos de Santa Catarina que é a de migrar toda a produção de informação apenas para a rede mundial de computadores. Assim, acabam com os três jornais impressos que cobriam praticamente todo o estado. Não haverá mais papel diário, apenas a produção de uma espécie de revista semanal. 

Bom, é importante pensar sobre o papel desses jornais no estado. O Jornal de Santa Catarina, da região de Blumenau, já teve uma linda história, antes de ser comprado pela RBS. Grandes jornalistas se forjaram ali, produzindo reportagens magistrais. Era um jornal regional de muita qualidade e tinha muita influência na formação da opinião pública. Depois, no processo de monopolização da mídia pela RBS, foi comprado pela empresa gaúcha e virou uma pálida lembrança, segurando-se apenas no nome, ainda vivo na memória das gentes. Com alguns anos de “rbscização”, parteurizou, ficou aquela gosma sem vida e sem jornalismo real.

Em Joinville, maior cidade do estado, o jornal A Notícia igualmente teve seus tempos de glória, com jornalismo de qualidade, grandes reportagens, debates culturais, opinião. Jornalão tradicional, gostoso de ler. Comprado pela RBS virou um pastiche. Perdeu sua força narrativa. E mesmo que ainda por lá resistissem bons e bravos repórteres, no geral ficou como o Santa: uma gosma. Pouco produzia de jornalismo, seguindo a lógica de produção de ideologia pura, com raríssimas concessões, muitas vezes cavadas à força pelos jornalistas.

O Diário Catarinense, proposta da RBS para a capital, era, então, o pior deles. Desde que nasceu  trouxe a ideia de um jornalismo “mais informativo”, como se o que fosse praticado aqui no tradicional jornal O Estado, por exemplo, não o fosse. Era, na verdade, um projeto de márquetim, e que foi comprado pela classe dominante catarinense justamente para melhor desinformar a sociedade.

Sendo assim, o fim desses três jornais, que já agonizavam desde algum tempo, sendo praticamente impossível lê-los, não significa a morte do jornalismo no estado. Nada havia ali. E se pontuava alguma gota de jornalismo era só para manter as aparências. Então, o que morre agora não é o jornalismo em si. O que morre são três veículos inúteis, que durante seu tempo de monopólio só produziram exploração dos trabalhadores e, nas suas páginas, apenas ideologia.

Reitero, de novo, a qualidade de grandes repórteres - de texto e de imagem - que sempre fizeram das tripas coração para fazer jornalismo, conseguindo aos trancos e barrancos, oferecer pílulas de conhecimento sobre a realidade catarinense. Uma luta diária contra as pautas tolas. Esses profissionais, contrabandeando jornalismo para dentro dos jornais, deram uma contribuição importante já que os três impressos cobriam o estado inteiro. 

Mas, enquanto projeto de jornal mesmo, a proposta dos periódicos era um lixo só. E, depois que a NSC assumiu, a coisa piorou vertiginosamente. Uma vergonha. 

Agora, dizem os “empresários”, o jornalismo diário vai ser feito apenas nos portais. Ora. Não haverá jornalismo. Eles estão demitindo os jornalistas. Demitiram. Jogaram fora. Porque seres humanos não contam. São números numa planilha do financeiro. Vinte anos de dedicação, fins de semana perdidos, noites sem dormir. Nada disso é levado em conta. Adeus. Passe no financeiro. Vá empreender. Certamente os portais de notícias serão nutridos por pessoas que serão contratadas como “produtoras de conteúdo”, com um salário abaixo do piso de jornalista e uma carga de trabalho imensa. 

Ainda assim, a estratégia da NCS não mata o jornalismo. Porque o jornalismo é um fazer do jornalista, e não do empresário da comunicação. 

Então, minha gente. O que morre não é o jornalismo. Ele segue aí, pronto para ser esgrimido como uma forma de conhecimento e não apenas como informação vazia, ritualística e desconstrutora. 
As empesas apostam na internet porque querem reduzir custos. Não estão preocupadas com formar um público qualificado e discutir os grandes temas do Estado. Não estavam quando tinham o impresso e não estarão nas redes ou na revista gosma que virá. Não é sua intenção ampliar o pensamento crítico. Pelo contrário. Emburrecer e alienar. Esse é o padrão. 

Mas, se há um desejo de alienação das gentes por parte do empresariado comunicacional, há também um desejo nas gentes. E a informação, hoje, é uma necessidade social. Qualquer um sabe disso, mesmo os que creem nas mentiras formuladas todos os dias pelos jornais e televisões. E mais, as pessoas, levadas e interagir com o mundo, querem saber também do que acontece na sua aldeia.
Então, está aberto o campo para a produção de jornalismo mesmo. Eu sinto essa vibração no ar. É chegada a hora de colocarmos o jornalismo nas ruas, em pequenos jornais, panfletos, qualquer coisa de papel que possa ser lido no ônibus, no caminho para casa, no alpendre ao anoitecer. É tempo dos jornalistas de verdade produzirem jornalismo. Sem os três lixos que infestavam a vida dos catarinenses, descortina-se um horizonte. Pode ser difícil, e será. Mas, é hora de começar. 

Quem sabe não acontece de novo, as flores vencendo o canhão. O pequeno jornal, contando histórias, desvelando a realidade, contextualizando os acontecimentos, formando, criando conhecimento? 
Não sei, mas sinto que algo muito lindo pode começar. O jornalismo, outra vez, nas ruas, fazendo o que tem de fazer: formando uma audiência crítica e capaz de compreender o que acontece por trás das cortinas do poder. 

Avante, jornalista, de pé!  Em Blumenau, em Joinville, em Florianópolis e em toda Santa Catarina.



quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O rescaldo das lutas no Equador

Foto: Conaie


O Equador voltou a viver certa normalidade depois das jornadas de luta protagonizadas pelos povos originários, com a participação também da Frente Unitária de Trabalhadores, estudantes e outros movimentos sociais, contra o que chamaram de pacotaço, uma medida do governo que cortava o subsídio à gasolina (que já existe há 40 anos), elevando o preço do galão de 1,85 dólares para 2,39. Além disso, o decreto também atingia direitos já conquistados pelos trabalhadores e implicaria em novas medidas de ajustes com incidência na vida geral. Definia ainda uma redução de salários de até 20% para os trabalhadores contratados temporariamente pelo setor público, reduzia as férias dos trabalhadores públicos de 30 para 15 dias e exigia deles o valor de um dia de salário por mês para o fisco. Por outro lado dava vantagens aos empresários para compra de maquinaria e eliminava impostos da importação de tecnologia. 

O argumento do governo para a assinatura do tal decreto é de que o Equador se encontra numa tremenda crise fiscal, com o acúmulo de déficit de 39 bilhões de dólares desde 2007. Só com o corte dos subsídios, Moreno esperava economizar dois bilhões e 273 mil dólares, e com as demais medidas pretendia chegar a cobrir 57% do total. E, com esse decreto, cumpria ordens do FMI, que prometia novo empréstimo de pouco mais de quatro (04) bilhões de dólares. Ou seja, nem resolveria o problema, e ainda projetava mais dívida e mais ajuste para chegar aos 100% do suposto rombo. Como os movimentos sociais sabem muito bem fazer contas, também souberam o que fazer: levantar os protestos. 

Foram 11 dias de mobilização intensa nos quais os indígenas promoveram cortes de estradas, protestos nas comunidades, declararam estado de exceção e realizaram uma marcha até a capital, Quito, a qual foi tomada por mais de 20 mil originários vindos de diversas partes do país. Nesse dia, conclamado como greve geral, ao se unirem também trabalhadores urbanos e estudantes, a população em luta colocou o presidente Lenín Moreno em fuga, e ele instalou o governo na cidade de Guayaquil, bem como desatou uma violenta repressão contra os manifestantes. O saldo da jornada é de sete vidas perdidas, centenas de feridos e mais de 1.500 presos. 

Mas, como já é tradição na luta indígena equatoriana, a repressão brutal não esmoreceu a luta e a saída do presidente foi convocar uma mesa de diálogo, finalmente aceita pelos movimentos, ainda que com o firme propósito de só avançar na conversa se houvesse a anulação do decreto 883. Do ponto de vista dos povos originários, a intenção não era derrubar o governo, tal como anunciara Lenín, inclusive acusando a Venezuela de estar ajudando nos conflitos, o que é uma total bobagem, pois a Venezuela está ela mesma vivendo um ataque sistemático por parte do império estadunidense. Os conflitos e o levante originário só aconteceram porque o decreto imposto pelo FMI e aceito por Lenín Moreno colocaria o Equador num atoleiro bem maior do que já está. 

A batalha com as comunidades indígenas vem de longe. Mesmo durante o governo de Rafael Correa, que foi apoiado pelo movimento, os conflitos foram intensos, pois os originários não aceitam a lógica extrativista predatória implementada pelo governo. Quando Moreno se colocou como candidato fez muitas promessas às comunidades e chegou a chamar lideranças importantes do movimento indígena para seus ministérios. Só que apesar da aparente cooptação, a relação dos povos originários com o poder do estado sempre esteve relacionada com a forma como o estado responde às suas demandas. 

Já houve o caso de esse mesmo movimento indígena ter colocado um presidente para correr, definitivamente, como aconteceu no ano de 2005 com a derrubada de Lúcio Gutiérrez, dirigente de direita, de ascendência indígena, que também defraudou o movimento, não cumprindo com os acordos e aprofundando medidas de corte neoliberal. Naquele ano, com mais de 50 mil pessoas (com protagonismo indígena) ocupando a capital, Quito, a população logrou garantir a renúncia de Gutiérrez e tão logo ela foi anunciada, o “paro” foi levantado e os comunheiros retornaram para suas vidas, deixando suas demandas com os novos dirigentes. Até então nunca fora cogitado tomar o palácio e instituir um governo indígena.

Durante o governo de Rafael Correa as relações estiveram bem por algum tempo e logo que os conflitos começaram principalmente por conta da defesa da água, contaminadas pela mineração, o próprio governo começou a atacar movimentos, em especial os reunidos na CONAIE (Confederação das Nacionalidades Indígenas no Equador), acusando-os de estarem aliados com a direita e com a proposta de retorno de Gutiérrez. Outra bobagem imensa. Os dirigentes indígenas são claros: não estão colados a esses conceitos de direita e esquerda. Querem respaldo para suas demandas, proteção ao território, à água, condições de existirem dentro dos seus supostos culturais, econômicos e políticos. Isso não significa que não compreendam estar mergulhados dentro do sistema capitalista, no qual esses conceitos de direita e esquerda tem mais sentido. Ocorre que trabalham numa outra sincronia. Isso também não significa romantizar o movimento indígena como um espaço de pureza, até porque existem algumas nacionalidades muito bem integradas no sistema capitalista de produção e bastante interessadas em que tudo fique como está. O que se tem de compreender é que são as condições materiais da vida da maioria que determinam os levantes. 

Agora, com a instalação da mesa e o fechamento de mais um acordo, de novo surgem as críticas ao movimento, alegando de que está se aliando a Moreno outra vez. E de novo, os indígenas observam essas acusações com sua atávica paciência.  Sabem que foi a força originária que derrotou esse decreto. Conhecem sua capacidade de mobilização e apresentarão suas propostas. Eles querem que o tal déficit anunciado pelo governo seja atacado não com mais empréstimos que gerarão mais déficits e apresentam ideias simples como a eliminação do pagamento aos ex-presidentes, a recuperação do que tem sido roubado pela corrupção, a suspensão do perdão de dívidas do empresariado, a renegociação dos contratos, a focalização dos subsídios. 

Por outro lado, como sempre acontece depois de manifestações tão intensas de força por parte das organizações populares, o governo joga diferentemente com cada mão. Com uma oferece a mesa e a possibilidade de os indígenas e trabalhadores urbanos participarem da formulação de propostas, e com a outra vai atuando na lógica do terrorismo de estado, atacando lideranças isoladamente, como a prefeita de Pichincha, por exemplo, que está com prisão preventiva por ter apoiado os protestos. E nada garante que nos próximos dias não apareçam notícias de assassinatos aqui e ali, nas comunidades que estiveram em levante. Todos sabem disso, se protegem como dá e avançam. 

É fato de que se há incompreensão por parte dos trabalhadores urbanos não-índios sobre a luta indígena, também parece necessário aos movimentos indígenas avançarem na discussão sobre até onde podem ir sozinhos. Na luta contra o capital, que é global e internacional, as batalhas precisariam ser travadas em conjunto, por todos os explorados, índios e não-índios, tendo consciência de que o inimigo é justamente esse sistema de produção que afeta a existência material de todos os que não estão na bolha do 1%. Ao capitalismo não interessa nem a natureza, nem o humano. Tudo é visto como “recurso” para geração de lucro. Se um humano cai, outro é reposto. Se um lugar se esgota, partem para outro. E assim vai o capital, feito uma nuvem de gafanhotos, arrasando tudo o que toca. E essa é essa nuvem que precisa ser destruída. Sem essa vitória geral, as vitórias particulares serão só resistência e o massacre continuará. O bem viver não tem como existir no capitalismo.