sexta-feira, 27 de julho de 2018

O jornalismo como munição para a barbárie


Um professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Áureo Moraes, foi chamado pela Polícia Federal para dar explicações sobre cartazes de protestos que populares levaram para uma atividade de homenagem ao reitor Luiz Carlos Cancellier, morto por conta do abuso de poder que o humilhou e violentou. Os cartazes mostravam nomes e caras daqueles que os manifestantes consideravam os verdugos do reitor morto. Um protesto veemente de um grupo de pessoas ainda impactadas pela dor da tragédia que foi o suicídio de Cancellier.

Áureo era chefe de gabinete do reitor Cancellier e foi um dos organizadores da homenagem, que celebrava o aniversário da UFSC e ao mesmo tempo lembrava o professor morto. Durante o ato que se desenvolveu na reitoria ele foi entrevistado. E na entrevista viam-se atrás dele os cartazes com as caras e nomes dos envolvidos no caso. 

A Polícia Federal, tendo visto a entrevista, ou a partir da denúncia de alguém, resolveu intimar o professor para que desse explicações, acusando-o de “atentado contra a honra” da delegada da PF que conduziu o caso. Isso porque o nome dela aparecia no cartaz que estava às suas costas. 

Tirando de cena o fato de que já é uma completa arbitrariedade convocar uma pessoa que deu entrevista com um cartaz atrás de si, culpabilizando-a pelo conteúdo do cartaz, o que me chama a atenção é o que diz respeito a função do jornalismo. 

O papel do jornalismo é o de informar e analisar os fatos cotidianos, atuando assim como uma forma de conhecimento, garantindo aos leitores/espectadores/ouvintes a possibilidade de saberem o que acontece e também de estabelecerem as ligações com a realidade na sua totalidade. Também é seu papel denunciar os desmandos, a barbárie, o que os vilões querem ver escondido.

O que a Polícia Federal reinaugura é a possibilidade de o jornalismo vir a ser o seu contrário: uma arma contra as pessoas que atuam na luta por uma vida melhor, contra os que assomam em repúdio aos desmandos, a barbárie, o horror. Filmar uma passeata pode ser uma arma para identificar “terroristas”? Filmar um ato de homenagem e protesto pode ser uma arma contra os manifestantes que choram um amigo caído? Filmar a resistência numa comunidade que teve um de seus filhos assassinados vira uma arma contra as pessoas que pranteiam seus mortos? Que assombrosa missão é essa que estão querendo imputar ao trabalho do jornalista? 

Eu que sou meio centáurica, sempre com uma câmara na mão, indesgrudável, já começo a repensar as coisas. Nesses dias feicibuquianos, em que a imagem é protagonista, estaremos todos armadilhados no processo de deduragem e delação? Um registro qualquer pode servir de “prova” para que alguém seja intimado, preso, condenado. No país das “convicções” já não há mais limites, nem mesmo dentro das regras burguesas? O direito de manifestação, consubstanciado na nossa Constituição, agora está nesse patamar? Só pode se for sem voz, sem cartaz, sem nada? 

Os tempos são sombrios, mas não devem servir para lamentações. Pelo contrário. Há que discutir novas formas de atuar. 

É hora de fazer com que o sindicalismo combativo ressurja das cinzas. Afinal, a lição sabemos de cor: só no coletivo, juntos, em comunhão, que podemos avançar. 




quinta-feira, 26 de julho de 2018

A injustiça, minha mãe, Juliane e ódio são

Uma impotência tão grande

Hoje, durante a reunião com a trabalhadora Juliane de Oliveira, na sala da diretora da Prodegesp/UFSC, onde ela foi chamada para assinar sua exoneração, depois de um processo totalmente irregular, só tive olhos para duas pessoas: seus filhos. O maior, talvez de uns treze anos, ficou atrás da mãe, encostado à parede, com olhos de espanto. A menina, pequena, ficou no colo, e, talvez, sentindo o bater acelerado do coração de Juliane, não parava de chamar por ela: mamãe, mamãe, como se ali, naquele nome, encerrasse todo o medo que parecia sentir. Uma cena de cortar o coração.

Num átimo, aquela imagem de impotência da pequena família acossada pela injustiça, me remeteu a um passado bem distante, na velha São Borja, quando minha mãe foi até a casa de um falso amigo de meu pai que tinha nos tirado tudo. Naqueles dias, o homem cobrava umas promissórias que meu pai, inadvertidamente, tinha assinado para ele, em confiança, sem saber que na verdade estava entregando a casa e tudo o que havia dentro.

Meu pai estava longe, em Minas, e o homem chegou à nossa casa com os oficiais de justiça para tirar os móveis e tudo o que lá havia. Foi um terror ver cada pequena coisa carregada de história sair para nunca mais. Deu-nos, então, 30 dias para abandonarmos a casa que tomara para si, basicamente roubando. Eram minha mãe e os três filhos, ela, sozinha, contra a raposa. Quando já estourava o prazo para deixarmos a casa ela foi até o apartamento dele pedir mais tempo. Não tínhamos para onde ir e já não tínhamos sequer o que comer. Todas as coisas tinham sido levadas e nós sobrevivêramos vendendo nossas roupas. Tínhamos então cada um apenas duas mudas de roupa. Dos móveis só sobrara a máquina de costura da mãe, que uma vizinha escondera. Dormíamos no chão nu.

Aquela foi uma noite violenta e inesquecível. Minha mãe implorando ao homem que nos roubara. Não havia sentido. Eu, que deveria ter uns 13 anos, e meu irmão, com nove, estávamos ao seu lado, tentando dar a força que necessitava, mas tão assustados quanto ela. A família do homem nos rodeara, e as crianças, que antes eram nossas amigas e brincavam conosco, agora nos humilhavam dizendo: “acaba com eles, pai, acaba com eles”. Foi talvez a coisa mais dolorosa que nos aconteceu, e tanto, que durante anos eu planejei vingança.

O fato é que o homem não teve misericórdia e nós tivemos de abandonar nossa casa, construída anos a fio, com tanto sacrifício. Saímos dali com a roupa do corpo e a máquina de costura no rumo do desconhecido. Meu avô tinha acabado de morrer. Era um momento terrível. E nós fomos embora com num pau-de-arara ao contrário, para Minas Gerais. Nunca esqueci. O ônibus saindo de São Borja e as lágrimas caindo diante da injustiça e do medo. E eu jurando vingança ao melhor estilo de novela mexicana.

Minha mãe era uma leoa. Mesmo longe ela não se abateu e continuou lutando para provar que a casa era nossa e que o homem tinha enganado meu pai. Ela moveu céus e terra, nunca esmoreceu e anos depois, conseguiu a casa de volta. Já tínhamos comido o pão que o diabo amassou e ela desenvolvera uma tuberculose, já tinha vindo a fome, o abandono, tudo de ruim. Mas, ela, enfim, venceu. No dia em que recebeu o dinheiro da casa, saiu conosco, os três filhos, e disse: comprem o que quiserem. Voltamos para casa com um aparelho de som último tipo e os discos da Maria Bethânia e do Zé Ramalho, além de um jogo de sofá. Foi apoteótico.

Mas, apesar da vitória com relação à casa, aquela noite de profundo medo e humilhação no apartamento do bacana nunca saiu de mim. Assomava, vez em quando, nas noites cálidas de Minas e a vingança chamava. Armei planos mirabolantes e voltei para São Borja. Meu plano era matá-lo e me preparei.

Passados tantos anos cheguei a São Borja pronta para cumprir meu destino e quis a providência que no primeiro dia eu já soubesse sobre ele. Algumas desgraças tinham se abatido sobre a família e eu já comecei a fraquejar. Mas, o que me derrubou mesmo foi encontrar a garota, que era minha amiga, e que gritara naquela noite: “acaba com ela, pai”, num supermercado. Ela era uma sombra, um escombro. Saí dali, bati o pó das sandálias e nunca mais voltei. Não necessitava vingança. A vida havia se encarregado.

Ainda assim, nos meus sonhos, em noites frias de inverno, quando bate o vento norte, eu acordo sobressaltada ouvindo aquelas vozes, vendo aquele esgar de ódio, e sentindo outra vez o desejo da vingança. Aquilo nunca saiu de mim. Minha mãe, ali, tão frágil, diante da tragédia.

E foi essa mesma fragilidade que vi naquela sala, na Prodegesp. Juliane, acossada diante da injustiça, com seus verdugos marcando o ponto onde deveria assinar sua exoneração com um sorriso na boca. E os filhos com aquele olhar de medo, de não-sei-quê. Como podem? Como podem infligir tamanha dor? Foi assim que me veio de novo esse ódio, esse desejo de vingança, como naquela longínqua noite em São Borja. Porque sei que esse será um momento indelével para aquelas crianças. E isso é imperdoável.

O bom é que ao contrário da solidão da minha mãe, Juliane estava amparada por vários colegas, trabalhadores da UFSC, que estão lutando lado a lado com ela. E quando saiu dali, saiu em comunhão. Isso pode mudar tudo. E talvez a marca daquele momento se esboroe. Não sei...

O que sei é que, tal qual minha mãe, Juliane é leoa, e vai vencer.

Já eu, não sei, estou aqui, espumado...