sexta-feira, 13 de abril de 2018

Jornalismo XXX



Por um descuido de alguém, foi divulgada no sítio de notícias de uma grande rede local, a NSC (Nossa Santa Catarina), ex-RBS, a notícia pré-redigida para informar sobre as eleições que definiriam o novo reitor da UFSC. O texto clássico da notícia normótica, sem contexto ou impressão, foi terminado deixando alguns espaços com XXX que equivaleriam às informações ainda não obtidas pelo redator e que deveriam ser completadas por quem fosse subir a notícia no sítio. Porcentagem, número de votos, nome do vencedor, etc... Nada muito escabroso, visto que obviamente o repórter não poderia ficar até às dez horas da noite esperando para terminar a notícia. Ainda assim virou piada nas redes.

O descuido do editor, ou de quem quer que seja, circulou pelos meios internéticos e entre os jornalistas, que têm se manifestado, entre risos de deboche e preocupação com o jornalismo. Mas, ao final, o que há de escabroso nisso? Nada. Essa é uma prática comum no jornalismo conhecido como “manual de geladeira”, que é esse do lead clássico, sem maiores informações além das seis famosas perguntas: o que, quem, como, quando, por que, onde.

Por que o espanto se é o que se aprende na faculdade? Respondendo a essas questões temos tudo o que pode interessar ao leitor, dizem os “mestres”. É o jornalismo normótico, hegemônico e, ao contrário do que se alardeia, totalmente parcial. Aquele que é praticado por quem acredita ser o leitor um tolo, um Homer Simpson, um bobão. Por isso não vejo motivo de riso na postagem da NSC. Vejo motivo de debate, isso sim. Pois esse é o jornalismo vigente e, inclusive, segundo se sabe, um texto assim já pode até ser produzido por um programa de computador. Para que precisam de nós, jornalistas, então? Esse é o tema.

Teóricos do jornalismo como Armand Mattelard já havia discutido esse famoso lead (os das seis perguntas) insistindo em incluir uma sétima pergunta nele, aquela que faria toda a diferença, porque mostraria que ali havia mesmo um repórter, alguém vendo, sentindo e analisando. A pergunta chave seria: e daí? Com esse questionamento o repórter teria de ter conhecimento sobre as causas e apontar os cenários de consequências. Fazendo isso, estaria produzindo conhecimento, como também apontou Adelmo Genro Filho. Trazendo na singularidade de determinado fato as determinações que dariam conta da totalidade da atmosfera na qual o fato foi gerado. Ah, o jornalismo, essa coisa bela!

A imagem da notícia XXX, divulgada pela NSC, é a imagem do jornalismo atual. Esse é o drama. O jornalismo que já tem pronta todas as questões, faltando apenas completar os pontinhos. No geral, esse jornalismo, dito “imparcial”, é esgrimido contra os trabalhadores, contra a esquerda, contra a beleza, contra o conhecimento, contra a criticidade. Não há vida nele, não há análise, não há olhos, não há coração, não há nada além da ideologia de um estado de coisas. Aceitar esse jornalismo não é ser imparcial e objetivo, ao contrário. É ser parcial ao extremo, contra a possibilidade de um leitor crítico, de um leitor que se aproprie do conhecimento e defina suas certezas a partir das informações contextualizadas que recebe.

O jornalismo XXX é igual ao direito XXX, como se viu no documento assinado por Sérgio Moro autorizando a prisão de Lula, poucos minutos depois do julgamento. Ou as notícias sobre a judicialização do Sintrasem ( o sindicato dos municipários que está sendo investigado pelos vereadores), em Florianópolis. Tudo já está pronto, não apenas na forma, mas também no conteúdo. O XXX é o nome do sindicato, do morto, do sindicalista, do militante social. A notícia já está redigida, sempre dentro daquilo que interessa ao patrão ou ao sistema.

Mas, isso não significa que temos de apontar o dedo “culpando” o jornalista. Ele ou ela, em si, estão premidos pela dura realidade de ter de vender sua força de trabalho. No geral, são obrigados a fazer isso até para sobreviver num espaço de multifunção e de superexploração do trabalho. Claro, podemos discutir que esse jornalista têm opções. Ele pode resistir, pode lutar, pode denunciar, pode se recusar, pode pedir demissão. Tudo isso é fato. Mas, os tempos são difíceis, há filhos para criar, garantir a comida para por na mesa.

Todas essas variáveis devem ser pensadas. Mas, nenhuma delas impede o pensamento crítico sobre esse tipo de jornalismo. Ainda que se tenha de praticá-lo, deve-se pensar sobre isso e sobre formas de transcender. Há que matar esse jornalismo XXX, mas numa morte que não seja fruto de um assassinato individual, tem de ser uma derrubada coletiva e classista.

Sim, porque o jornalista também tem classe. Existem aqueles que nascem na classe dominante e a partir dessa sua posição praticam o jornalismo, buscando sustentar os privilégios de sua classe. Existem aqueles que vêm das camadas populares, mas assumem a posição da classe dominante, achando que por estarem trabalhando em uma grande meio ou ganhando um salário alto, já pertencem ao “clubinho”. Não pertencem. Bastam que envelheçam ou percam a mão e estão jogados fora, sem dó nem piedade. Existem os que nascem na classe dominante, mas na caminhada vão descobrindo os caminhos da injustiça, da miséria, da destruição que o sistema impõe e mudam sua postura, defendendo os interesses dos trabalhadores e dos oprimidos. E há uma grande parte, quiçá a maioria, que é filha da classe trabalhadora, que pode até ser da classe média, mas vai ter de vender sua força de trabalho por todo o sempre. Nunca será dona de jornal. Nunca será capitalista.

Então é esse debate que precisa ser travado na vida e na faculdade. Saber que vivemos numa sociedade de classe e que uma é dominante, impondo assim suas ideias e suas práticas. No jornal a luta de classes está explícita. No jornal, na TV, no rádio, na internet. E esse é o campo de batalha do jornalista. Há que se posicionar, saber quem se é. O jornalismo XXX é o que representa justamente a classe dominante, feito para alienar, desinformar, estabelecer um consenso sobre a realidade, cuja verdade não aparece no jornal. A realidade do jorna, da notícia XXX é inventada, conforme os interesses de quem domina.

Então, companheirada. A notícia XXX não estava ali por acaso. Ela é o cotidiano. Há que acabar com ela. E essa é uma luta que extrapola o próprio espaço do jornalismo. Ela avança para o mundo da política, a grande política, na disputa por um modo de produção, um modo de organizar a vida.  

Um novo jornalismo virá, fatalmente, quando conquistarmos e construirmos a nova sociedade. À luta, pois!



quinta-feira, 12 de abril de 2018

O menino e as pedras




Vai longe o tempo, mas a memória lembra. Ele era menino ainda, uns sete anos, e vivia em Rio Turvo, Minas Gerais, cidade onde nasceu. Pequeninho e mirrado era alvo sistemático de Zé Bodão, um garoto da mesma idade, mas grandote, que dava umas três vezes o seu tamanho. Zé Bodão batia em todo mundo, era o valentão da escola. E não havia jogo de bolita ou de semente de cinamomo que ele não estragasse. Chegava, pegava as bolinhas e ainda metia o cucuruto em todo mundo.

Danilo era pequeno, mas valente. E fervia de raiva pela impotência de ver, todos os dias, o valentão bater nele e nos seus amigos. Ninguém podia com Zé Bodão. O gurizinho então decidiu dar ouvidos aos conselhos da mãe, que desde sempre vaticinara: “Virem-se na vida, deem jeito, não choraminguem”.  

Ele avaliou todas as possibilidades. Na mão não ganharia, o cara era grande demais. E mesmo que os amigos se juntassem talvez o Zé Bodão ainda vencesse todos eles. O caso não era de força. Tinha de ser de esperteza. Foi aí que decidiu ser um exímio atirador de pedras.

Os dias se passaram e, na escola, a gurizada seguia apanhando e tendo as bolinhas de gude roubadas. Mas, no silêncio dos entardeceres, Danilo treinava pontaria com as pedras. Dias, meses se passaram. Então, ele viu que estava pronto. Seus dedinhos pequenos eram bazucas explosivas e as pedras chegavam ao alvo, certeiras. Chegara a hora.

Zé Bodão tinha a tarefa de, depois da escola, levar a tropa do pai para o pasto. Ia sozinho. Danilo sabia. Então, subiu num pequeno elevado que dava para o descampado e posicionou-se. Os bolsos cheios de pedra. Num segundo elas voavam na direção do Bodão. Bingo. Ele tomara uma saraivada.

E assim foram os dias. Os mísseis certeiros causando danos. Bodão descobriu quem era o atirador. Mas, no colégio, quando Danilo chegava, com os bolsos cheios de pedra, ele retraia. O pequenininho fizera o que mãe mandara: vire-se! Pois se virou. E desde então ninguém mais mexeu com ele na escola. Era o guri das pedras, e elas machucavam.

Foi esse mesmo guri que, depois, já moço, se internou nas matas de Goiás, na Guerrilha do Araguaia. Não tinha como ser diferente. Ele aprendera que quando a força é bruta, há que enfrentá-la, na coragem.

Danilo Carneiro, um mestre. Todos os dias dando lições aqui no IELA.



terça-feira, 10 de abril de 2018

Florianópolis e os oportunistas

Hospital Florianópolis sabe o terror que são as OS


O atual prefeito de Florianópolis encaminhou na última sexta-feira para a Câmara de Vereadores um projeto que estabelece a criação de organizações sociais para gestão de espaços públicos. Na linha de ataque para a privatização estão a Saúde, Educação, Assistência Social e Obras. É a cidade cada vez mais na mão da rapinagem. Quem conhece a experiência do Hospital Florianópolis, há anos nas mãos das ditas organizações sociais, sabe muito bem o que pode vir por aí. Menos serviço, menos qualidade e mais sofrimento para a população que fica entregue à lógica do lucro. 

A capital catarinense tem uma característica da qual não consegue se livrar: é uma cidade conservadora. E isso acarreta diversos problemas, pois, no campo da política, ser conservador é estar a serviço do status quo, o que, em última instância significa estar sempre de braços dados com as propostas do capital. E o que quer o capital? Lucro para uns poucos. Com isso, a maioria das gentes padece. Projetos mirabolantes surgem travestidos de “progresso para todos”, mas, ao final, o que se consolida é o desastre ambiental, a impossibilidade da vida, e o drama para a maioria dos trabalhadores.

Ao longo da história política do município poucos foram os respiros progressistas. No passado recente podemos lembrar a eleição de Sérgio Grando para prefeito, um momento fugaz, uma brisa, mas ainda assim capaz de deixar marcas profundas na organização popular, determinando um processo de resistência que ainda perdura. Experiências como o orçamento participativo, a inversão de prioridades nos investimentos e a então revolucionária ação de criação das linhas de ônibus nos morros da cidade uniram as comunidades e mostraram que as coisas podem ser diferentes.

Ainda assim Grando não fez sucessor. Naqueles dias, era a conservadora Angela Amin quem pedia passagem, prometendo loas e a cidade votou nela, embalada por um xenofobismo odioso contra gaúchos e paulistas, além do velho ódio ao PT. Seu opositor era Afrânio Boppré, então, do PT, e que tinha sido vice do Grando. A cidade disse não à Frente Popular, e como resultado daquela gestão vencedora (Angela) se fortaleceu a lógica do paternalismo e amargamos ainda hoje o inominável transporte “desintegrado”, só para lembrar algo com o qual ainda nos debatemos. 

Passadas duas gestões da Angela, veio o Dario Berger, também de triste lembrança. O processo de especulação das terras na cidade foi às alturas e a mobilização popular no longo processo do Plano Diretor foi fraudada. Dois mandatos se passaram e as alterações de zoneamento mudaram a cara da cidade, tudo feito para garantir os interesses dos empresários imobiliários. Um desastre.

Ainda assim, a população decidiu eleger um jovem político, Cesar Souza Filho, rebento de uma velha raposa da direita tradicional. Ou seja, nada de novo. Era certo de que o processo de entrega da cidade para a rapinagem continuaria. E assim foi. Longas e violentas lutas foram travadas por conta do Plano Diretor. E mais uma vez a população organizada foi derrotada pela força do dinheiro. Um outro plano, desconhecido das gentes, foi votado ao final de uma ano, no apagar da luzes, com direito a polícia e sangue. Mais do mesmo. 

Então veio Gean Loureiro, outro jovem político, com juventude apenas na idade, pois o projeto de cidade defendido por ele sempre esteve atrelado ao mais profundo conservadorismo – velho, portanto - de manutenção da lógica paternal, mesclado com a “vitalidade” do empreendedorismo empresarial. 

Agora estamos com mais essa batata quente nas mãos. A privatização, na prática, dos serviços públicos. As tais organizações sociais são entidades de direito privado que assumem a administração das instituições públicas. A requentada parceria público/privada, que de parceria com o público não tem nada. A parceria real é com a grana. As organizações recebem verba pública pra administrar o público, mas podem auferir lucros. Hum... Palavra mágica.

Então, a saúde, a educação e a assistência social viram mercadoria. O prefeito investe na propaganda: ”vamos poder contratar, vai aumentar o atendimento, vamos melhor as coisas”. Não é verdade. As contratações serão precárias, o atendimento não será melhorado e o serviço cairá de qualidade. Essa é a verdade.

Lá vêm os arautos da desgraça, dirão alguns. Sempre prevendo o pior. Não. Não é previsão. É análise sobre a realidade. Vivenciamos junto aos trabalhadores da saúde o horror da administração por organização social do Hospital Florianópolis. Puxem pela memória. Comida podre, roupas mal lavadas, precaridade no atendimento, fechamentos. Batalhas e mais batalhas para garantir o hospital funcionando. Batalhas dos trabalhadores, bem dito. Porque para o governo tudo estava bem.

Agora Gean quer reproduzir essa realidade de terror no nosso município. E o que podemos esperar da Câmara de Vereadores? Muito pouco. Já sabemos que tirando uns três ou quatro, os demais estão lá para defender os interesses que não são os da maioria. Não são os da gente. São os interesses do capital, das empresas, do lucro. 

Por isso não dá para vacilar. Os lutadores de sempre estão alertas. Mas isso não é suficiente. É que preciso que as pessoas se inteirem do que isso significa. Que discutam o tema, que ultrapassem as propagandas enganosas. A experiência da terceirização de serviços no campo público já fracassou em todo o país. Existem pesquisas sérias que comprovam isso. Como então vamos permitir que entreguem os serviços municipais para a iniciativa privada? Isso é a morte para nós que somos os moradores comuns. Os que precisam do serviço público, os que não têm dinheiro para pagar serviços privados de saúde ou de educação.

Na próxima quarta-feira, os trabalhadores da prefeitura realizam uma assembleia para discutir o tema, afinal eles sabem muito bem o que significa para eles e para os usuários essa intromissão privada nos serviços públicos. Acaba sendo ruim para todo mundo. Só fica bom para os empresários de ONGs, no geral os mesmos de sempre. 

Vamos então fazer nossa parte. Falar com os vereadores nos quais votamos. Exigir que esse projeto não seja aprovado. O prefeito de uma cidade é eleito para administrar a cidade. Não tem cabimento entregar para empresários a administração dos serviços públicos. Isso é irresponsabilidade e incompetência. Não podemos compactuar com isso. 

Alerta povo. Isso é ruim. Vamos lutar.