quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

A fortaleza vem do coletivo


Esse é um tempo de solidão, de desespero, de nojo. E isso não é um problema pessoal, que atinge um ou outro. É um drama social. Li outro dia o belo trabalho do nosso companheiro, agora jornalista, Pedro Cruz, seu texto de final do curso de Jornalismo. Nele, Pedro narra a dor psicológica de alguns estudantes nos seus dramas aparentemente singulares. Cada história vai descortinando sofrimentos psicológicos, mentais e espirituais que não são exclusivos da vida pessoal. Eles se forjam no embate com o público, com a vida na sua concretude, nas relações desconstruídas, sem tecimento, provocadas por essa maneira absurda de organizar a vida que nos é imposta pelo capitalismo.

Daí o sofrimento de uma juventude de classe baixa ou média sem horizontes, sem objetivos de longo prazo, sem ilusões, sem propostas. A vida se lhes aparece como uma sucessão de dias que são cumpridos automaticamente, no torvelinho das redes sociais, dos relacionamentos sem estofo, do emprego precário ou da tragédia diária vivida nas comunidades empobrecidas, de miséria e morte.

Esse é um tempo de solidão, no qual as pessoas deixam de falar umas com as outras: mandam mensagens por uatizape, mensagens que não permitem interação. Não há afeto, abraços, beijinhos, afagos. Não há horas de completo ócio, com as pernas pra cima, pensando na revolução. As pessoas esqueceram que a revolução é possível. Estão domesticadas num sistema que lhes mente o tempo todo sobre felicidades vãs, inalcançáveis.

E a solidão vai ficando tão grande que as pessoas já não acreditam mais na força da amizade, do amor. Não se permitem se deixar acolher, abraçar, ficar. Pensam que seus dramas são pessoais e que só a elas cabe resolver. Esse círculo louco vai fazendo com que o que sofre fique sozinho, e os demais não se importem com a dor do outro. O circuito da solidão existencial. E é aí que aparecem as igrejas oportunistas, puxando esses tristes seres do vazio, dando-lhes comunidade, pertencimento, mas ao mesmo tempo fortalecendo ainda mais o cerco do capital, na medida em que oferecem a promessa dos bens materiais como isca. Isso não é por acaso.

Ontem eu perdi um amigo. Ele se recusou a responder as mensagens, os telefonemas, os correios. Ele estava longe. Ele estava só. Acuado na sua dor. Ele foi embora pensando que os problemas dele eram só dele. Não eram. Eram meus, eram nossos, eram de todos os brasileiros fodidos, de todos os seres humanos submetidos à moenda do sistema capitalista que tudo destrói.

É preciso que nos recusemos a isso. O sofrimento de um dos nossos companheiros é o sofrimento de todos. E só tem um jeito de mudar esse mundo sombrio: transformá-lo. É tempo de revolucionar, mudar, revolver, virar patas arriba. O mundo precisa ser solidário, amoroso, cooperativo. Só que isso não vai acontecer no privado, no particular, no nosso movimento particularista, ou apenas no nosso grupo de amigos. Precisa ser geral, para a classe trabalhadora, para os oprimidos. E para isso, só a revolução mesmo. A revolução brasileira. A mudança total das coisas. Um mundo no qual as pessoas possam viver sem medo, amparadas socialmente, criando belezas. O mundo do comum.

Não quero prantear corpos vencidos pelo sofrimento. Quero a alegria compartilhada. E te convido. Quando esse sistema for destruído, as coisas vão mudar. Para todas as pessoas. Temos que decidir por isso. Basta!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A informação e o direito à cidade



Conversa sobre informação e o direito à cidade realizada no I Congresso de Direito à Cidade realizado nos dias 9 e 10 de dezembro de 2019.

1 – A mídia comercial, tal qual a justiça, é um instrumento da classe dominante e se ampara em duas pedagogias fundamentais: a Pedagogia da Sedução e Pedagogia do Medo. Uma olhada no seu conteúdo e pode-se perceber que os conteúdos estão voltados ora para seduzir, ora para amedrontar.  Na sedução: o capitalismo é bom, compre isso, compre aquilo, seja bonito fumando tal cigarro, seja feliz comendo tal margarina, veja como os empresários da novela são bonzinhos. É o que o pensador venezuelano Ludovico Silva chamou de mais-valia ideológica. O trabalhador, ao acessar a mídia, não se descola do sistema que lhe rouba vida. Assim que da mídia comercial não podemos esperar nada, democratiza-la, dentro do sistema capitalista, não significará absolutamente nada para os trabalhadores, para a maioria da população. O sistema capitalista, para se consolidar e seguir poderoso, precisa desse braço armado, sedutor, por onde divulga suas ideias, expressa a cultura do sistema, trabalha a pedagogia da sedução e define os inimigos que precisam ser combatidos. Ele pode conceder uma coisinha aqui, outra ali, para se dizer “democrático”, mas na essência continuará mentindo e seduzindo.

2  - A mídia comercial não mostra nem nunca mostrará a cidade real, essa cidade dos desvalidos, dos condenados, dos sem casa, dos sem esgoto, dos sem lazer. Não tem interesse nisso, porque ao apresentar a realidade expõe as contradições do sistema. Assim, quando a cidade aparece na mídia é sempre de maneira ritual e fragmentada. Matéria sobre buracos de rua, sobre problemas estruturais são dadas como se fossem pequenos furúnculos num corpo sadio. Aí os repórteres mostram a denúncia e depois mostram o poder público dizendo que vai arrumar. Pronto. Problema resolvido.

3 – Já com relação aos que enfrentam o sistema, a proposta da mídia comercial é aprofundar a  pedagogia do medo. Tudo é feito para amedrontar as pessoas e para criar os estereótipos do que vem a ser o inimigo da ordem e do progresso. Programas como os do Datena, que tem sua filial em todos os estados do país, são usinas do medo. Mortes, assassinatos, coisas horríveis sendo praticadas por quem? Por gente pobre, preta, desempregada, favelada. Raramente um crime de gente rica, branca, bem alimentada. E quando aparece soa como algo assim, quase inusitado. Parece que nada de ruim acontece nos palácios. A parada ruim é só nas comunidades empobrecidas. Por isso que massacres como os de Paraisópolis são vistos como normal, já que aquele povo lá, nos bailes funk, é pobre, preto e favelado, logo, para a maioria alfabetizada pelo medo é “tudo bandido”.

4 - Quando as gentes se levantam em luta, a mídia também mostra. Mas essas lutas igualmente aparecem como uma parte doente de um corpo saudável, reforçando o preconceito instalado pela pedagogia do medo. São pessoas que incomodam. E sobre elas já está manufaturado o conceitos necessários para fazer com que a sociedade encare esses movimentos como coisas ruins. São os baderneiros, os contra tudo, os eco chatos, os vagabundos que querem mordomia sem trabalhar, que querem casa sem pagar por ela. Ou seja, tudo de ruim. Gente ruim. Isso não é por acaso. É preciso fortalecer essa ideia para que a sociedade os veja como seus inimigos também. Então, a pedagogia do medo já fez o seu trabalho.

5  - A mídia mostra como inimigos de todos aqueles que são apenas os inimigos do capital, da classe dominante, ou seja, uma pequena parcela da humanidade que domina o mundo e que produz tanta dor, destruição e desgraça. É um trabalho eficaz e a conjuntura nos mostra isso. De novo estamos enfrentando o ódio de nossos iguais. Esse ódio foi apaziguado por um tempo, durante a era do “politicamente correto”, mas ele não desapareceu. Permaneceu vivo. Porque a mídia continuou seu trabalho de sedução/medo. É importante frisar que o ódio de classe é bom e necessário. Só que o capital faz com que o ódio fique entre a classe trabalhadora, sem envolver a classe dominante. Odeia-se o índio e não o sistema que rouba suas terras (os ricos, os latifundiários, os grileiros). Odeia-se o negro e não o sistema escravocrata que o aprisionou, odeia-se o pobre e não o sistema que o produz. Odeia-se o gay, o trans, o anarquista, o sem teto, o sem terra, o comunista, porque eles desestabilizam a “paz”. Uma paz que não existe, mas que as pessoas acreditam que exista, porque bombardeadas com toda a maquinaria ideológica do capital que também se reproduz na família, na escola, na igreja e na mídia. 

6 – O dramático de tudo isso é que a luta dos empobrecidos pelo direito a cidade sempre se volta contra eles. Quando ocupam um vazio urbano, por exemplo, na batalha por moradia, estão abrindo caminhos para que se expresse a renda da terra, já muito bem explicada por Marx. As famílias ocupam, sofrem a ação da polícia, e quando finalmente conquistam a terra, o posto de saúde, os caminhos, acabam por valorizar os espaços. E os endinheirados olham para o que era um vazio sem estrutura e querem tomar para si. Porque já está ocupado, já conquistou a estrutura, valorizou. Então, os empobrecidos voltam a sofrer a pressão do capital querendo tomar suas terras. Vivemos isso todos os dias na nossa cidade, nas praias e nos morros.  

6 – Diante disso, que fazemos? Como informar sobre a cidade real num sistema de contrainformação? Como desfazer as armadilhas ideológicas montadas via rádio, tv, jornal, internet, redes sociais? Como enfrentar o monstro midiático? 

7 – Ao longo dos tempos sempre procuramos montar nossa própria mídia. Os jornais de bairro, jornais sindicais, as rádios comunitárias. Processos importantíssimos de resistência, mas praticamente ineficazes, porque não atingem a massa. Tem pequeno alcance e, no geral, são incapazes de trabalhar a notícia com a totalidade, igualmente fragmentando a informação, passando um discurso ideologizante que não ajuda no processo de emancipação do sujeito. O que quero dizer com isso? Que não basta mostrar a ocupação, por exemplo, há que dizer que ela só existe por conta de um sistema de produção que tem como norma básica a existência do empobrecido. Para que um viva, outro tem de morrer. Esse é o tema. Então, se há uma ocupação de luta por moradia, a nossa mídia tem de contextualizar de tal maneira que quem está na ocupação entenda sua posição dentro da realidade, e quem está de fora perceba que a responsabilidade daquela situação não é só do prefeito de plantão, mas de um sistema que se organiza pra que as coisas sejam assim , um sistema global do qual o prefeito é braço. Temos dificuldade com isso. Em mostrar isso. 

8 – Adelmo Genro Filho, um teórico do jornalismo, já nos mostrou como é possível fazer jornalismo sem manipular. Usar a informação como formação de conhecimento e não só como uma informação a mais. Mas, infelizmente, nossos companheiros jornalistas, que atuam nas mídias independentes, comunitárias e populares, apesar de conhecerem a teoria, ainda não se apropriaram desse modo de escrever e narrar e, no mais das vezes, produzem ideologia também. Agora nas redes sociais isso é ainda mais óbvio. Quanta mentira sai no campo da esquerda. Não é só a direita que mente. Isso não pode acontecer. Na nossa mídia a informação tem de ser veraz, confiável, correta, totalizante. 
9 – E, diante do assombroso volume de informações que hoje nos chega via redes sociais, como atuar, como se defender, como encontrar a verdade? Não é coisa fácil e demanda um trabalho conjunto entre partidos políticos, movimentos sociais, educadores, lutadores sociais, no sentido de ajudar a criar o pensamento crítico em cada pessoa com a qual atua. 

10 – Partilho da ideia de que ainda é muito preciosa a formação cara-a-cara, a comunicação interpessoal e ainda aposto no impresso. As pessoas querem saber das coisas, elas têm fome de informação, porque hoje a informação é uma necessidade social. Mas, elas também estão mergulhadas num redemoinho de palavras que lhes chegam no celular, fragmentadas e sem amarração totalizante. Então, temos dois caminhos:

a) Ou tentamos responder a enxurrada de ideologia e mentiras que são divulgadas pela mídia comercial e pelas redes sociais, coisa que não conseguimos, porque não temos o controle dos meios. Uma emissora de TV chega a milhões de pessoas. Uma empresa disparadora de uatizapi chega a milhões e nos não temos isso. Não temos essa estrutura, esse alcance de massa. Não temos como competir. Nossa mídia é pequena. Não é de massa. 

b) Ou enfrentamos com criatividade, fugindo do modelo que nos é imposto. A loucura do roubo do tempo nos é imposta pelo capital. O sistema nos quer enredados nessas maluquices informativas que desinformam, nos rouba o tempo para que não pensemos. E entramos na loucura, querendo competir com o tempo do capital. Um exemplo: estamos hoje em Florianópolis sem nenhum jornal. As empresas fecharam, atuando só nas redes sociais.  Acredito firmemente que um jornal pode ter papel importante nesse momento histórico. As pessoas querem ler, gostam disso. A Igreja Universal – que é uma usina ideológica tremenda – sabe disso e distribui um jornal bonito e capaz de tocar as pessoas. Eu as vejo no ônibus, lendo o jornal, que é standard ( grande). E por quê? Porque ali têm coisas que lhes interessa. Então, o que nos falta para ter um jornal, capaz de mostrar a cidade real, provocar o desequilíbrio, fazer a pessoa sair do uatizapi?

11 – Finalizo dizendo que a mídia popular sozinha não faz a revolução, não é o motor da mudança. Hoje, é apenas resistência. Mas, já passamos do tempo da resistência. É preciso avançar e construir o processo da revolução brasileira. Garantir o país para os trabalhadores, os empobrecidos, os oprimidos. Garantir uma cidade para quem a constrói cotidianamente. Para isso nossa mídia tem de atuar para além da resistência. Tem de formar gente. E claro, precisa que também existam partidos políticos forjando o novo, sindicatos formando seus trabalhadores, movimentos sociais lutando, mas também estudando, vanguardas políticas e intelectuais fazendo seu trabalho de pensar em profundidade, totalizar os desejos e concretizar em propostas as demandas populares. O trabalho tem de ser conjunto. Uma andorinha sozinha não faz o verão. 

12 – E finalmente, deixo como provocação final a seguinte afirmação: não é possível democratizar a comunicação no capitalismo. Isso nunca vai acontecer. Não gastem cartuchos com isso. Há que destruir o capitalismo como modo de produção, como maneira de viver. Um novo modo de produção, uma nova cosmovivência apontará também uma nova comunicação, na qual os meios de informação de massa estarão nas mãos dos trabalhadores, da maioria das gentes. Precisamos avançar para além da resistência. Essa é a nossa hora histórica.