sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O natal do meu deusinho!


No meio da chuva, olhando os escombros, eu o vi. Chorava. Não tinha a leveza do menino do Pessoa. Estava triste. Seu olhar palestino, feito amêndoa doce, fitava um ponto fixo. Apertava os dentes e socava uma mão na outra, numa raiva digna, tal qual a dos zapatistas. Vestia um calção roto e um tênis rasgado, estava sem camisa. O peitinho arfava no ritmo do coração descompassado.

Eu cheguei de manso, como ele sempre chega aos meus natais. Geralmente sou eu quem precisa dele. Mas, naquele dia, era ele quem suplicava um afago. Estava ali, frágil como cabe a um deus minúsculo, tal qual ele é. Não falei nada. Sabia que ele estava naqueles dias em que as palavras sobram. Olhava os estragos dos homens e pensava, “como podem não compreender? Por que não entendem a mensagem?”

Veio da região do Vale do Itajaí e se aboletou na minha casa. Está lá, na parte de cima, andando em círculos, como um leão enjaulado. “Não quero festa de aniversário”, disse. “Tenho raiva das multinacionais, do papai Noel”, resmungou, emburrado. É por causa destas armadilhas do capital, de consumo, lucro, de busca pelo supérfluo que os homens vão destruindo a vida aqui na terra. “Quero ficar quieto”, insistiu.

Já preparei tudo. Lá em casa não haverá peru, nem champanhe, nem bolo, nem música alta. Ficaremos no alpendre, olhando a lua, se não chover, sentindo a chuva, se ela vier. Eu deitarei na rede e ele sobre meu peito. Ficaremos ali, contando estrelas e vaga-lumes, sem falar. Ele dormirá e eu o levarei para dentro. Depois de tantos anos buscando seu colo, eu o confortarei. Será um silencioso natal. Um silente dia de aniversário.

Mas, no dia seguinte, continuaremos, meu frágil deusinho e eu, carabina de sonhos em punho, atirando, lutando, remando contra o vento, na direção do grande meio-dia!

" [...] e aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Nietzsche

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Des-conhecendo



Ontem encontrei uma mulher que jamais vira. Não sei se por conta destas correrias da vida, quando a gente não pára mais para olhar. Então, na tarde de sol quente, naquela hora morta em que parece que o mundo inteiro dorme, ela veio, mansinho. Seu rosto, estranho, em princípio me assustou. Depois, fui absorvendo cada detalhe. A cara, vincada de pequenas rugas não tinha ansiedade. Era como se cada um daqueles riscos fosse uma dessas cicatrizes que gostamos de lembrar, por uma traquinagem de infância ou por conta de evocar boas memórias.

A mulher que me olhava, serena, já não tinha mais pressa, mas seguia encarando o mundo com olhos de fogo. Os braços estavam flácidos, as pernas já não tinham a firmeza de antes, mas os pés continuavam a seguir na mesma velha direção traçada anos-luz antes. Os olhos míopes não viam distâncias, mas não precisava, contou. As realidades que sonhara ainda não tinham se feito fatos, e ela continuava abrindo caminhos. A amargura da juventude tinha se dissipado e toda aquela tristeza que acumulara por esperanças mal havidas se esvaíra por entre os anos. A mulher estava mais madura.

Não era bonita, não tinha glamour, subsumia entre as gentes. Pessoa comum, ínfima, vazia de segredos. Ainda assim me tomava a atenção. Alguma coisa no jeito de rir, de manear a cabeça, de apertar os olhos, era quase familiar. O cabelo, comprido e mal cuidado, branqueava, mas ela não se importava. Bom demais se sentir madurar, como fruta, sem cair do pé. “É hora da doçura”.

Na modorra da tarde, ali estávamos, ela e eu, frente-a-frente. “Já não há medo de findar”, disse, espreguiçando, lânguida como gata. “Nenhuma conta a prestar, só o viver, lento, devagar”. Corpo gasto, coração fraco, cabeça cheia de vontades. Ânima! Espírito livre, navio sem âncora. Ah, deliciosa sensação de não ser premente. “Somos nada” – disse –“o sonho de uma vaca”. E gargalhou, fáunica!

Eu fui embora, mas ela ficou no espelho...