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quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Sobre a polêmica da Opra



Sim, a Opra não é nenhuma mulher de esquerda. Ela é sucesso na televisão justamente por isso. Ela é do sistema, é o sistema, ajuda o sistema. É a mulher mais rica dos EUA. Lambe botas dos presidentes assassinos e tudo mais. Ela é preconceituosa e tem posições horríveis sobre a política estadunidense. É uma adversária de todos nós que sonhamos com o mundo justo, com o comunismo. E o mesmo se pode dizer de um bom número de celebridades estadunidenses que estão nessa batalha, agora, contra o assédio sexual.

Mas, em nome da mulheridade é preciso apoiar esse momento em que as mulheres  - atrizes principalmente  - estão denunciando o acosso sexual por parte de vários diretores e atores famosos. Não estão falando de cantadas ou de brincadeiras eróticas, que podem até ser aceitas. O que elas estão falando é do famoso “teste do sofá”. Aquele conhecido “ou dá pra mim ou não trabalha”. É disso que se trata. E aí, minha gente, não dá pra aceitar. Isso é exercício de poder. Isso é coisa contra o que se deve lutar sim. Isso diz respeito aos trabalhadores e trabalhadoras. É uma pauta nossa.

Claro que não dá para esperar da Opra, que é a queridinha da “América” e da classe dominante americana que diz: “olha uma negra famosa, You can too (tu também pode)” , que ela pense nas mulheres que são violadas no Afeganistão pelos soldados do seu país, ou no Iraque, ou na Síria, ou na Colômbia, ou na Guatemala. Ela só consegue ver no seu entorno, seu mundo cor-de-rosa de mulher que “venceu”. Lembrem que ela mesma foi vítima de abuso sexual quando menina. Isso não é qualquer coisa.  De qualquer forma o fato de ela usar seu nome e seu poder para repudiar o assédio sexual no mundo do cinema, é algo importante para as mulheres daquele meio. É sim. Com toda a hipocrisia que isso encerra, visto que é um repúdio cirúrgico, confinado a um determinado lugar, bem específico.

Esse sentimento de sororidade internacional que exigimos dela só existe em nós, que temos esse sonho da sociedade comunista, global, inteira, vivendo em felicidade. E temos de lutar por isso. Um lugar e um tempo em que nenhuma mulher será violada, que ninguém precisará se submeter à violência sexual para garantir emprego, nem mulher, nem homem, nem criança. Esse mundo que sonhamos não é o mundo da Opra. E haverá um momento em que teremos de lutar contra ela. Porque ela é uma mulher do sistema.

Então, deixem que, nesse momento histórico, ela ajude suas compas do mundo da TV. Quem sabe um dia, ela desperte, e, em vez de apoiar os assassinos das gentes no mundo, some-se às fileiras da maioria. Não custa sonhar...As pessoas mudam... 

Mas, por agora, valeu!

Nós aqui, seguimos... No caminho do comum... 


quinta-feira, 2 de março de 2017

Sobre ser mulher nesse mundo



No dia 8, as mulheres vão marchar em todo mundo

Assisti dia desses um filme indiano chamado Sairat. Dolorosa representação parcial de um país que ainda trata a mulher como uma coisa, unicamente para ser usada pelos homens, seja como mercadoria de troca ou como objeto sexual. O filme é novo, mas aponta para a quase impenetrável lógica das castas ainda em vigor. Quem nasce pobre só pode conviver com os pobres e quem nasce rico, com os ricos. Podem até usar alguns espaços em comum, como é o caso da universidade, espaço no qual começa o drama de um jovem casal. Mas, isso não significa que possam se misturar. 

O filme narra a paixão de dois estudantes, ela filha do cacique local, ele, filho de um pescador. Como é comum aos jovens de hoje, eles pouco se importam com as convenções e proibições. Mas, quem diz que o resto do mundo não? O fato é que o pai da moça já tem um pretendente para a filha, escolhido por ele, segundo suas necessidades, não as dela. E ele vai fazer de tudo para impedir o romance. Não vou aqui narrar as peripécias do casal para viver seu amor, as dificuldades pelas quais passa, a fuga, o enfrentamento com seus próprios preconceitos e valores arraigados. 

O fato é que o filme termina e a gente fica em estupor. Não consegui nem chorar. Foi como receber um golpe no estomago, dois, três, sei lá. Fica-se sem fôlego, sem ar. Dane-se que seja o século XXI. Nenhuma mulher pode decidir seu destino se o pai e toda a família – no seu lado masculino – não quiser. E a gente que vive nesse lado do mundo se estarrece. 

Mas, basta que a gente se ponha a pensar e já podemos ver que essa apropriação das mulheres não é uma coisa que acontece na longínqua Índia, apenas. Não. Ela está aqui, bem do nosso lado, quando um namorado mata a namorada porque ela decidiu terminar, ou um ex-marido mata a ex porque ela se separou e quer voltar a ser feliz. As cultura se diferenciam, mas essa ideia de que a mulher é uma coisa, uma coisa com um dono, se mantém. E olha que não é só no capitalismo não. Nos sistemas regionais de poder que existiram antes do capitalismo global, a mulher também era peça de troca, tal e qual. Jogada para cá e para lá segundo os interesses dos pais e dos maridos. Nem a chamada “revolução sexual” mudou o panorama. Afinal, ser livre para transar com quem se quer não significa liberdade mesmo. Pode-se acabar com um tiro na cara, apenas por que algum macho alfa se arvore no direito de “possuir”, como uma coisa, a mulher. 

Nas guerras, como as que vivenciamos bem agora, no oriente médio, são inumeráveis os casos de estupro de mulheres e até de meninas nas aldeias, nos campos de refugiados. E não apenas no “oriente selvagem”, como afirmam alguns. Não. Nos países europeus, aonde as mulheres chegam fugindo do terror, elas são obrigada a “servir” aos agentes de imigração, aos policiais, aos guardas. Nas prisões de qualquer país, as mulheres são estupradas e violadas quando bem querem seus algozes. Seus corpos são espaços de abusos de toda ordem. E quando elas se alçam em luta, unindo-se e protegendo-se, como fizeram as curdas, quando podem, os inimigos as violam para provar que não há escapatória. 

É por isso que, de certa forma, a mulheridade é uma coisa que extrapola a classe. Pois mesmo na classe alta, no mundo dominante, as mulheres também estão em risco e podem sofrer violências, abusos e violações. Então é comum que assome esse sentimento de sororidade quando qualquer mulher no planeta é atacada, ainda que em outros espaços elas venham a ser adversárias ou inimigas. Parece ser algo que está no DNA. Não dá para não se sentir irmanada a qualquer mulher que venha ser violada na sua dignidade. Nessa hora é o corpo que se expande e se torna útero, disposto a acolher, como mãe, qualquer que seja a mulher em risco. Pelo menos é que o percebo entre as mulheres que vivem ao meu redor. Não sei se na classe dominante o sentimento é mesmo.  

De qualquer forma, é óbvio que na classe trabalhadora o índice de violência contra a mulher é bem maior, porque as mulheres estão em maior vulnerabilidade. E não é só a violência sexual. É justamente a violência de classe. A dependência econômica, a falta de um lugar seguro para morar, a necessidade de cuidar dos filhos, a dura batalha para sobreviver, o jugo dos patrões, as pressões para ser tal e qual o sistema quer, tudo isso é lenha na fogueira para a violência e para o sentimento de que a mulher pode ser tomada como coisa, tanto pelo homem como pelo sistema dominante. 

É por isso que essa é uma luta que precisa ser travada com muito mais intensidade no campo da política. Não é só um assunto de mulher. É um assunto humano. Assunto de todos. Tem de adentrar em todas as esferas e em todas as cabeças.

Tenho plena convicção de que num outro sistema de produção da vida, a mulher fatalmente encontrará um novo lugar. Esse é um processo em construção. Se no mundo antigo a mulher era coisa, se no mundo das grandes civilizações pré-colombianas a mulher era coisa e se no capitalismo a mulher segue sendo coisa, a luta que vem se travando desde os tempos mais remotos já garantiu as condições materiais para a mudança. 

É chegado o tempo de poder ser mulher, e sem medo. Seja aqui, na Índia ou na Conchinchina. Isso passa não só pela sistemática luta por direitos e contra a violência– que é, e sempre será, insuficiente no capitalismo - mas também pela construção de uma nova sociedade. Sem isso estaremos sempre no espaço da redução de danos. E nós merecemos bem mais do que isso.

Agora, nesse 8 de março, as mulheres de todo o mundo estão organizando uma marcha, unificando gritos, lutas, desejos, esperanças. Será um dia em que cada uma de nós estará unida em coração e mente, na construção desse mundo novo. Enfrentar a violência, destruir o capitalismo, esse é o caminho. Não podemos querer só mais justiça, mais respeito. Mais isso ou mais aquilo. O “mais” significa que ainda estaremos dentro do paradigma que queremos destruir. 

Queremos um mundo no qual possamos ser mulher, sem medo, sem opressão, sem exploração, sem violência. Um mundo de justiça, de corpos livres e riquezas repartidas. Um mundo socialista, ou com qualquer outro nome, desde que nele esteja contido todo o ideário dessa generosa proposta de bem-viver. 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Mulheres curdas



Sempre me causaram profunda angustia as cenas – apenas vislumbradas  - de soldados estadunidenses estuprando mulheres árabes após a invasão do Afeganistão ou do Iraque. Essa violência abissal contra o corpo, que é o último reduto do ser. A humilhação do uso instrumental do sexo, apenas pelo poder de fazer. Grupos de homens armados devassando um espaço que é considerado quase sagrado pelas mulheres muçulmanas. Não bastava matar seus homens, seus filhos, destruir suas casas, era preciso invadir seus corpos, entre risadas e obscenidades.

Mas as cenas dos “marines” não são cenas isoladas. Em qualquer conflito esse rasgo de vontade de poder aparece e se constitui. Nas guerras, as mulheres acabam sendo as presas mais cobiçadas. Isso desde os primórdios dos tempos, seja para servirem de escravas, seja para serem humilhadas e vilipendiadas. Seus corpos viram troféus, seus sexos lugares de despejo de ódio. O verbo “foder” assume seus contornos mais pesados. Penso no terror das mulheres das pequenas aldeias invadidas e tomadas pelas hordas, seja no oriente, no grande continente africano, ou mesmo na Europa, como se viu na guerra entre a Bósnia e a Sérvia, e como se vê hoje na Ucrânia. A certeza da violação, quando surpreendidas sozinhas e vivas no campo da morte.

Aí aparecem essas mulheres curdas, da cidade de Kobane. Elas entenderam que a guerra, sem vem, deve ser enfrentada no coletivo, como gênero humano. Formaram uma frente de mulheres, para garantir a autodefesa e se integraram às forças de combate. Luta feminina, luta de classe, luta política, tudo junto, misturado. Vejo seus rostos, nas fotos de jornais, sorridentes e altaneiras. Enfrentam hoje o Exército Islâmico, esse grupo extremista criado para espalhar o terror. Armadas de fuzis e de valentia elas marcham, ombro a ombro com os homens na defesa do território, na defesa de seus corpos.

Essas mulheres ensinam uma singela lição. Ninguém é fraco se está junto e hoje a Unidade de Defesa das Mulheres já conta com nove mil guerrilheiras. Ao se protegerem, armadas, elas garantem a liberdade de ser quem são. Não fazem discursos, nem reivindicam diferenças. Elas estão no campo de batalha, elas se protegem e lutam pelo seu espaço geográfico. E, se por um acaso, se encontram desprotegidas diante do inimigo, como foi o caso de Arin Mirkan, de 20 anos, isolada e sem munição, elas sacrificam o corpo em nome do coletivo. Foi o que fez Arin. Envolveu-se em explosivos e explodiu, levando com ela mais 23 jihadistas. Foi a sua decisão. Seu corpo. Sua decisão.

Eu reverencio essas mulheres curdas, que souberam encontrar o caminho da mulheridade, sem perder o conteúdo de classe. São vitoriosas, não apenas por colocarem os extremistas para correr. Mas, por caminharem em comunhão.  

domingo, 27 de julho de 2014

Sobre ser mulher


Nunca me ocorreu ser mulher.  Na família, jamais vivi qualquer opressão ou discriminação. Desde bem pequena, mergulhada no mundo dos livros, aprendi que para conquistar os sonhos que brotavam na cabeça, tudo o que tinha de fazer era levantar e agir. A condição feminina nunca se colocou como limite para nada. A luta política, o estudo, o trabalho. Fazia o que tinha de fazer. Com 20 anos fui trabalhar na televisão. Espaço masculino. Ali – eu nem sabia – a mulher, ou era capacho, ou era puta. Eu, nem uma coisa, nem outra. Meu negócio era trabalhar. Repórter, viajando pelos caminhos com uma equipe de homens, nunca reparei qualquer olhar de soslaio. Não havia. Na firmeza, eu cavava meu lugar.

Talvez, por conta disso, as lutas ditas feministas nunca me atraíram. Primeiro porque eu sempre acreditei que as questões referentes à mulher tinham de estar imbricadas na luta de classe. Mesmo a liberdade sexual, da qual usufruí sem nunca pensar sobre ela, me parecia uma luta estranha. Ainda assim, naqueles dias de juventude, eu apoiava, custando a crer que alguém pudesse não ter o direito de dispor do seu corpo como bem quisesse. Via mais as coisas pela ótica do Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras – livro que marcou minha vida – o qual narrava os horrores da inquisição com as mulheres chamadas de feiticeiras por ousarem ter poder no mundo dos homens, do que pelo Relatório Hite – livro que teorizava sobre o orgasmo feminino.

Depois, entendendo melhor as coisas do mundo, foi que me vi mulher. Então, vivi a experiência da centopeia que andava garbosa com suas cem pernas sem nunca pensar sobre elas, e quando alguém lhe perguntou: como consegues andar com tantas pernas, ela se deu conta do problema que era e nunca mais pode andar, tropeçando nas pernas. Por algum tempo me obriguei, tropeçando, a olhar para a realidade observando a condição da mulher. Tantas, oprimidas por pais, maridos, patrões. Algumas nem sequer ganhavam o mesmo salário que os homens na mesma função. A violência doméstica, as mulheres do oriente com seus corpos cobertos, sem poder estudar, as comunidades que mutilavam as meninas. As terríveis violações que as mulheres sofrem nas guerras.

Percebi então que havia coisas relacionadas com a mulheridade que estavam para além da classe. Como não ser solidária com uma mulher oprimida, ainda que ela pertencesse à burguesia ou a aristocracia? Mas, ainda assim, entendia que isso tinha muito mais a ver com o sentimento contra a injustiça do que com a condição feminina. Também conheci homens oprimidos por mães, por esposas e patroas. E com eles marchei. De alguma forma sempre desconfiei dessa fragmentação e hierarquização da dor. Esse mundo de “tribos”. Luta das mulheres, luta dos negros, luta das pessoas com deficiência, luta dos índios. No frigir dos ovos, tudo era uma coisa só. E, ao ser despedaçada, mais servia ao sistema opressor do que à causa.

Assim, mesmo patrulhada, nunca queimei sutiã e nem gritei pela igualdade com os homens. Não quero igualdade. Somos desiguais. Entendo que como mulheres, negros, deficientes ou índios, temos de nos unir, na semelhança, para sermos fortes em batalhas pontuais, mas a luta tem de ser por um projeto de mundo que se diferencie desse que aí está. Isso é o que nos alinha, o que nos dá sul. Não estou no projeto da Kátia Abreu, nem do Angela Amin, ou da Narcisa Tamborindegui. Não estou no projeto do Pelé nem do Barak Obama. Então, posso me compadecer se alguns deles sofrer violência ou preconceito. Mas, meu caminho é outro.

Vivo mulheridade com todas as suas belezas. As fases lunares, as delicadezas, a ternura, a emoção, o desejo de esmaltes e batons. Vivo a mulheridade na forma de estar no mundo, sem oprimir quando com poder, usando e abusando das dessemelhanças. Na luta das mulheres quando necessário, feminina todos os dias. Assim, como a centopeia antes de saber dos pés. Sendo mulher.

E nesse passo cadenciado, de salto alto, vou carregando os tijolos da construção da sociedade justa, sem discriminação, sem preconceito, sem violência. Esse mundo no qual nem o homem nem a mulher sejam lobos de si mesmos. Essa utopia... Vivo a mulheridade, sempre, mas sem nunca esquecer de onde eu venho nem a classe a qual pertenço. Sou, penso e luto. Essa é a minha opção!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Olímpia Gayo visita o diabo



O livro que escrevi contando a vida da irmã Olímpia Gayo deverá ser lançado em Lages no mês de março. O trabalho conta a história da Pastoral da Mulher Marginalizada criada na cidade de Lages pela irmã Olímpia. A teóloga Ivone Gebara é quem apresenta essa preciosa história de uma mulher que nunca se recusou a olhar o diabo de frente. Essas são suas palavras generosas...


"Elaine Tavares tem o dom e a arte de contar histórias de mulheres apaixonadas pela vida. Mulheres que são parte da história oculta da bondade e da beleza e que atuaram intensamente para que esses valores continuassem a se manifestar nas vidas sofridas e silenciadas. "Olímpia Gayo visita o diabo" é mais uma preciosa narrativa que revela o percurso de uma mulher que cresceu vencendo o sofrimento que a vida punha em seu caminho. Desde criança vencia o sofrimento preparando-se e lutando pela dignidade da vida de outras sofredoras e sofredores.

O texto move o coração e convida a abrir os olhos para as vidas ocultas, aparentemente sem valor, para a escória humana que somos e criamos assim como para a salvação e libertação que também podem nascer de nós. Sim, somos salvadoras umas das outras, somos a mão estendida, o abraço apertado, o sentido da solidariedade, a misericórdia vivida. Somos a voz que denúncia, que grita até que os corações de pedra comecem a palpitar de novo e ver e ouvir o mundo ao seu redor.


Conheci Olímpia num encontro de estudos em Julho de 2013 em Lages. Sua congregação religiosa me convidara para uma semana de reflexão sobre espiritualidade eco feminista. Desde as primeiras palavras que ouvi de Olímpia, a cumplicidade nas ideias, nas visões e, sobretudo, sua forma de "sentir a dor do mundo" ecoaram em mim. Cada uma do nós, de seu jeito, vivia a paixão pela vida manifestada através de muitas formas e expressa através de muitos nomes. Tínhamos muitas coisas em comum. Enfrentamos demônios parecidos, aqueles que atingem os corpos de mulheres e querem silenciar seus gritos de liberdade.


Nas visitas e encontros de Olímpia com os "diabos" da fome, da droga, da prostituição, seu nome, que faz lembrar o Olimpo, moradia dos deuses gregos, espantava os algozes e trazia algo apaziguador, algo ao mesmo tempo celeste e terrestre.  Os diabos fugiam e se descobria sua face oculta, sua beleza, sua momentânea integridade.  No encontro de coração a coração os diabos não ficam. Abrem o espaço para o amor e a justiça. Por isso tantas pessoas marginalizadas encontraram na presença de Olímpia a força para viver, levantar-se e seguir o caminho do resgate da vida.


Ao final da leitura do livro um sentimento de profunda gratidão e beleza tomou conta de mim. Gratidão à Elaine, à querida Olímpia e a tantas pessoas que no anonimato sustentam a vida e anunciam a grandeza do amor, único capaz de curar os corações partidos e renovar a face da terra".


Vale a pena conhecer a história dessa mulher, guerreira, ainda atuando com toda a valentia.







segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Novo livro saindo do forno


Recebi hoje da gráfica, o meu mais recente livro. O trabalho conta a história da freira franciscana Olímpia Gayo, que iniciou um fecundo trabalho de organização das mulheres prostituídas em Lages. Por conta disso, pagou alto preço, mas nunca desistiu da luta. Olímpia é dessa mulheres que são imprescindíveis. Para mim, que narrei essa histórica, ficaram lições de amor, de força e de consciência de classe. Na sua caminhada ela, por várias vezes enfrentou o "diabo", concretizado na inveja, na perseguição, na ameaça, e no processo capitalista de organização da vida. Segue o prefácio, escrito generosamente pela teóloga Ivone Gebara.

"Elaine Tavares tem o dom e a arte de contar histórias de mulheres apaixonadas pela vida. Mulheres que são parte da história oculta da bondade e da beleza e que atuaram intensamente para que esses valores continuassem a se manifestar nas vidas sofridas e silenciadas.

"Olímpia Gayo visita o diabo" é mais uma preciosa narrativa que revela o percurso de uma mulher que cresceu vencendo o sofrimento que a vida punha em seu caminho. Desde criança vencia o sofrimento preparando-se e lutando pela dignidade da vida de outras sofredoras e sofredores.

O texto move o coração e convida a abrir os olhos para as vidas ocultas, aparentemente sem valor, para a escória humana que somos e criamos assim como para a salvação e libertação que também podem nascer de nós. Sim, somos salvadoras umas das outras, somos a mão estendida, o abraço apertado, o sentido da solidariedade, a misericórdia vivida. Somos a voz que denúncia, que grita até que os corações de pedra comecem a palpitar de novo e ver e ouvir o mundo ao seu redor.

Conheci Olímpia num encontro de estudos em Julho de 2013 em Lages. Sua congregação religiosa me convidara para uma semana de reflexão sobre espiritualidade ecofeminista. Desde as primeiras palavras que ouvi de Olímpia, a cumplicidade nas ideias, nas visões e, sobretudo, sua forma de "sentir a dor do mundo" ecoaram em mim. Cada uma do nós, de seu jeito, vivia a paixão pela vida manifestada através de muitas formas e expressa através de muitos nomes. Tínhamos muitas coisas em comum. Enfrentamos demônios parecidos, aqueles que atingem os corpos de mulheres e querem silenciar seus gritos de liberdade.

Nas visitas e encontros de Olímpia com os "diabos" da fome, da droga, da prostituição, seu nome, que faz lembrar o Olimpo, moradia dos deuses gregos, espantava os algozes e trazia algo apaziguador, algo ao mesmo tempo celeste e terrestre.  Os diabos fugiam e se descobria sua face oculta, sua beleza, sua momentânea integridade.  No encontro de coração a coração os diabos não ficam. Abrem o espaço para o amor e a justiça. Por isso tantas pessoas marginalizadas encontraram na presença de Olímpia a força para viver, levantar-se e seguir o caminho do resgate da vida.

Ao final da leitura do livro um sentimento de profunda gratidão e beleza tomou conta de mim. Gratidão à Elaine, à querida Olímpia e a tantas pessoas que no anonimato sustentam a vida e anunciam a grandeza do amor, único capaz de curar os corações partidos e renovar a face da terra".
  
Ivone Gebara
Teóloga

terça-feira, 28 de maio de 2013

De homens e mulheres


 Desde pequenina circulo pelo universo masculino, mundo secreto, cheio de surpreendentes mistérios, sempre a me atrair. Mas não o suficiente para desvendá-los, uma vez que, assim, perderiam  beleza. Minha opção foi despejar neles minha mulheridade, em diálogo amoroso. Nunca pensei em competição ou igualdade. Não creio que sejamos iguais, homens e mulheres. Nosso mundo úmido também tem seus deliciosos mistérios, que jamais poderão ser conhecidos pelo homem. São perspectivas diferentes e absurdamente belas, cada uma com suas especificidades.

Minha entrada nesse mundo masculino se deu pelo futebol. Em casa, pai e mãe eram aficionados. Menina ainda, meus domingos eram passados no estádio, acompanhando as partidas do velho Internacional de São Borja. Momento sagrado. O que nunca inviabilizou as brincadeiras com bonecas e panelinhas. Futebol era para ver, no estupor da beleza do drible, da magia do gol. Ao mesmo tempo eu dava a esse mundo masculino minha risada cristalina em momentos de tensão, e aquela capacidade de torcer tanto pelo Internacional quanto pelo Cruzeiro, porque o que era bonito era o jogo mesmo. Os garotos não entendiam, mas aceitavam. Na rua de casa, as brincadeiras mais apaixonantes eram os campeonatos de bolita, reduto dos meninos. Gostava de me meter, apesar dos protestos. E, enquanto os companheiros se aprimoravam nas técnicas, eu falava da cor das bolinhas e colecionava as mais bonitas. Uma pitada de estética na brincadeira popular.

 Quando comecei a trabalhar na televisão esse também era um mundo masculino. Estar ali tinha dois significados: ou se atuava como homem, na disputa, na conquista, no jeito de fazer as coisas, ou era vista como vagabunda, por andar sempre metida com a rapaziada. A “tradicional família brasileira” não acreditava que uma mulher pudesse viver no mundo dos “machos”, sem se “perder”. Procurei fazer outro caminho: nem macho, nem vagabunda, apenas uma mulher vivendo num universo diferente, o qual respeitava e amava. Partilhava dos jogos de futebol, ia às mesmas boates, acompanhava nos bares, na cerveja. E, nesses momentos tão particulares do gênero, me atrevia a despejar uma ou outra gota de mulheridade, para que eles também vislumbrassem o meu universo, conhecendo e respeitando.

 Assim, em meio a acalorados debates sobre o grenal, falávamos também de cores de esmalte e de pontas duplas. Tudo sem que o nível da conversa fosse tripudiado. Nos balcões de boteco, ouvia os absurdos que diziam sobre as mulheres e apontava novas perspectivas. Muitos deles mudaram sua maneira de pensar. Alguns iam comigo fazer compras, e opinavam sobre cores e modelos de roupas. Dois universos conversando, sem competição.  Muito aprendi sobre o mundo masculino e muito ensinei sobre mulheridade. Nunca acreditei que falar de moda ou de cabelo nos definisse, assim como coçar as bolas e dizer sacanagem não define o homem. As coisas são muito mais complexas.

 O que aprendi nessa caminhada é que há momentos, absolutamente singulares, que são dos homens. Não podemos e nem devemos entrar. Assim como há outros que são nossos, femininos, incognoscíveis para os homens, os quais também não podem nem devem ser compartilhados. Isso não significa que sejamos melhores ou piores. É só o desfrute de um mistério, único, perfeito, de homem e de mulher. Acredito ainda que esse secreto ponto pode ser conhecido pelo humano, independentemente do sexo. O que nos faz conhecer a chave de entrada do universo masculino não é o pênis, assim como a chave para o mundo feminino não é a vagina. É o mistério. E que assim continue! E que se respeitem aqueles seres que, conhecendo os segredos, optam por um desses mundos. Porque, afinal, a melhor coisa desse presente que é a vida, é que a gente possa vivê-la com toda a intensidade, buscando as gotas de felicidade que se pode colher aqui e ali.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

As mulheres fortaleza


Milton Santos estava certo. Não há como escapar do nosso espaço geográfico. Por isso que, mesmo sendo uma pessoa do mundo, o lugar onde nascemos segue vivendo em nós, e de uma maneira total. Eu mesma sinto isso todos os dias. Nasci no Rio Grande, na barranca do rio Uruguai, fronteira com a argentina, região da pampa. Da janela de casa – qualquer casa – nossa visão é sempre a planura, o infinito. Por isso, talvez, que nosso instinto seja sempre esse, de ir mais longe, e mais longe, e mais longe. Andar sempre em frente, no rumo daquele horizonte sempre vislumbrado.

Essa sede de infinitos é clara no filme Anahy de las misiones, uma produção do cinema gaúcho, que mostra a fortaleza das mulheres do Rio Grande, sempre às voltas com forças aparentemente maiores do que elas, mas as quais domam com mão segura. A personagem principal, Anahy, vive em plena revolução farroupilha, nos campos de batalha, e tudo lhe acontece. Coisas que vergariam os espíritos mais duros. Ela segura no osso do peito e segue em frente. A cena final é paradigmática. Quando tudo está perdido, todas as dores foram sofridas, ela ergue o peito e anima os que sobraram para seguirem em frente. “Nada vai nos parar”, desafia, “ainda sobrevivo a muitos desavindos”. A câmera vai subindo, subindo, subindo, e o espectador vê que o grupo ao qual ela lidera com sua força abissal está indo na direção de um abismo. Metáfora maravilhosa da geografia de um forte. Sempre em frente, não importa se lá na frente há um abismo. Ela saberá vencer. Ela encontrará um caminho, porque é da sua natureza enfrentar, seja o que for. A gente sai do cinema com aquela ânima, com uma alegria desesperada, uma vontade de gritar, de júbilo, de felicidade.

Diferente mensagem passa o filme Telma e Louise, que também termina num abismo. A película se passa no espaço geográfico e cultural dos Estados Unidos, dentro de um contexto em que as mulheres parecem frágeis demais, oprimidas demais. No filme, a morte acidental de um homem que tentava violentar uma das personagens, as leva – amigas - para uma fuga sem fim. As mulheres seguem um caminho de evasão, sem enfrentar realmente, nem o fato real, da morte do homem, nem suas dores existenciais de abandono, de solidão, de medos. Ao longo da fuga, novos problemas vão surgindo, mas elas não são capazes de olhar de frente para estes monstros. Preferem fugir. No final, quando tudo está perdido, elas se encontram cercadas pela polícia na beira de um precipício. Elas se olham, dão-se as mãos e saltam no abismo, no rumo da morte.


Quanta diferença da gigantesca Anahy, a mulher missioneira da guerra farroupilha, da pampa gaudéria. Cara a cara com os monstros, todos os dias, ela os enfrenta um a um, sem concessões à autopiedade. Uma única vez ela se permite desabar. Mas, ainda assim, é um momento só. Ela berra e se retorce no chão, um grito quase animal. Depois, se recompõe e segue em frente de novo, grávida de horizontes. Nada a detém, nem o abismo que se anuncia. Anahy é meu modelo de vida, Anahy é da mesma carne das minhas avós, das antepassadas charruas, cruzando o descampado, peito aberto, cabelos ao vento, sempre no rumo do infinito. Anahy é o espelho que se apresenta a nós, mulheres gaúchas, no cotidiano desta vida louca.

Hoje, Miriam, uma gaudéria de quem gosto muito completa 40 giros em torno do sol. Meu presente é essa alma de Anahy. Essa coragem, essa fortaleza. “Nada vai nos parar”. E, assim, de mãos dadas, também nós, seguiremos para os abismos. Não saltaremos para a morte como Telma e Louise, mas para a vida, esgrimindo os monstros e rasgando novos caminhos. Porque é desse barro de que somos feitas!!!