sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O adeus a seu Getúlio

Foto: Billy Culleton

Foto: Billy Culleton

Foto: Rubens Lopes


Ruben Alves tem um texto no qual fala que o nosso corpo é como uma hospedaria na qual vivem muitas pessoas diferentes, muitos “eus”. Vez em quando é um ou outro que assoma à janela. Seu Getúlio Inácio era assim também: uma hospedaria. Há quem fale que era muito autoritário, fruto de sua disciplina militar, outros dizem que era de difícil convivência, por conta das rixas de pescadores, bem típicas do litoral. Outros o viam apenas como pai, ou marido, ou avô, ou tio, ou amigo, e cada uma dessas facetas era diferente uma da outra. Eu o conheci já como maestro e líder comunitário. Essa era a face que aparecia na janela sempre que eu o via, passando com seu passo lento, olhar no chão, cuidadoso e firme. E eu o amava.

Pois foram todos esses “Getúlios” que as pessoas saudaram nessa quinta-feira, um primeiro de fevereiro, dia de sol no Campeche. Era a hora de dizer adeus a esse homem de tantas faces, que, mais do que qualquer outra coisa, amou esse lugar com todas as suas forças. O Campeche, o campo de peixe dos aviadores franceses, que aqui paravam para descansar do longo voo até Buenos Aires. O lugar de morada e de vida de famílias centenárias como a dos Inácio, dos Rocha, dos Daniel. Espaço de belezas e lutas de outras tantas famílias que aqui fincaram suas raízes e que seguem defendendo esse chão como um bairro-jardim.

E foram todas essas gentes que acompanharam Getúlio até sua morada final, plantado bem ali, na beira do mar que o acolheu tantas e tantas vezes, comandando a canoa Glória.

O maestro e pescador se foi como viveu: entre música. Desde menino aprendeu com o pai que os barulhos da vida à beira da praia eram harmonias de deus e ele logo foi domando as notas musicais, produzindo música. Durante seu tempo como militar, foi entre os instrumentos que construiu seu caminho. Músico e depois regente da banda da Base. Mais tarde, já aposentado, decidiu que era preciso cuidar da gurizada do bairro. A música foi o caminho.  Abriu o rancho, pediu licença à Glória e, enquanto ela descansava na areia ele dava vida ao projeto “Música no Rancho da Canoa”, em parceria com os demais pescadores. Por ali então passavam meninos, meninas, e gente adulta que queria aprender a tocar um instrumento. E a música ecoava na praia fazendo coro com o barulho das ondas. Reuniu outros maestros, ampliou a ideia e coletivamente deu novos rumos a muita gente, iniciada ali entre o cheio de peixe e as paneladas de estopinhas de arraia do seu Hélio.

O rancho virou então um espaço cultural. Abria-se para a música, para o cinema, para as rodas de capoeira, para o jogo de dominó, para exposições de fotografias, shows do povo da terra, lançamentos de livros. Era uma casa coletiva. Tinha festa toda hora, regada a bolos, guaranás, com direito ao delicado som do clarinete do seu Leni, aos acordes dos alunos e dos maestros amigos. Mas, não era só isso. Ele ainda carregava o rancho para fora da praia, levando os alunos para tocar nos asilos, nas festas da igreja, nos natais no centro da cidade.

Tenho gravadas suas palavras, ao telefone, quando ligava, sistematicamente, para chamar meus sobrinhos – frutos desse lindo projeto do rancho: “Avisa aos mineiros que tem tocata e que não esqueçam o uniforme. Temos de preservar a nossa cultura, né?”. Ou então, suas histórias, sempre deliciosas, sobre “papai”, que era o seu Deca, amigo de Saint-Exupery. E sua expressão peculiar, quando deparado com qualquer coisa que o animasse: “interessantíssimo!”

Seu Getúlio ainda conseguiu coisas inimagináveis, como reunir os desafetos. Isso acontecia na missa do Primeiro de Maio, organizada por ele para saudar o início da Pesca da Tainha. Então, como era um momento único para a comunidade, a gente ia para a missa, tendo de conviver com figuras que no cotidiano são adversários, como Amin, Dário Berger, Gean, César Souza, Rodolfo Pinto da Luz. É que o seu Getúlio tinha esse respeito pelas autoridades e fazia lá os seus acordos com eles para garantir coisas para os pescadores ou para a comunidade. Eu mesmo torcia o nariz, mas ia à missa em consideração ao maestro. Muitos outros companheiros também iam de cara enfezada com os desafetos, mas entendendo a importância daquela reunião anual, à céu aberto, na beira da praia, nosso único lugar de encontro coletivo.

Nessa quinta-feira, na hora do adeus, ele conseguiu isso mais uma vez. Lá estavam os políticos e outras tantas criaturas não gratas, pelo menos à mim. Lá estavam os camaradas das lutas sociais, o povo da cultura, os capoeiras, os músicos, os pescadores, os ambientalistas, as gentes simples da beira mar. E a banda da Base, junto com os tantos alunos que passaram pelo rancho, entoaram música para que ele fosse embora, embalado pelas notas que tanto amou. “Amigos para sempre é o que nós iremos ser, na primavera ou qualquer das estações. Nas horas tristes, nos momentos de prazer, amigos para sempre...”

E assim foi. Com música, sol alto, mar quebrando na areia, gaivotas voando rasante. O corpo de Getúlio ficou ali, no pequeno cemitério. Mas sua energia cósmica haverá de voejar pelo Campeche para sempre. Porque cada cantinho tem o seu toque. Na entrada da praia, a estátua do pescador, trazida por ele, anuncia que essa comunidade tem história e memória. Assim, Getúlio nunca será esquecido. Porque ele, lutando para preservar a memória do pai e a amizade com o aviador, acabou por tornar-se ele mesmo um novo personagem. Com identidade própria. Maestro, condutor, desbravador de caminhos.

No meio da tarde, quando passei no rancho de canoa, tendo ido beber sua vida, deparei-me com as portas abertas e dentro dele, alguns pescadores jogavam dominó, seguindo a existência. A brisa era leve, o sol quentinho, havia gritos de criança. De repente, tudo era música e dentro de mim vibrou o clarinete, suave, como suave era o seu Getúlio. Pelo menos era assim que ele aparecia na janela que eu conseguia ver. Chorei.

Getúlio cumpriu um papel de guardião da história da nossa comunidade, da nossa cultura. Não sei agora como será. O Campeche, cresceu, mudou, recebeu muita gente que não se importa com nada. Mas, acredito que alguém surgirá, vestido de água, nesse dia de Iemanjá, pegará o bastão e seguirá pela trilha palmilhada pelo maestro.

Meu amigo Bira, outro apaixonado por essa comunidade, contou que quando saía para a despedida, alguém pediu ajuda para levar a esposa à maternidade. Nascia uma criança. E assim é a vida. Sempre se renovando. Haveremos de seguir...

Obrigada por tudo seu Getúlio. Nunca esqueceremos! 


quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A felicidade no facebook


Já vi muita gente tripudiar sobre a “felicidade” que as pessoas exibem nas redes sociais. Não poderia ser diferente. A vida da gente é ordinária, absurdamente ordinária. Trabalhamos demais, passamos tempo demais no trânsito, dentro do busão, lavamos roupa, limpamos casa, resolvemos problemas com encanamento, arrumamos o lixo. Choramos nossas pitangas, brigamos com a família, temos acessos de pânico, arrancamos os cabelos com ódio e raiva, sentimos medo. Mas, nossa vocação real é para beleza. Não a alcançamos por conta das condições materiais e históricas. 

Por isso, talvez, as postagens “felizes” sejam constantes. É a beleza sonhada, almejada, o ainda-não. Esses átimos de alegria com os amigos, com o gato, com a família. Átimos, segundos estelares. Então, congelamos e repartimos como se disséssemos: que seja assim para sempre. Somos, indefectivelmente, buscadores da beleza. Essa coisa etérea, sempre tão distante... Então, deixa as gentes exercitarem essa hora, que chegará... Porque estamos em luta!