terça-feira, 18 de junho de 2019

Brasil: mais uma sacudida no governo Bolsonaro



No ano passado, quando o Brasil viveu o processo eleitoral, não faltaram denúncias sobre as manobras realizadas pelo juiz Sérgio Moro, visando impedir a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, somando-se assim ao mosaico que estava se desenhando com o crescimento da candidatura de Jair Bolsonaro, até então um azarão. Durante todo o processo que culminou, finalmente, com a prisão de Lula, acusado de ter recebido propina e com ela comprado um apartamento pobrinho, a mídia não comercial apontou os equívocos, os erros, a irregularidades. Mas, nada foi levado em conta. Tudo seguiu seu rumo, dentro daquilo que o então senador Romero Jucá dizia que era o acordo “com o Supremo, com tudo”. Sem o Lula na parada, e com o discurso frouxo da esquerda, o caminho ficou aberto para a ascensão da direita ultraliberal que se apresentava como antissistema.

O jogo seguiu, as eleições aconteceram e Jair Bolsonaro venceu.  O projeto que recebeu o respaldo das urnas foi o de destruição total de tudo o que significasse ganho à maioria da população. E, tão logo iniciou o mandato, Bolsonaro chamou para Ministro da Justiça, justamente o juiz que levara Lula à prisão. Não bastasse isso, pouco depois já anunciou que ele era o nome a ser brevemente indicado ao Supremo Tribunal Federal. E, da mesma forma que no processo eleitoral, tudo isso foi visto pela mídia comercial como bastante normal.

As denúncias feitas durante o processo eleitoral ficaram sempre no vazio e, aparentemente ninguém se preocupou em investigar a fundo cada uma delas. Agora, nas últimas semanas, uma série de reportagens divulgadas pelo jornal Intecept traz as provas de tudo aquilo que, antes, parecia ser só a choradeira dos derrotados. A relação entre o juiz do caso Lula e o procurador, com conversas sistemáticas sobre o processo, inclusive com o juiz indicando caminhos até para a divulgação na imprensa, seria um escândalo brutal em qualquer lugar do mundo. Mas, no Brasil, não. 

Imediatamente à divulgação das conversas, que vazaram provavelmente a partir de alguém de dentro do esquema, tudo o que se viu na imprensa comercial foi a tentativa de criminalizar o jornalista e a fonte. Começou uma caça ao suposto “hacker” que conseguiu as gravações e até a Rússia entrou na conversa, visto que os diálogos vazados tinham sido praticados no Telegram, um sistema russo de mensagens. Ler os jornais brasileiros, desde então, é quase como estar metido dentro de uma série cômica dos tempos da “guerra fria”, como a do Agente 86, que via russos em todo o lugar. Seria realmente risível se não fosse trágico. 

Há uma tragicidade no campo do jornalismo, visto que as reportagens de TV e jornal são assustadoramente vazias, revestidas da absurda defesa de que se pode cometer um crime se for para combater um crime. Então, se Moro descumpriu a lei pra prender um corrupto, no caso, Lula, aí pode. Poucos se perguntam sobre qual a legitimidade que tem um juiz de decidir sobre quando pode ou não pode burlar a lei. Se for assim, para que existe a lei? Não. Não há qualquer resquício de inteligência ou de pensamento crítico no jornalismo tradicional nacional. 

E há também a tragicidade no campo da vida mesma. Porque justamente os meios de comunicação de massa respaldam firmemente a ideia de que o juiz Moro agiu mal para defender o bem. E pronto. Acabou. Entre os apoiadores do presidente, que seguem cegos diante de qualquer crítica, quem tem de ser preso é o jornalista que divulgou as conversas, porque, esse sim, quer o mal do Brasil. E nas redes sociais se formam as torcidas organizadas, do Bolsonaro, do Lula, do Intercept. 

Enquanto isso o presidente vai editando medidas provisórias, decretos e propondo leis que acabam com o país e colocam os trabalhadores numa fria sem tamanho. O Congresso Nacional faz o seu velho jogo, apertando o cerco para tirar benesses e punindo o governo quando não é atendido. Um jogo entre os poderosos, no qual a maioria só fica de assistente. 

Mas, lentamente os trabalhadores vão constituindo lutas, ora singulares, em greves pontuais, ora mais universalistas, como a greve geral do dia 14 de junho que mobilizou mais de 45 milhões de pessoas. E, timidamente, vão surgindo reações como a da Ordem dos Advogados do Brasil, que está exigindo a saída de Moro e do procurador Dallagnol dos seus cargos. Na última semana, os jornalões paulistas Folha e O Estado de São Paulo, em seus editoriais, apontam que a relação estabelecida por Moro com Dallagnol é mesmo uma ilegalidade. Para a direita tradicional, é fundamental que os tribunais possam ser reconhecidos como “legítimos”, sob pena de esfacelamento total das instituições, então, a única saída é fritar o juiz, que já serviu aos interesses. 

Resta saber quais as implicações de um possível desembarque de Sérgio Moro do governo. Terá força para empurrar outras denúncias contra o governo Bolsonaro ou servirá apenas para esquentar a campanha do Lula Livre? Ainda há muita água para correr sob a ponte. Mas as forças políticas se movimentam e tudo pode acontecer. 

domingo, 16 de junho de 2019

A Maria Fumaça

A Maria Fumaça

O minuano

A estação de São Borja

Corriam os anos 1960, finalzinho já. Meu pai ainda não tinha comprado seu primeiro carro, que foi um fusca branco, e só chegou em 1972. Então, a única maneira de viajar para Uruguaiana, onde íamos ver os avós, era de trem. Quando o pai avisava sobre a viagem, o mundo vibrava em mim. A viagem era alguma coisa mágica, indescritível e, hoje, penso que vem daí essa minha fome por horizontes. 

Chegar à estação era como descortinar outro mundo. Nos trilhos, fumegava a Maria Fumaça, negra como a noite, com suas bolas de fumaça ora brancas, ora pretas, e nos embalaria por horas a fio naquele tranquito familiar, troc, troc, troc, nos trilhos. Pela janela passavam os campos sem fim e, neles, as emas, com sua correria louca, tentando vencer o trem. E a gente passava de vagão em vagão, imitando as emas, no saltitar. Era uma festa. Lembro que meu coração parecia bater no mesmo compasso que a enorme Maria Fumaça e curiosa, me postava no caminho dos homens que enchiam sua boca enorme de carvão. Era uma aventura épica.

Quando vieram os anos 1970, a Maria Fumaça deu lugar ao Minuano, um trem moderno, construído lá na Alemanha. A enorme máquina vermelha já não comia carvão, era movida à diesel. A magia da viagem já não era a mesma. Lembro que toda a gente saudou a chegada do Minuano, pois a viagem ficaria mais rápida. Eu chorei. Desde pequena avessa ao progresso. E na primeira viagem que fizemos no novo trem o meu coração já batia no descompasso. Sem a fumaça, sem os homens do carvão, sem o troc, troc, troc, até as emas pareciam desencantadas. Eu também perdi o gosto. 

Pouco tempo depois o pai comprou o fusquinha e nossas viagens passaram a ser de carro. Outras miradas, outras paisagens se descortinavam. Mas, quando chegava à ponte do Rio Ibicuí, meu coração sangrava. Ali permanecia intacta a imagem da velha Maria Fumaça, fosse na enorme armação de ferro, ou nos trilhos que ainda riscavam toda a extensão da ponte. E da janela do fusca eu quase podia ver a velha máquina gigante e negra, fumegando desesperada enquanto sacudia a velha estrutura sobre o meu rio do coração. 

Hoje já não há mais nem mesmo o Minuano e nas quebradas da fronteira poucas são as pegadas da velha ferrovia. Mas, mesmo assim, a Maria Fumaça ainda assombra minhas noites, quando seu apito me desperta, chamando para o embarque. Viajar, descortinar paisagens, encontrar as gentes e as histórias. Ah, que incríveis universos paralelos naqueles trilhos que cruzavam a pradaria, os campos sem fim da pampa. Maria Fumaça, companheira rumorosa das aventuras que começaram dentro do seu corpo agigantado e nunca mais se perderam de mim.