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quarta-feira, 2 de abril de 2014

Caminhada pela verdade















O dia primeiro de abril em Florianópolis foi um dia de verdades. Depois de muito tempo, os mais diversos grupos de esquerda que atuam na cidade marcharam juntos para repudiar o golpe cívico-militar de 1964. Vieram os comunistas, os socialistas, os anarquistas, os trotskistas, os torturados, os estudantes, o povo da ocupação Amarildo, os indígenas, o MST, a CUT, a CTB, a Conlutas, os partidos políticos do campo da esquerda e os jovens que ainda buscam caminhos. Todas as divergências que muitas vezes separam, deram lugar a uma única convergência: um não sonoro à tortura, ao terror e ao estado de exceção que o Brasil viveu por longos 20 anos. Foi um dia de lembranças amargas, mas também de esperanças, de que nunca mais esse país venha viver o que já passou.

À frente da marcha ia uma mulher pequena, de rosto quadrado e olhos que sorriem. Era Derlei Catarina de Luca, professora e militante do grupo Tortura Nunca Mais, uma das tantas pessoas que, nos anos de chumbo, viveu a terrível experiência de ter seu corpo torturado por dias e dias. "Eu fui presa pela Operação Bandeirante, naqueles dias eu militava no grupo Ação Popular. Eles buscavam por uma mulher chamada Maria Aparecida Costa, e achavam que ela era eu. Por dias eu fiquei no pau-de-arara, tomei muito choque. Eles não acreditavam que meus documentos eram verdadeiros. Pensavam que Derlei era o meu nome de guerra. Depois de dias de tortura eles tiraram as minhas digitais. Eu pensei: estou salva. Porque no Dops ninguém tirava digitais, já que seria uma prova de que a pessoa tinha passado por ali". Falar sobre a tortura é algo que ultrapassa a condição humana. Quem viveu esse horror prefere calar. Por isso, tanta dor acaba acumulada. 

Derlei escreveu um livro, "De Corpo e Alma", onde expõe essa chaga aberta da nossa história e que vive no seu próprio corpo. "Foi uma catarse e também uma necessidade. A guerrilha urbana, a preparação da guerra popular, a guerrilha do Araguaia, o sequestro de diplomatas, as reuniões clandestinas, a publicação de jornais e folhetos, a solidariedade pura e simples aos combatentes, a campanha pela anistia, foram táticas diferentes empregadas por diferentes grupos e revelam o espírito aguçado do povo brasileiro, destroem o mito de povo pacífico e constituem uma formidável história de luta. As novas gerações precisavam saber de tudo isso e eu precisava contar".

E foi essa mulher valente, que insiste em manter viva a lembrança de todos os caídos, que conduziu a marcha que serpenteou pela cidade, mostrando os lugares onde se expressou o terror de um regime que matou e violou todos aqueles que pensavam diferente. 

A caminhada começou na sede da União Catarinense de Estudantes, onde nos anos da ditadura se concentrava a luta estudantil. Foram os estudantes brasileiros os que primeiro se levantaram contra o golpe, em manifestações e batalhas, e de suas fileiras saíram os mais frutíferos militantes das organizações clandestinas que passaram a lutar com mão armada contra o regime militar. Assim, foi simbólico que a marcha começasse ali, depois de uma bonita performance teatral que sujou de vermelho-sangue as pedras do pátio. Era o sangue de todos aqueles que caíram nos porões, sob as mais terríveis torturas, por terem decidido lutar pela liberdade.

Em seguida, o povo saiu pelas ruas do centro da cidade, contando para a população sobre a verdade daqueles dias. Na porta das lojas, rostinhos juvenis vinham espiar, escutando curiosos uma história de sangue e terror. "A gente quase não estuda nada sobre isso no colégio", disse uma vendedora de olhos arregalados. Ela tem razão. Pouco se fala da tortura, bem como do que aconteceu na cidade de Florianópolis nos anos de chumbo, com a terrível Operação Barriga Verde, a partir da qual 42 militantes comunistas foram presos e passaram por torturas terríveis. Foi um tempo em que os aliados do golpe, ligados à UDN,  também aproveitaram para matar os inimigos políticos, como foi o caso do prefeito de Balneário Camboriu, Higino João Pio. Seu único crime foi o de ser amigo de João Goulart. Por conta disso, o carimbaram como "comunista" e o prenderam acusado de "irregularidades administrativas". Poucos dias depois ele apareceu morto na cela, enforcado, num caso muito parecido com o de Vladimir Herzog.  Para a família, alegaram ser suicídio. Não foi. O mataram.

A marcha percorreu a movimentada Conselheiro Mafra e parou em frente ao que hoje é a farmácia Catarinense. Ali, nos anos da ditadura, funcionava a Livraria Anita Garilbaldi, gerenciada pelo escritor Salim Miguel. Por ser o escritor ligado ao Partido Comunista, as autoridades locais decidiram queimar todos os livros da livraria, numa operação grotesca de violência e ignorância, típica dos regimes de força. Os livros foram tirados da livraria e queimados na calçada, enquanto as pessoas silenciavam cada dia mais. Os "perigosos" volumes continham obras da literatura mundial, sociologia, história, economia e política. Arderam porque poderiam gestar vozes críticas. 

A caminhada seguiu depois para a frente do prédio da Faculdade de Educação (FAED), onde naqueles dias de chumbo funcionava a sede do Quinto Distrito Naval, que tinha o serviço secreto mais eficiente do Brasil, o  Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Todas as informações relacionadas aos então chamados "subversivos" estavam ali registradas e, ao longo da ditadura, o Cenimar extrapolou das suas funções chegando a prender e torturar militantes, com a mesma violência usada pelo temível DOI-CODI. Era uma fonte importante de informação, cujos arquivos até hoje não foram totalmente abertos. E, para lembrar os mortos de desaparecidos catarinense, as gentes na marcha foram dizendo os nomes daqueles que ousaram lutar. Arno Preis! Presente! Frederico Eduardo Mayr!  Presente! João Batista Rita! Presente! Luis Henrique Tejeda Lisboa! Presente! Paulo Stuart Wrigth! Presente!... E tantos outros, cujos corpos nunca foram encontrados mas, que vivem na lembrança dos companheiros. Nunca esquecidos! Vivos, portanto...

E lá se foi a marcha da verdade, da memória e da justiça, juntando velhos e novos militantes numa única vontade. Re-cordar, passar de novo pelo coração, para que nunca mais torne a acontecer. A próxima parada foi em frente ao Palácio Cruz e Souza, hoje um museu, mas que nos anos da ditadura era sede do palácio do governo. Foi ali que a gente de Florianópolis acendeu o pavio da grande virada democrática com a histórica "novembrada", a revolta popular que encurralou o presidente João Figueiredo e o governador Jorge Borhausen. Comandada pelos estudantes da UFSC, muitos dos quais acabaram presos, a novembrada apontou o rumo para um tempo novo, no qual as pessoas pudessem outra vez falar, atuar politicamente, sonhar com novas formas de organizar a vida. Ali, já no cair da noite, essa luta foi lembrada por Marize Lippel, uma das estudantes presas naquele conflito.   

A caminhada encerrou na Esquina Democrática, espaço histórico da luta social em Florianópolis. Muitas falas emocionadas, muitas canções, e muita alegria. Porque apesar da dor por todos aqueles que tombaram, pelos desaparecidos, pelos que ainda hoje sofrem as sequelas das atrozes torturas praticadas pela repressão, há que celebrar a vida que toda essa gente semeou, tornando possível a claridade de um tempo novo, a democracia, ainda capenga, ainda incompleta, ainda insuficiente. Mas, não fossem eles, estaríamos ainda vivendo as trevas do medo, do silêncio cúmplice, do terror. 

Porque nunca é demais  lembrar que a ditadura vivida no Brasil não foi uma coisa isolada. Ela fez parte de uma política dos Estados Unidos para a América Latina, que visava impedir que se espalhasse pelo continente a boa-nova da vitoriosa revolução cubana. Essa luta na ilha caribenha mostrava que era possível vencer o império, que era possível garantir soberania, que era possível repartir as riquezas do país com todos, e não só com alguns. Mas, a grande nação do norte queria seguir dominando, então criou a famosa "Operação Condor", que plantou ditaduras em  vários países da América Latina. Nos vizinhos Paraguai, Uruguai e Argentina, milhares de vidas também foram ceifadas. Os militares desses países foram treinados para praticar as mais horrendas torturas e, com elas, impor, regimes de força e opressão.
Esse treinamento, feito pela também temida Escola das Américas, até hoje sobrevive nas cartilhas militares de todo o continente, sendo ainda responsável pelas práticas de tortura que seguem sendo feitas nas milhares de cadeiras e quartéis desse país e dos demais da América Latina. Basta citar o emblemático caso do pedreiro Amarildo, embora milhares de anônimos sigam sofrendo nos porões. 

Essas verdades duras, essas verdades nuas, caminharam também pela linda Miembipe, a Desterro da gente, a Florianópolis de hoje. E junto com a multidão que marchava iam os nossos mortos: Adolfo, Paulo Wrigth, Higino, Luis, Maria, Sônia, Mosquito, homens e mulheres que pavimentaram com sangue nosso presente de liberdade. Por isso que, ao final de tudo, foi armada uma ciranda. Braços dados, mãos apertadas, corações pulsando, canções. As velhas e as novas gerações, unidas, num átimo de convergência, para  dizer "nunca mais, nunca mais".

E esse primeiro de abril se fez, de verdade, memória, justiça. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Ocupação Amarildo começa nova fase: SPU diz que as terras são da União








Quando o pedreiro Amarildo de Souza, morador de uma favela do Rio de Janeiro, entrou naquele camburão que o levaria para a morte talvez já estivesse ciente de seu destino. Pobre, negro, rebelde, perguntão, impaciente com a dureza da vida, deve ter intuído que tudo se acabaria nas mãos de uma polícia que não tem por princípio a defesa do cidadão. Mas não. Sua morte sob tortura, seu corpo desaparecido, seus olhos graúdos de espanto, semearam um movimento nacional de solidariedade e desejos de justiça. Hoje, na longínqua cidade de  Florianópolis, no sul do Brasil, ele é o nome que impulsiona uma luta inédita, de gigantescas proporções, que está colocando em cheque nomes e fortunas até então jamais questionados.

Amarildo de Souza é como foi batizada uma ocupação de terra improdutiva no norte da ilha de Santa Catarina. São 900 hectares de terra vazia, à beira do Rio Ratones, que já foi uma espécie de celeiro da ilha, com plantação de feijão, mandioca, batata e hortaliças. Isso sem contar a generosa produção de peixe, ofertada pelo rio, piscoso demais. Bem próximo a uma badalada praia de alto padrão - Canasvieiras - o acampamento fincou suas primeiras barracas no dia 17 de dezembro de 2013.  Eram apenas 60 famílias, premidas pelos altos aluguéis da famosa "ilha da magia", que propagandeia suas belezas por todo o país, mas só aceita moradores "nobres". Aos pobres, o que se oferece é uma passagem de volta para casa. Mas, gente há que vem de longe e exige seu espaço de cidadão da cidade. "Somos todos brasileiros, qualquer lugar é nosso lugar". 

Quando chegou o natal de 2013, mais gente já tinha se somado à insólita ocupação. E quando 2014 despontou já eram mais de 700 famílias montando suas tendas, trazendo seus poucos pertences, seus bichos e suas crianças. A ocupação Amarildo abriu um espaço de esperança para centenas de pessoas que não tinham mais como comer e morar ao mesmo tempo. 

A reação da cidade foi de espanto. Para quem estava acostumado a paisagem bucólica do caminho para Canasvieiras, aqueles barracos de lona eram uma provocação. Mal sabiam que os verdes campos de mato baixo logo seriam derrubados para um empreendimento milionário de um novo Campo de Golfe. Até então o que se sabia era de que aquela terra toda pertencia a uma empresário local, Artêmio Paludo, que há muito tempo tentara criar ali uma fazenda de camarões, sem sucesso. O negócio faliu e tudo ficou abandonado. Agora, o projeto para a área era esse campo de golfe, espaço de diversão para gente rica, que daria mais dinheiro a quem já tem. Foi com essa conjuntura que a ocupação foi armada. Terra sem cumprir sua função social, diz a Constituição brasileira, é passível de reforma agrária. E, também como diz a lei, uma terra serve à reforma agrária independentemente de estar na área rural ou na cidade. 900 hectares é uma latifúndio, e se não produz, há que se destinar.  Assim, as famílias que entraram na área vieram com essa intenção. Morar e plantar, produzir comida. No centro da luta estava a reforma agrária. 

Já no mês de janeiro, passado o susto e as festas, a reação da elite florianopolitana se fez notar através de suas bocas alugadas na imprensa. Jornalistas raivosos começaram a algaravia de sempre: são bandidos, são favelados, são ladrões, vão trazer insegurança para o bairro que é nobre, estão quebrando um princípio sagrado de não respeitar a propriedade privada. Na verdade, esses jornalistas estavam defendendo o "sagrado" direito dos ricos proprietários, que agora já se sabia, incluía outros sócios como o Grupo Habitasul e o dono do complexo do Santinho (condomínio de alto luxo). E foi assim que começou a reação aos "favelados" que ousavam se apropriar de terra de gente de bem. Durante semanas, as notícias nos meios massivos e nos pequenos jornais de bairro que são financiados por partidos de direita ou empresários, derramaram todo o seu show de preconceito e desinformação.

Mas, a ocupação Amarildo, sem querer, mexeu num vespeiro bem maior do que se podia imaginar. Na tentativa de expulsar as famílias o então suposto proprietário da área entrou na Justiça exigindo a desocupação. Para isso, a justiça precisou pedir a ele as provas de sua propriedade sobre a terra. Não havia. Depois de muitas semanas ele conseguiu apresentar as escrituras de apenas 9 dos 900 hectares que dizia serem seus. Mais tarde, mesmo esses nove hectares foram colocados sob suspeita, uma vez que a certificação em cartório tinha se dado na época em que ele ocupara o cargo de Secretário de Agricultura do Estado. Isso podia significar grilagem de terra, em função do poder do cargo. A confusão estava armada. Ponto para Amarildo. Sem provas de propriedade, e com os títulos sob suspeição, não houve despejo.  

Ainda assim, nos dias em que a Justiça ainda não sabia da grilagem, uma reunião de conciliação entre acampados e o suposto proprietário acertou a saída das famílias nos primeiros dias de abril. Esse acordo agora está sendo considerado sem valor, uma vez que as terras não são do empresário. Por conta disso, novas frentes de luta se abrem e os "amarildos" (como são chamados os ocupantes) disputam nos órgãos competentes o direito de permanecerem na terra e seguirem com o projeto de agrovilas.

Uma reunião histórica

E foi para ouvir a resposta de vários órgãos do Estado sobre essa questão que a Assembleia Legislativa abriu suas portas nesse dia 19 de março, em reunião convocada pela Comissão de Direitos Humanos, com a presença dos deputados Luciane Carminati, Angela Albino e Sargento Soares. Além deles, também vieram representantes da Justiça Agrária, da Secretaria do Patrimônio da União, Ministério Público, Procuradoria Federal e Municipal, Ouvidoria do Incra e Instituto Chico Mendes. Era o momento de saber, oficialmente, a resposta da SPU sobre de quem eram, efetivamente, as terras que estavam servindo de morada a todos os amarildos.

Assim, eles vieram com suas camisetas vermelhas, bandeiras, crianças, faixas, músicas e aquele sorriso na cara de quem acredita estar numa luta justa. Quando bateu cinco horas, pelo menos umas 300 pessoas já estavam em frente a Assembleia. Queriam entrar e ver com os próprios olhos tudo que seria discutido ali. Depois de muita conversa, a casa do povo finalmente decidiu que o povo podia entrar. Mas, como ali estavam os pobres, tiveram de passar pelo constrangimento da revista policial, abrindo suas bolsas, braços e pernas para a passagem do detector de metais. Algo jamais feito quando são empresários ou pessoas brancas e bem vestidas. Tudo, bem, o pessoal aturou mais essa, fazendo piada e levando na flauta. Organizados pela equipe de segurança foram entrando, um a um, e ocupando as cadeiras do auditório Antonieta de Barros. Uma imagem simbólica, já que a professora Antonieta foi a primeira mulher negra a assumir um cargo de deputada. E seu retrato, no alto da porta, sorria para os amarildos, a maioria seus irmãos de cor e de luta. Ali se daria uma batalha histórica. Sem armas. Com canções e palavras de ordem. 

Auditório cheio, vieram as falas. Os deputados, reafirmando a ideia de que morar é um direito humano. O jovem juiz agrário, Rafael Santi, que já visitou o acampamento várias vezes, deixou claro que a área em Canasveiras tem todas as características de um imóvel rural, podendo, portanto, se prestar à reforma agrária. Segundo ele, esse é movimento que não tem precedentes em Santa Catarina - uma ocupação rural, na cidade -  e, por isso, no início, a justiça ficou confusa sobre como proceder. Mas, agora, não resta dúvida de que essa questão deve ser tratada no âmbito da Justiça Agrária. Em seguida, o ouvidor do Incra, Fernando Souza, também reafirmou a possibilidade de o Incra atuar no acampamento criando um projeto que já existe no âmbito do órgão agrário, que é o Projeto Casulo, justamente o plantio coletivo da terra, como querem as famílias da ocupação Amarildo. A fala mais esperada, da superintendente da SPU, Sílvia de Luca, foi curta e incisiva: as terras são da União. O único entreve para ocupação seria a questão ambiental. Afinal, ali existem mangues e restingas que são de preservação permanente. Mas, o representante do Instituo Chico Mendes, deixou claro que há espaço para ocupação e utilização da área, principalmente se for de uso coletivo.

Ao final do encontro, diante da posição de todos os envolvidos, ficou a certeza de que existem todas as chances de a ocupação garantir o espaço para a vida de todas as famílias que hoje lá estão. A terra é da união, tem espaço para utilização, é passível de desapropriação para a reforma agrária. Ainda existem muitas portas burocráticas a serem abertas, mas quem vê os olhos cheios de eternidade de cada uma daquelas pessoas sabe que toda a espera valerá a pena. Para as bocas alugadas da imprensa fica a lição: antes de sair em defesa esganiçada de um de seus amigos, sempre é bom buscar a informação correta. Se houve alguém que "passou a mão" nas terras públicas, não foram os amarildos. Eles e elas reivindicam hoje um direito humano, de ocupar um espaço de terra para morar e plantar. A propriedade da terra é do Estado e as possibilidades estão dadas. Mas, ainda que fosse uma propriedade privada, também poderia ser questionada. Em várias situação, dentro do estado liberal, a propriedade privada por ser desapropriada, ela não é intocável, como querem fazer crer os pretensos  defensores da lei. A própria lei diz que uma área privada pode ser usada para uso coletivo, público, ou desapropriada quando não cumpre sua função social, ou quando mantém gente em trabalho escravo. 

Na noite chuvosa desse 19 de março, pode-se ouvir o leve arrastar de chinelos de Mara Dilci Tavares, uma senhora de 74 anos, chamada, carinhosamente, por toda a gente da Amarildo, de "vózinha", que se converteu na figura símbolo da ocupação, por sua força de luta e pelo desejo inarredável de terminar a vida numa casa que pode chamar de sua, e numa comunidade onde uma mulher velha pode viver sozinha, sem nunca estar só. Amparada pelo braço de uma jovenzinha, ela se foi, sorrindo. Com ela, a esperança, dançando, graciosa. E talvez, também Amarildo que, com seu sangue, pavimentou a realidade de todas essas vidas. 

Amarildo, vive!


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Direitos humanos, uma verdade desconfortável





Pode parecer um paradoxo, mas o fato é que o mundo precisou, há 64 anos, criar uma declaração de direitos humanos. Isso porque, ao final da segunda grande guerra na Europa, as pessoas perceberam, estarrecidas, que havia seres humanos capazes das coisas mais atrozes contra outros seres humanos. Foi o caso do holocausto judeu imposto pelo nazismo. Mas, não só isso, houve também o massacre de Hiroshima e Nagasaki, com a bomba atômica lançada pelos estadunidenses, num momento em que o Japão já estava praticamente rendido. E, em vários outros pontos do mundo também havia gente capaz de torturas e outras violências indizíveis. Então, todo esse terror fez com que a nascente Organização das Nações Unidas, criada em 1945, estabelecesse uma norma para evitar que as gentes no planeta seguissem sendo vítimas da violência e da dor. Assim, no 10 de dezembro de 1948, a ONU lança a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ali, os países membros assumiam o compromisso de garantir à família humana o direito de viver com dignidade, liberdade e paz. Também declaravam que esses direitos deveriam ser protegidos pelo Estado  sob pena de as pessoas serem compelidas, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão.

Assim, nos 30 artigos que conformam a declaração estão elencados os direitos que devem ser gozados por qualquer ser humano, seja ele branco, negro, amarelo, azul ou vermelho. Seja bom ou seja mau, pobre ou rico, ou de qualquer religião. A cada um deve ser assegurada a igualdade de direitos, a fraternidade, liberdade, segurança pessoal, igual proteção da lei, proteção contra a discriminação, garantia de um tribunal independente e imparcial quando responder qualquer acusação criminal, ser considerado inocente até que seja provado o contrário, proteção contra qualquer interferência na vida pessoal que signifique ataque à honra, direito de locomoção, à nacionalidade, a buscar exílio se perseguido, direito à liberdade de pensamento, opinião e expressão, direito à livre associação,  à segurança social,  ao trabalho, ao salário justo, repouso, lazer, alimentação, vestuário, educação, cultura.

A declaração também garante que ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão, ninguém pode ser submetido à tortura nem tratamento cruel, e ninguém poderá ser arbitrariamente preso. O texto, de certa forma, ampara a pessoa em praticamente tudo o que é essencial á vida. E mais, garante o direito de receber dos tributos nacionais o remédio efetivo para os atos que violem esses direitos fundamentais.

É com base nisso, portanto, que as famílias dos desaparecidos da ditadura militar  seguem exigindo do governo os corpos de seus entes queridos, entendendo, inclusive que eles não cometeram crime algum. Pelo contrário, aqueles que se levantaram contra a ruptura da ordem provocada pelos militares em 1964, estavam exercitando o seu direito inalienável de rebelião contra a tirania, como a própria declaração dos direitos humanos assegura. Naqueles dias em que o poder militar rasgava a Constituição e a própria Declaração dos Direitos Humanos, meninos e meninas, professores, camponeses, sindicalistas, militantes sociais foram presos, torturados, mortos ou desaparecidos. Sofreram as violências mais vis e muitas famílias sequer tiveram o direito de chorar os seus mortos. Os corpos nunca foram encontrados, não há sepultura, não há certezas. Só a dor profunda que, hoje, segue exigindo o direito humano de exigir do estado "o remédio efetivo para os atos que violaram esses direitos".

Aqueles que compactuaram com a violência e a tortura da ditadura militar, ou os que são capazes de desejar todas essas crueldades aos "outros" seguem disseminando o discurso de que os que padeceram sob o jugo do estado na ditadura militar eram bandidos. E se fossem, mereceriam a tortura? Cabe a um homem infligir dor a outro? Já não foi superada a lei do talião, do olho por olho, dente por dente? Pois parece que não, uma vez que a tortura e a violência seguem sendo praticadas nas prisões, nas guerras, e nas periferias.

É, porque também pode ser torturante não ter casa para morar, não ter comida, segurança ou um trapo para cobrir o corpo. Tudo isso é violência, da mais atroz. Mas, ao que parece, muitos dos que gozam da possibilidade de ter um trabalho, um salário, uma casa e vida digna, preferem imputar ao outro, ao que nada tem, a etiqueta de "vagabundo", "bandido" , "baderneiro", "terrorista" e, assim sendo, estaria liberado a ele toda a sorte de sevícias.

Mas, para os que militam pelos direitos humanos, mesmo o bandido, o vagabundo, o caído, ainda segue sendo humano e, portanto, merece ser tratado como tal. Seus crimes, se houverem, serão punidos. A violência, a tortura, a sevícia não trará de volta os que morreram, não mudará os fatos, não aplacará a dor. É certo que ainda é longo o caminho para a beleza, para um mundo onde não seja necessário que exista uma lei que puna aqueles que violentam seus irmãos. Só que enquanto esse tempo não chega, as famílias de desaparecidos, os sem casa, sem terra, sem trabalho, sem espaço no mundo capitalista, seguirão lutando, esgrimindo a lei, que é o que se pode ter agora.

E àqueles que insistem em achincalhar a luta pelos direitos humanos, dizendo que só se defende bandido, que fiquem alertas, porque como diz a canção do Chico, uma belo dia podem se ver na condição daqueles que tanto discriminam. A vida é uma roda, que gira sem parar, ora estamos aqui, ora ali, ora em cima, ora em baixo. Por isso, o melhor é defender a vida, seja de quem for, homens, mulheres, animais, plantas. Porque só vale a pena viver se todos a nossa volta têm vida plena. É bom para nós e para eles. Então, ainda que tantos não queiram, seguiremos em caravana no deserto dos amores humanos...

domingo, 5 de agosto de 2012

Paulo Wrigth, estrada de liberdade


Sim, tenho esse privilégio. Assim como o guri do “sexto sentido”, eu também vejo gente morta. Mas é porque, como dizem os sandinistas, hay muertos que nunca mueren. E, esses, nada, nem ninguém, conseguem enterrar. Penso que são assim os que caíram nos tristes anos de ditadura militar. Os vejo por aí, nas ruas, cabelos ao vento, voz retumbante, como nos dias em que andavam a lutar por tempos de claridade. Por mais que uns e outros tentem varrer para debaixo do tapete as lembranças e as memórias dos anos de chumbo, elas assomam, impávidas, porque é preciso lembrar, sempre.

Dia desses vi o Paulo, nas ruas do centro. É, o guri de Joaçaba, filho de missionários, cristão rebelde, incapaz de calar diante da dor do outro. Paulo, que trabalhou na construção civil, na fábrica, que viu seu primeiro filho morrer por falta de assistência médica, que estudou, que fundou sindicatos e cooperativas, e se fez deputado estadual nesse estado de Santa Catarina. O Paulo, que ajudou a fundar a federação dos pescadores para que os homens do mar pudessem ter o controle do trabalho que faziam. O Paulo, que foi cassado no regime militar porque tinha a boca grande, não usava gravata e era apontado como “comunista”. O Paulo que amargou a clandestinidade em luta pela liberdade e pelo ideal cristão de amor ao próximo e ao distante. O Paulo, aquele homem bonito de olhos penetrantes e topetinho rebelde, assassinado em algum porão porque decidira lutar contra a violência de um regime de exceção.

Ao reconhecê-lo, sorri, e ele me devolveu o riso. Caminhamos num silêncio cúmplice, lado a lado, até a praça, onde sentamos sob a figueira. “Soubesse da última?”, perguntei. E ele jogou a cabeça para trás numa risada gostosa. “Então, fui cassado outra vez!”. É, um deputado desses dias, Gilmar Knaesel, tentando apagar outra vez a memória do Paulo. Já não bastaram tantos anos de silêncio, de olhares furtivos e murmúrios de “terrorista, terrorista”. Não! Era pouco. Havia que desaparece-lo outra vez. Como se fosse possível.

Paulo Stuart Wrigth sumiu nos primeiros dias de setembro de 1973, sequestrado de um trem pelo II Exército e levado para o malfadado DOI-CODI de São Paulo onde provavelmente foi assassinado e desaparecido. Dele, os colegas de cárcere só viram a blusa, caída no chão. Nunca mais se ouviu seu riso ou sua voz trovejante contra as injustiças do mundo. E desde aquela primavera a família busca seu corpo. Foram anos de lágrimas, de silêncios e de dor. Pouco a pouco, com o fim da ditadura, as histórias dos porões afloraram e os desaparecidos voltaram a gritar. Não havia corpo, mas havia memória. E elas vieram em borbotões. Nos livros, nos filmes, na televisão.

Com a história revisitada, aqueles que eram apontados como terroristas passaram a ser vistos como pessoas que tiveram a coragem de ser quem eram: jovens cheios de amor pela vida, pela liberdade, pela verdade, pela justiça. Gente que ousou enfrentar as armas do estado ilegítimo para que cada um pudesse ter o direito de dizer a sua palavra e clamar pelo mundo que acreditava melhor. Gente que foi torturada, que foi assassinada e escondida, para que suas ideias não voassem. Mas, voaram...

E foi assim que Paulo Stuart Wrigth voltou à vida. E aqueles que o acusavam de terrorista tiveram de olhar a verdade. Não o era. Era um jovem cristão, cheio de indignação: "...Diante de tanta injustiça e miséria que vemos no mundo e da opressão generalizada aos necessitados, proclamar-se inocente é inconcebível para quem buscar servir a Cristo. Querer ser inocente é aceitar as regras da injustiça, é aceitar passivamente a opressão, é não ter feito nada pelos que sofrem. Creio que é impossível ser cristão e não ser subversivo da ordem vigente, de ser fiel a quem trata de derrubar toda a autoridade, como nos fala São Paulo”, era o que dizia a sua esposa Edi, numa carta escrita em 1970.

Em Santa Catarina, há bem pouco tempo Paulo virou nome de estrada. Uma estrada pequena, perdida entre a BR 101 e a cidade de Penha, mas que, assim como ele, seria importante caminho de ligação das gentes do lugar. Talvez por isso – por ser caminho - ainda tenha quem queira escondê-lo, tirá-lo de cena. E, assim, criou-se um projeto de lei trocando o nome da estrada, de Paulo Wrigth para Francisco Fleith, ex-prefeito do lugar. Alguns disseram: “bobagem, deixa isso pra lá. Paulo nem haveria de querer ser nome de estrada”. Mas a questão não é essa! O que está em jogo é a memória. Por todos os lugares se perpetuam os nomes dos opressores, dos vendilhões, dos poderosos. Precisamos ocupar esses espaços de memória com a lembrança dos nossos.

E foi essa a conversa que tivemos Paulo e eu, naquela tarde, na Praça. “Tu tens razão, gosto de saber que alguém vai dizer: venha pela Paulo Wrigth e dobre à esquerda. Ali está o jardim”, ele disse. “Venha pela Paulo Wrigth”, repetiu, baixinho. “Pois, não é? Tu não tens corpo, mas és um caminho!”. Ele assentiu, satisfeito. “E como vai ser?” – Preocupa não, tá assim de gente fazendo abaixo assinado, falando, exigindo que o projeto seja vetado pelo governador. Ele sorriu e se preparou para andar... Devagarinho, se foi, o cabelo desalinhado pelo vento sul. E eu fiquei, sentindo a brisa, certa de que não há morte enquanto exista alguém se lembre. “Nós te lembraremos, Paulo”.

Os desaparecidos da ditadura, os meninos assassinados nas favelas, os arautos do tempo novo, essa legião de companheiros são as veredas por onde passamos nós, os que ainda sonham com um mundo melhor. Eles sempre serão caminhos e ninguém vai conseguir mudar isso...

“Creio que a fé cristã não se identifica com nenhum sistema particular. Ao mesmo tempo o homem pode ser socialista e os fatos dizem que muitos cristãos o são. Entendo que nós, como cristãos, temos a obrigação de reagir precisamente na hora que nos toca viver. No mundo de hoje se vislumbra uma coincidência entre as aspirações dos cristãos e dos socialistas quanto à vida humana, isto é, justiça e bem estar do homem”. (Paulo Wrigth).

 

terça-feira, 20 de março de 2012

Derlei de Luca fala sobre a Comissão da Verdade

O Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça e o Memorial de Direitos Humanos da UFSC convidam para o seminário “Assassinados pela ditadura: Santa Catarina”. O objetivo do evento é provocar o debate sobre o direito à memória histórica e também sobre a busca da verdade a respeito dos mortos e desaparecidos no período da ditadura militar. O momento é oportuno para a realização deste seminário, tendo em vista a aprovação da Lei Federal que criou a Comissão da Verdade e a necessidade de mobilizar iniciativas a nível estadual que acompanhem esse movimento, bem como criar o Memorial de Santa Catarina, conforme Lei aprovada na Assembleia Legislativa em março de 2012.


Palestrantes: Prof. Dr. Fernando Ponte de Sousa (MDH/UFSC); Prof. Ms. Luiz Fernando Assunção (UNASP, autor do livro “Assassinados pela ditadura: Santa Catarina”); Dr. Márcio Vettorazzi (presidente da Comissão da Verdade da OAB/SC); Procurador Dr. Mauricio Pessutto (representante do Ministério Público Federal).
O seminário é aberto à comunidade acadêmica e ao público em geral.

Local: Auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC, Florianópolis
Data: 21 de março (quarta-feira)
Horário: 19 horas

Veja entrevista com Derlei de Luca