quinta-feira, 18 de julho de 2019

As universidades públicas virarão empresas


O projeto Future-se apresentado pelo governo para as universidades federais pretende transformar essas instituições federais em empresas, trabalhando com conceitos como gestão e empreendedorismo. Segundo o ministro da educação a forma de inserção será por adesão, como foi a EBSERH, empresa privada gerindo os Hospitais Universitários. Mas, é claro, as universidades que não aderirem ficarão sem qualquer ajuda. Ou seja, não será uma opção, como tampouco foi opção a entrega dos HUS.

Na proposta as universidades serão gerenciadas por uma organização social totalmente fora do universo universitário que será contratada para administrar a partir de parâmetros empresariais. Ou seja, a universidade deverá ser uma empresa que gere lucro. Caso não, será descartada. 

Quem conhece a universidade sabe que hoje ela recebe muita verba privada. Cursos que atuam junto a empresas são sempre mais beneficiados, pois acabam realizando pesquisas que servem aos seus financiadores. Isso acontece muito na área técnica. Já a área de humanas, por exemplo, ou da comunicação e expressão, tem outra pegada. Não são cursos que vendem inovações ou serviços. Outros setores, como as licenciaturas, igualmente não são “lucrativos”. Que será deles? Um empresário entenderá essas particularidades? Obviamente não. 

Como no caso da EBESERH a lógica financeira será a de injetar dinheiro nas organizações sociais, que são privadas, deixando de mandar os recursos diretamente para as IFES. É uma proposta que visa fortalecer a empresa privada e não a pública. Na prática, a universidade ficará totalmente na mão da OS. 

O governo propõe a criação de um Fundo financeiro do qual o MEC poderá ser cotista, o que significa que outras empresas poderão se associar. Por outro lado, o MEC poderá entregar seus “lucros” para a OS que administra, caso entenda necessário. Ou seja, os ganhos serão todos das empresas. Educação precisará dar lucro. 

O que o governo chama de “governança” é a responsabilidade de cada universidade de vender seus produtos e arrecadar recursos para continuar existindo. Ou seja, professores, alunos e trabalhadores terão de ser “criativos” e encontrar formas de gerar lucro. O ensino será algo totalmente tangencial. Os Centros de Ensino criarão Sociedades de Propósito Específico, cujo “propósito específico” será ganhar dinheiro para continuar ganhando dinheiro. 

O projeto é um show de horrores que descaracteriza totalmente a ideia de universidade tal como a conhecemos. Aparentemente o objetivo de criar conhecimento, produzir ciência, promover o crescimento pessoal, está completamente fora da proposta. Tudo gira em torno da gestão. É a transformação da universidade em empresa, na qual professores e técnico-administrativos serão envolvidos num processo de produção privada. Sua função será a de criar produtos. Não há qualquer referência ao ensino, à educação, nada. 

De fato não há novidade alguma no projeto, pois antes das eleições já era sabido que a proposta do então candidato era a de destruir tudo o que fosse público. O que se vê, agora, é concretização de tudo o que já estava anunciado no plano de governo. 

O que surpreende é a incapacidade de reação por parte das entidades sindicais e movimentos sociais. Sem uma ação concreta e rápida contra mais esse ataque ao Brasil, a universidade afundará. 

A Andifes, associação que reúne os reitores das Universidades Federais, realizou uma conversa inicial com a imprensa, informando sobre o projeto, e o que se viu foi uma algaravia sobre a situação difícil das entidades e a necessidade de se encontrar saídas para a gestão. Nenhum rechaço, pelo contrário, a entidade acredita que é necessário encontrar caminhos para captar recursos. A posição foi de que a Andifes vai discutir, criar grupos de estudo, patati, patatá.  Nós já vivemos essa situação antes com a proposta da EBSERH e também vimos como tudo aconteceu. Na UFSC, por exemplo, a adesão, que foi rejeitada por toda a comunidade em mais de 70%, foi à votação no Conselho Universitário, numa reunião dentro da Polícia Militar, para evitar manifestações. E na maioria das universidades, apesar de a comunidade se manifestar contra, o projeto passou. 

Sobre a intenção do governo federal não resta qualquer dúvida: é entregar esse patrimônio nacional que é a universidade pública para a iniciativa privada. Com o andar da carruagem fica cada vez mais claro que no bordão “Brasil acima de todos”, Brasil quer dizer o mundo privado. Tudo para os ricos. Nada para os pobres. É tempo de agir. 


terça-feira, 16 de julho de 2019

Brasil, uma vertigem



Primeiro foi a reforma trabalhista que retirou direitos dos trabalhadores. Todas as vantagens para o patrão. Nada de carteira assinada, nada de multa por demissão sem justa causa, nada de incomodação na justiça, até porque a Justiça do Trabalho também se acabou. A propaganda era boa: o trabalhador estará livre, poderá escolher seus horários. Boa parte das gentes acreditou e vibrou. E veio o trabalho temporário, intermitente, sem qualquer vínculo. A uberização da vida. Todos os riscos são do trabalhador. E se ficar doente, tá morto. Porque se não trabalha no dia, não ganha. Não há direitos. 

Agora, já definida em primeiro turno, com todas as chances de ser mais uma estrondosa vitória no segundo, está pronta a reforma da Previdência. Toda a sorte de maldades contra os trabalhadores. Uma grande vitória para os empresários. Mas, para quem vive do trabalho a reforma é a destruição de sua velhice. Há que se trabalhar 40 anos seguidos para se pleitear uma aposentadoria que deverá ser 60% do que se ganhava na ativa, ou menos. Poucos conseguirão chegar lá. Para a maioria será o chicote da exploração até a boca da cova. 

E nem bem os brasileiros começavam a digerir a amarga derrota no parlamento, que foi comprado com emendas somadas em quase dois bilhões, o governo anuncia mais uma medida para arrebentar a vida dos empobrecidos. Pois o Ministério da Saúde rompeu contrato com os laboratórios que produziam remédios para serem distribuídos gratuitamente.  São 19 remédios que não mais serão disponibilizados pelos Sistema Único de Saúde, deixando na mãos mais de 30 milhões de pessoas que usam os medicamentos regularmente. Pessoas com câncer, diabetes e dependentes de transplantes.

A jogada é clara. A intenção do governo é acabar com os laboratórios públicos que produzem esses remédios a um custo bem mais baixo e passar a comprar os medicamentos das farmacêuticas transnacionais. Mais um golpe na produção nacional e a entrega de bandeja para os grandes conglomerados. O lema de “Brasil acima de tudo”  é mesmo para inglês ver. Ingleses, alemães, estadunidenses e toda a sorte de empresas estrangeiras que irão encher as burras. O ministro já disse que os pacientes não serão afetados porque os remédios chegarão. Pode até ser. Mas, o custo para o país certamente será triplicado.  Mais dinheiro escoando para o monopólio farmacêutico e pau nos laboratórios nacionais. 

Também na última semana circulou a notícia de que o governo já estava pensando em introduzir a mensalidade nas universidades públicas, o que será mais um golpe sobre a classe média e os mais empobrecidos. E se articula também o fim do Sistema Único de Saúde, de gratuidade universal, que é modelo para muitos países. O governo de Jair Bolsonaro  quer passar a régua entregando os recursos dos trabalhadores para os Bancos, as Farmacêuticas, os empresários do Ensino e os mercenários da Saúde. A intenção é de que tudo que é público se acabe. 

E, apesar de toda essa trama contra os brasileiros, a população ainda está paralisada, dividida entre os que aplaudem sua própria desgraça e os que não encontram como expressar de maneira coletiva a sua revolta. As reações são pontuais e esporádicas. A massa se move ao sabor dos factoides criados para encobrir o verdadeiro desastre que se aprofunda a cada dia. 

O Brasil vive mesmo uma vertigem, que começou no dia primeiro de janeiro e que ao chegar quase ao final de julho, ainda cega a maioria. 

Como a desgraça vai atingir primeiro os mais empobrecidos, a reação ainda deve demorar. Por enquanto restam alguns “Jeremias” que, tal e qual o profeta, gritam no deserto, apontando os horrores e chamando para a luta. Poucos dão atenção e ainda há marchas de apoio à destruição do país. Há os que só esperneiam no facebook, terreno do inimigo, e há os que sequer querem saber do que está acontecendo. 

É de amargar. E a vida mesma, vai esboroando. 





O pai e o trabalho


Meu pai sempre teve um grande apreço pelo trabalho. Fazia tudo com muito amor. Exagerava até. Mas sempre foi seu jeito de viver. Nunca soube ficar quieto. Creio que herdei isso dele. Quando teve de amargar um emprego mais burocrático (tinha sido radialista por muitos anos), não se conformou na vidinha apática. Tomou para si a tarefa de pagador dos trabalhadores do trecho, aqueles que ficavam nas obras das estradas. E nada o detinha. Nem as enchentes. Amarrava-se a uma corda e, com a mala de dinheiro na cabeça, atravessa os rios para entregar o salário daqueles que esperavam por aquele dia com muita ansiedade.

Quando virou chefe do almoxarifado decidiu estudar desenho técnico por correspondência. A gente ria dele, porque ele acreditava que poderia aprender com aqueles métodos tão antiquados. E foi dito e feito. As apostilas do IUB - Instituto Universal Brasileiro – chegavam semanalmente e ele se debruçava sobre elas depois da janta. Ficou craque e passou a desenhar as casas dos colegas, dos amigos, dos vizinhos. Lá na cidade onde morava devem ser dezenas as casas feitas por ele. Só parou quando foi atropelado e quebrou o ombro, o que dificultou para fazer os desenhos.

Depois de aposentado, sem poder ficar parado, se fez cobrador do dízimo da igreja. E todos os dias lá ia ele com seus envelopezinhos, de casa em casa, conversar com as pessoas, recolher o dinheiro e deixar um cartãozinho da santa, Nossa Senhora de Fátima, sua preferida.

Hoje, já velhinho, e com a memória pregando peças, ele ainda conserva essa sua mania de querer trabalhar. Volta e meia ele se inquieta:

- Mas eu preciso trabalhar. Tenho que ir trabalhar.

E por conta desse desejo começou a lançar mãos dos meus livros, que se espalham pela casa. Até que um dia rasgou um. Morri. Meus livros são o que tenho de mais sagrado. Tratei de matutar sobre o que fazer para ele não destruir meus amados.

Demorei, mas achei um jeito de garantir a ele o trabalho e salvar os livros. Reuni muitas revistas e repassei pra ele dizendo que era pra ele catalogar. Esse seria o seu trabalho diário. Deu certo. As revistas passaram a ser quase o centro do seu mundo. Todos os dias ele vira e revira os exemplares, lendo as manchetes, rasgando as folhas, colando de volta, colocando-as em fileira sobre a cama. É uma confusão. Mas, uma confusão boa. Ali, entre os papéis ele pode ficar horas. Às vezes, já é hora de dormir e eu digo:

- Vamos guardar isso, deixa pra amanhã. 
- Não, tenho de terminar hoje.

E ai de quem o tire de lá.


domingo, 14 de julho de 2019

Dos horrores cotidianos



O transporte coletivo de Florianópolis nos desumaniza. É de chorar. Agora mudaram todas as plataformas no Ticen e tá uma baita confusão, porque tem muita gente que não sabe. Hoje foi assim. Nosso ônibus para o Tirio já estava saindo e entra esbaforido um jovem negro. Senta do meu lado. Assim que o ônibus sai da plataforma e segue em frente em vez de virar ele põe a mão na cabeça, meio desesperado.

- Pra onde vai esse ônibus? Pro Tirio, respondo.
- Meu deus, meu deus, não é pra lá que eu vou. A voz com sotaque mostrava que ele não era daqui. Então eu falei, corre lá e pede para o motorista parar, antes de sair do terminal. Ele foi lá pra frente e pediu. O motorista não abriu. Disse que não podia. Eu comecei a gritar também. “Porra, deixa o cara descer. Vai ter que ir até o Rio Tavares”. Era o direto. O motorista impassível.

Os demais passageiros mantiveram silêncio.

O rapaz voltou para o meu lado, com os olhos brilhando de lágrimas. Iria perder a entrada no trabalho. Ir até o Rio Tavares e voltar daria uma hora ou mais, conforme o trânsito. E ainda tinha que ir até o continente. Não teve jeito.

Sei que os motoristas não podem parar em qualquer lugar, mas porra, estava parado no sinal. Não iria fazer diferença. E também que se fodam os fiscais. A prioridade tem de ser o ser humano. Mas, o motorista não abriu a porta. O jovem é do Haiti, ainda se adaptando na cidade. Era óbvio que ele era estrangeiro. Haveria que abrir a porta.

Quando o ônibus parou no terminal depois de mais de meia hora, ele saiu correndo, rumo ao outro direto que voltava para o centro. Eu fiquei ali parada, vendo ele entrar e sentar. Ele me acenou, de novo alegre. E eu comecei a chorar sem parar. Não sei se era por ele, pela insensibilidade do motorista, porque o Mazinho encantou, porque ando em pedaços. Sei lá. Só sei que a vida podia ser mais afável. E as pessoas também. Não custa nada. Porra de gente ruim! E entre lágrimas, fui rogando maldições.