terça-feira, 14 de junho de 2022

40 anos no jornalismo






Foi num dia 14 de junho de 1982 que tive registrado meu primeiro emprego formal no jornalismo. A anotação era locutora-entrevistadora, mas a função cumprida era de repórter. Hoje, celebro então 40 anos nessa profissão. Uma vida inteira correndo atrás da notícia, da informação de qualidade, da análise do dia. Desde bem pequena eu tive esse sonho de ser jornalista, imagino que por conta do exemplo do meu pai. Minha brincadeira favorita era andar com um gravador e microfones feitos de papelão, fazendo entrevistas. O rádio me fascinava, e ver meu pai nas coberturas noticiosas,  ou de futebol e carnaval era minha alegria. “Vou ser como ele”. Eu morava em São Borja e o caminho natural seria terminar o ensino médio e fazer faculdade em Santa Maria. Era o planejado. 

Mas, a vida dispôs. Meu pai perdeu tudo, teve de migrar para Minas Gerais e a família toda precisou se mover para lá em 1977. Um novo estado, nova cidade no interior das Geraes, pobreza, sem condições de pensar em faculdade.  O caminho agora era arrumar um trabalho e ajudar o pai a sustentar a casa. Guardei o sonho no fundo do coração. O tempo passou e meu tio se ofereceu para me pagar um cursinho em Belo Horizonte. Mas, ele esperava que eu cursasse engenharia. Nóóó... muito longe do meu querer. Fiquei lá por um ano, não fiz o vestibular de engenharia e voltei para Pirapora, disposta a fazer um concurso para o Banco do Brasil. Fiz a inscrição e, no dia da prova, cheguei até a porta do colégio e não entrei. Eu pensei comigo: vou passar nessa porra, e aí? Nunca mais saio do banco. Foi uma surpresa na família eu não ter passado, afinal eu sempre fora “a estudiosa”, caxias em nível máximo. Não contei que não tinha feito a prova.  

Finalmente em 1982, quando minha mãe já estava boa da tuberculose, eu decidi sair atrás do meu sonho e fui morar em Caxias do Sul, com minha tia Dalva. Não sabia como ou o que fazer para ser jornalista. Então, fui preencher uma ficha para vaga de telefonista na TV Caxias. Coloquei ali minha experiência com comunicação e o diretor resolveu me chamar. O motorista foi até me buscar em casa. Uma surpresa e tanto. Eu não tinha noção do que ia acontecer. Lá, na sala do seu Ênio, ele me perguntou: “tu já fizeste tudo isso mesmo que colocaste na ficha?”  E eu respondi que sim, embora houvesse ali muito exagero. E ele então disparou: “Acreditas que pode trabalhar aqui como repórter?” Meu coração deu um salto, mas ele não notou. “Pode apostar”, eu respondi, segura. Ele apostou.  Estava contratada. De quase telefonista a repórter, assim, do nada. Não tive medo. Já tinha uma estrada na comunicação. Daria conta.

E foi assim que eu desci para o salão onde ficava o setor de jornalismo e me apresentei ao Otaviano Fonseca, que era o chefe de jornalismo. No outro dia já estava jogada aos leões, fazendo entrevistas. Tive a sorte de ter grandes parcerias, colegas incríveis que me ajudaram e me ensinaram. Passei depois pela TV Globo de Bauru, a TV Globo de Marília, TV Uruguaiana, TV Umbú de Passo Fundo, RCE TV em Florianópolis, Jornal O Estado, Rádio Guarujá, Jornal A Notícia, dei aulas na Univali, atuei na comunicação popular e por fim a UFSC. 

Toda essa caminhada eu fiz com profunda alegria e com imenso amor por essa profissão que escolhi desde menina . O jornalismo que se compromete, que toma partido, que olha o mundo desde o lado da classe trabalhadora. Foi assim desde as primeiras greves de gráficos que eu cobri em Caxias. Naqueles dias era intuitivo, mas com o passar do tempo a consciência ingênua se fez crítica. Onde quer que eu trabalhasse estava sempre a serviço das lutas. Sempre atuei no sindicato dos radialistas e depois de formada em Jornalismo, no sindicato dos jornalistas. 

Como jornalista, trabalhando dentro da RBS, usei todos os recursos da rede para divulgar as lutas sociais e tive a alegria de cobrir por um ano inteiro a grande batalha dos trabalhadores sem-terra na Fazenda Anonni, um marco na luta pela terra no Brasil. Pauteira atilada, sempre procurei abordar as notícias de maneira a mostrar a injustiça e a exploração. Quando por fim fui fazer a faculdade, lá por 1987, encontrei Adelmo Genro Filho, pela mão do mestre Sérgio Weigert. Então, tudo o que era intuição ganhou corpo e se fez compreensão. Entendi que fazer jornalismo é garantir a visão da totalidade do fato. Que fazer jornalismo é estar comprometida com verdade dos tempos, sendo capaz de capturar o singular, sem perder a conexão com o todo, o universal. Que fazer jornalismo é estar sempre atenta ao que nos salta aos olhos e ser capaz de ver o que quase ninguém vê.   

Hoje, assombrada com o andar do tempo, vejo que quatro décadas se passaram e eu ainda não perdi o encantamento pela rua e pelas pessoas. Que exatamente como aquela menina aprendiz da TV Caxias eu ainda caminho pelo mundo com olhos de lâmpada, sedenta de desvelar o que se esconde, de gritar o que tentam calar. O jornalismo é minha espada Jedi, meu carrossel encantado, meu espaço de ser. 

Hoje é um dia cheio de significado para mim. Vou tomar uma gelada e lembrar cada criatura que passou por esse meu caminho: os que me ajudaram a ser quem sou, os que eu narrei, os que caminharam comigo, os que eu amei, os que me feriram, todos... 

Quarenta anos de jornalismo não é bolinho...  É uma vida, uma doce, linda e generosa vida...

segunda-feira, 13 de junho de 2022

A Bilica


A primeira vez que eu a vi foi no centro da cidade, numa destas apresentações que a prefeitura promove. Naqueles dias ainda eram ela e o seu Maneca, uma dupla hilária, dando vida ao que de mais autêntico temos aqui nessa nossa velha Meiembipe: a população nativa e aquele seu jeito de vestir e falar tão único. Para mim era lei, onde quer que eles estivessem se apresentando, lá estava eu, rindo à bandeiras despregadas. Depois, a Bilica seguiu sozinha, e eu continuei acompanhando. Lá no Campeche, nas festanças promovidas pelo seu Getúlio, sua presença sempre foi constante. Impossível não se apaixonar por aquela mulher tão cheia de verdade e pureza. 

Com o passar do tempo eu acabei conhecendo a incrível pessoa que dava vida à Bilica: a atriz Vanderléia Will, uma mulher carregada de uma força imensa, uma criatura apaixonada pela arte da palhaçaria, pela cultura local, pela arte. Uma paixão tão grande que a fez apostar na construção de um circo, que servisse de espaço para os atores, palhaços, cantores, poetas, toda a sorte de gente que precisa de um lugar para expor sua arte. E por um bom tempo o Morro das Pedras abrigou o Circo da Dona Bilica, sempre com uma opção de qualidade no campo da cultura. 

Pois essa garota extraordinária, a Vanderléia, completa 30 anos na adorável tarefa de dar vida à querida Dona Bilica. Não é qualquer coisa. É como se fosse uma existência inteira. E, para celebrar, ela realiza um show no teatro do CIC, nesta quarta-feira, dia 15 de junho, às 21 horas. Um lugar nobre para uma arte nobre, para uma artista nobre. Sim, já vi esse espetáculo várias vezes, e o veria ainda outras incontáveis vezes, porque é engraçado, é terno, é lindo, é cheio das belezas dessa nossa gente que encontramos amiúde no ônsh, no mercadinho, na missa, nas festas do divino e do boi-de-mamão. 

Convido todo mundo a celebrar o aniversário de 30 anos da Bilica, porque ela é uma lembrança de toda a riqueza do que somos aqui nesta ilha: um pouco brutos, mas também capazes da ternura mais funda. A Bilica é nossa alma, que passeia dentro do corpo da Vanderléia. 

Parabéns querida... e que venham mais 30 anos...



As noites com o pai


Durante muito tempo o pai dormiu sozinho. Ele acordava bastante e vinha bater na porta do meu quarto de madrugada. Eu o levava de volta e assim íamos. Um pouco antes de se desatar a pandemia eu decidi me mudar para o quarto dele. Ele havia caído e eu me dei conta que não dava mais para deixá-lo só. Assim que estou ali, acampada. Nesses dois anos foram muitas as fases e as noites eram turbulentas. Agora, já faz algum tempo que ele está tranquilo, e dorme quase a noite toda. Um milagre. Mas, ainda assim, eu sigo ali, porque ele desperta pelo menos umas duas vezes, e estar ao seu lado faz a diferença. 

Eu sinto quando ele começa a se mexer lá por volta da uma hora. Ele se destapa e senta na cama, o rosto crispado, as mãos em luta, como se estivesse andando no inferno. Aquele despertar na madruga é carregado de muito medo. Acho que eles ficam muito confusos quando saem do sono. Não sei, algo passa. Então, eu também sento na cama, pego a sua mão e digo: “tá tudo bem, querido, eu estou aqui”. Ele abre os olhos lentamente, me enxerga e sorri, saindo daquele estado abissal. O medo se desfaz e a expressão que vejo no rosto dele é de pura alegria. Ele fala algumas coisas na sua língua de cigano, canta, resmunga e volta a dormir, apertando bem a minha mão, na certeza de que pode atravessar qualquer deserto. Eu estou ali. 

Quando dá cinco horas, de novo. Ele senta na cama e começa a puxar as minhas cobertas, fazendo um bolo, os olhos apertados, com aquela expressão de medo e desespero. Eu falo com ele e digo que ainda é muito cedo, que dá para dormir mais um pouco. Ele luta com os cobertores até que abre os olhos e me vê. – Ah, tu tá aqui? – ele diz, abrindo um sorriso luminoso. “Sim, meu brotinho, tô bem aqui e não vou a lugar nenhum, tá bom?”. Devagarinho ele vai descendo o corpo, colocando a cabeça no travesseiro para mais algumas horas de sono. Não sem antes espiar pra ver se sigo ali mesmo. Ele se sente seguro.

Acho importante estar sempre por perto quando ele acorda, porque a impressão que tenho é que ele sai de algum emaranhado desesperador. E o rosto familiar o recupera para a vida. De manhã, eu fico espiando ele, esperando que desperte. Porque é sempre igual. Ele senta e começa a amassar as cobertas, assim como fazem os gatos, sovando. Quando por fim vejo que ele abriu os olhos eu entro cantando: “Bom dia, o sol já nasceu lá na fazendinha´, acorda o bezerro e a vaquinha, acorda o seu tavarinho”... e vou fazendo macaquices como uma Maricota maluca. Não dá para descrever a alegria que se desenha no seu rosto. Ele reverbera em riso e eu faço cosquinhas... “Bora pular da cama, seu Tavares, bora tomar café”... Aí começa toda a função da troca de roupa... que é outra história... 

Outro dia um amigo me disse que agora que o pai já dorme bem à noite eu podia voltar para o meu quarto, para a minha vidinha de antes. Mas, não dá. Esses despertares na madrugada são assustadores. Ele realmente fica desorientado. Um rosto amigo e sorridente é fundamental para que ele saia daquele estado de abismo e possa voltar a dormir, serenamente. E assim vamos vivendo nossa aventura, aprendendo sobre confiança e sobre belezas.