sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Mestre Nô - um dia para lembrar































Aquele foi um momento único. Tão incrível que desliguei a câmera e apenas senti. Nenhuma foto, nenhuma imagem, puro sentimento. Em pé, como se fora um orixá guerreiro, o Mestre Nô, e em volta dele, os capoeiras da ilha de Santa Catarina. Mitos como Mestre Pop e Alemão, e outros mestres, mais novos, igualmente fazendo a história dessa dança/luta/magia. O toque do berimbau e o canto em uníssono. Um canto forte, ora duro, ora malemolente, referenciando a obra e a história daquele homem que, aos 70 anos, recebeu uma justa homenagem dos capoeiras do sul do mundo.

Mestre Nô, baiano de nascimento, foi a raiz que se espalhou pelos quatro cantos do Brasil na prática da Capoeira Angola. Foi lá, em Salvador, que Alemão bebeu dos conhecimentos de vida e da luta. Depois, de volta ao sul, trouxe a força dessa capoeira de rua, de tronco popular. E, devagarinho, foi plantando em Santa Catarina, particularmente na ilha, esse jeito de resistir do povo negro. Paradoxo. Alemão e Mestre Nô. O branco e o negro entrelaçados na prática de uma cultura que representa a mais importante forma de combate dos negros. Um combate físico e cultural, que vive e persiste.

Pois os filhos dessa raiz forte, o Mestre Nô, não descansaram enquanto não realizaram a justa homenagem a esse homem sem igual. E, capoeiras, também professores da UFSC, como Fábio Machado Pinto e Danuza Meneghello, iniciaram um caminho para garantir a Mestre Nô o título de Notório Saber. Doutor Honoris Causa. A proposta tramitou no Centro de Educação e foi aprovada, aguardando apenas a homologação por parte do Conselho Universitário. Mas, os caminhos burocráticos são longos e os capoeiras decidiram que era chegada a hora de reverenciar, em vida, aquele que tanta beleza garantiu à capoeira da ilha.

Assim, na noite cálida desse 15 de outubro, dia do professor, o mestre recebeu as honras. E ali estava ele, entre os seus, ouvindo a música que lhe retrata, com o rosto impávido e os olhos marejados. Na simplicidade do verdadeiro mestre, ele agradeceu à UFSC e aos amigos com os quais compartilhou a capoeira por tantos anos. 

E no auditório, cheio de capoeiras, o canto se ergueu, porque é assim que se resiste. Na alegria, no braço, na força e no riso. Vieram lágrimas, mas foram de alegria e de profunda reverência. Mestre Nô não leva apenas uma placa de prata, com um título universitário. Ele leva o amor e a gratidão de toda uma linhagem de capoeiras que, certamente, seguirão espalhando seus ensinamentos pelo mundo afora. 




segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Derrotada!





As obras já estão a todo vapor para fechar o vão central










Quando o prefeito César Souza decidiu gourmetizar o mercado público, a gente resistiu. Fizemos protestos, gritamos, escrevemos, tudo o que tínhamos direito. Não adiantou. Ele decidiu fazer uma licitação e acabou tirando do espaço do mercado comerciantes que estavam ali uma vida inteira. Gente que já era patrimônio cultural, como foi o caso do Alvim, o bar da ponta da rua, lugar perfeito para uma gelada, um bolinho de bacalhau e a espionagem da vida que fluía para o terminal de ônibus. 

Depois da licitação dos espaços - que era necessária, mas que poderia ter respeitado os históricos - o prefeito do PSD decidiu fazer uma reforma no prédio. Até aí tudo bem, sempre são bem vindos os melhoramentos. Mas, o que deveria durar alguns meses se alongou para mais de um ano e, ao final, o que recebemos foi uma espécie de xópim. Os boxes, que antes abrigavam bares populares, com comidas baratas e acessíveis, sumiram. No seu lugar vieram os negócios de comida rápida, tipo o Bob´s, e restaurantes caros. Nada de botecos, nada de bares populares. Tudo ali estava feito para os turistas ou para a burguesia local. 

A música que rolava livre nos finais de tarde e nas manhãs de sábado também mudou. Agora, nada de pagode, ou de livre expressão das gentes. Tudo bem organizadinho, com inscrição e pagamento de taxas. Artistas populares e livres estão proibidos no local. No vão do prédio, ao ar livre, as cadeiras homogeneizadas da Coca Cola dão aquele ar de praça de alimentação, dessas que são iguais em todo o mundo nos centros de compras. 

Durante algum tempo buscamos resistir. Com alguns amigos sentávamos nas mesas e levávamos nossa cerveja ou nossa cachaça, visto que agora não há mais cervejas de 600 mls. Só chope fino ou garrafinhas long neck. Tudo muito caro. Tampouco há jeito de comer alguma coisa. Um pastel custa 12 reais. Levávamos então um saquinho de amendoim  e insistíamos em ocupar aquele espaço que fora nosso por décadas.

Na semana passada fomos lá, eu e o Rubens, em mais uma tentativa de estar no mercado. O novo bar, que ficou no lugar do Alvin, bem na ponta da rua, não vende bolinho de bacalhau unitário. Só porção. Ou seja, tem que gastar muito. Não dá. Lá no meio, nas mesas cocacoladas, tampouco se pode ficar. Uma olhada para os lados e não se vê qualquer globo ocular simpático. Não estão os amigos, os bêbados, os pescadores, os sambistas, as putas. O que se vê são os turistas e um outro tipo de gente que nunca antes tínhamos visto por ali, com joias no corpo e roupas finas. Por mais que a gente insista em ocupar nosso mercado, ele já não tem mais a nossa cara. Estamos expulsos dali, por conta dos preços, da freguesia, do ambiente pasteurizado. 

Mas, naquele triste dia, uma coisa mais me roubou a alegria. Iniciavam as obras de fechamento do vão central. A proposta da prefeitura é colocar um teto sob a parte que fica ao ar-livre. Ou seja, não bastou cocacolizar o espaço, há que torná-lo fechado, tomado pelo ar-condicionado, xopinizado ao extremo.

Nosso mercado de peixe deixará de existir. Será só uma casquinha amarela, cheia de granfinos gastadores por dentro, que sequer estarão interessados no lugar. Para eles, será só mais um espaço para tomar seus espumantes. Quanto a nós, os amantes do mercado, que nos embriagávamos da vida mesma, que ali fluía, resta desistir. 

Naquele dia de chuva, saí dali vertida em lágrimas. O meu, o teu, o nosso mercado não há mais. Derrotada. Agora, só mesmo a nostalgia da velhas fotos. O velho mercado se nos escapou, e poucos somos os que choramos por ele...

Um dia alguém dirá: Por que? Por que? Como hoje dizemos do antigo Miramar. E, tal como antes, será tarde demais...

12 de outubro de 1492 - o começo do massacre





 Cacique Hatuey
 
Contam que foi assim. Naquele outubro de 1492, fazia um dia lindo de sol no mar dos Caraíbas e os arawakes observaram as estranhas embarcações que se aproximavam. Quando perceberam que ali vinham homens, correram para recebê-los com água, comida e desejos de boas vindas. Mas, toda essa hospitalidade foi logo entendida como fraqueza e é assim que descreve Colombo em seu diário, o povo que, de braços abertos, o acolheu: “Trouxeram louros, bolas de algodão, lanças e outras coisas que trocaram conosco por contas de vidro. Não tiveram qualquer inconveniente em nos dar tudo o que possuíam... Eram de forte constituição, corpos bem feitos e boas feições... Não carregam armas de fogo, não as conhecem. Ao tocarem numa espada, a tomaram pela lâmina e se cortaram sem saber o que fazer com ela. Não trabalham o ferro. Suas lanças são feitas de taquara... Seriam uns criados magníficos... Com cinquenta homens os subjugaríamos e com eles faríamos o que quiséssemos”. Já neste breve escrito pode-se perceber qual a lógica da armada de Cristóvão Colombo: a cobiça e o desejo de dominar. Tanto que nas primeiras tentativas de conversa com os nativos das Antilhas, onde aportaram, a primeira pergunta que sofregamente repetiam os espanhóis era: “onde está o ouro?”

É que Colombo havia saído de uma Espanha recém unificada, que ansiava pelas riquezas da Ásia para melhor constituir seus estados. Ele mesmo ambicionava ao posto de governador das terras descobertas, além dos 10% sobre todas as riquezas que encontrasse. Era disso que se tratava a viagem.

Nas ilhas aonde chegaram os espanhóis, os arawakes viviam em pequenas comunidades, com uma agricultura baseada no milho, batata e mandioca. Sabiam tecer e fiar, mas não domesticavam nenhum animal. Não conheciam o ferro, mas, desgraçadamente levavam pequenos ornamentos de ouro nas orelhas, o que acendeu a cobiça. Por conta disso Colombo aprisionou alguns homens e os fez guiar as embarcações para onde hoje é a ilha de Cuba e depois para o que é hoje o Haiti e República Dominicana, pois ali supostamente haveria mais ouro. Chegando às ilhas, ao receberem de presente de um dos chefes locais uma máscara de ouro, decidiram ficar. Ali haveria de ter mais do metal precioso.  Assim, com as madeiras da caravela Santa Maria, Colombo ergueu a primeira base militar estrangeira nas terras de Abya Yala e a chamou de Navidad. Aprisionou mais indígenas e começou o processo de matança que ainda segue até os dias de hoje.

Na verdade, conforme conta o historiador estadunidense Howard Zinn, naqueles dias Colombo ainda acreditava que havia chegado à Ásia, embora em algum lugar ignorado da costa chinesa. Sobre os moradores do lugar escreve aos soberanos espanhóis: “Os portos naturais são incrivelmente bons e há grandes rios, a maioria deles com muito ouro. Os indígenas são tão ingênuos e generosos com suas posses que se não tivesse visto com meus próprios olhos eu não acreditaria. Quando se pede algo que têm, não se negam a dar. Ao contrário, se oferecem para compartilhar...” E foi por conta destes informes da generosidade autóctone a da promessa de ouro que Colombo conseguiu receber mais 17 caravelas e 1.200 homens para uma nova expedição “às índias”, com o propósito de conquistar escravos e mais ouro. E assim foi feito. Mas, como não havia ouro na quantidade desejada, muitas foram as mortes e as atrocidades cometidas contra os arawakes. Conforme Howard Zinn, os que falhavam na missão de recolher ouro tinham as mãos cortadas e morriam sangrando.

Vivendo essas barbaridades, aqueles que haviam recebido os espanhóis com tamanha generosidade começaram a perceber que ali estava um povo cruel e cheio de cobiça. Foi quando tentaram reunir um exército de resistência, embora muito pouco pudessem contra as armaduras, mosquetes, espadas e cavalos. A mais importante liderança desse povo foi Hatuey, um cacique taíno, que chegou a ir remando desde onde hoje é a República Dominicana até a ilha de Cuba para avisar aos demais povos da região sobre as atrocidades dos espanhóis. Ao chegar, Hatuey aconselhou os parentes para que se preparassem para grandes batalhas e também que sumissem com todo o ouro que tivessem pois esse era o demônio que movia a invasão. A partir daí, ele mesmo comandou alguns grupos em ataques contra os espanhóis. Frei Bartolomé de Las Casas, narra uma cena, atribuída ao grande cacique taíno. Conta que junto a um baú com ouro e joias, ele falou aos parentes:

"Este é o Deus que os espanhóis adoram. Por isso eles lutam e matam, por isso eles nos perseguem e por isso é que temos de atirá-los ao mar. Nos dizem, esses tiranos, que adoram um deus de paz e igualdade, mas usurpam nossas terras e nos fazem de escravos. Eles falam de uma alma imortal e de recompensas e castigos eternos, mas roubam nossos pertences, seduzem nossas mulheres, violam nossas filhas. Incapazes de nos igualar em valor, esses covardes se cobrem com ferro que nossas armas não podem romper".

Hatuey tentou organizar a luta dividindo os homens em pequenos grupos para ataques surpresa, usando pedras, paus e flechas. Mas, Diego Velázquez conhecia bastante bem as técnicas dos indígenas e conseguiu ir debelando os grupos rebeldes. Além do conhecimento das táticas dos autóctones, os espanhóis tinham uma arrasadora capacidade técnica, já que contavam com armas de fogo, armaduras, lanças de ferro e até cachorros farejadores. Com o tempo, eles foram exterminando os focos de resistência e conseguiram prender o cacique Hatuey.

Depois de passar por terríveis torturas, o cacique foi condenado à morte na fogueira. Era preciso não deixar qualquer rastro que fizesse dele um herói ou que o rememorasse. Mas, ainda assim, Hatuey virou lenda, como o primeiro grande rebelde dessas terras contra a invasão. Contam que quando já estava para ser acesa a fogueira que colocaria fim a sua vida, um padre, de nome Olmedo, acercou-se e perguntou se ele não gostaria de - naquela hora extrema - converter-se ao cristianismo.

Hatuey encontrou forças para perguntar:
- Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos?
- Sim, claro - disse Olmedo.

- Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente.

Hoje, na região de Granma, em Cuba, num povoado chamado Yara, bem na margem de um rio que tem o mesmo nome, onde segundo narra a história, foi o lugar onde Hatuey ardeu na fogueira, ocorre um fato que lembra sua valentia e a tentativa de parar a violenta invasão. Ali, no povoado, corre até hoje uma lenda. Nas noites escuras sempre é possível vislumbrar uma luz, que muda bastante de tamanho e que parece seguir os viajantes que passam pelo lugar. Para os moradores, a luz - que até hoje nenhum cientista conseguiu explicar - é a alma de Hatuey, que segue ali, como um símbolo, a lembrar da resistência do povo indígena. Naquelas margens, o bravo cacique segue sendo reverenciado, ainda que já tenham se passado mais de 500 anos de sua morte. 

Com a morte de Hatuey e o sistemático desmantelamento da resistência indígena na região, os originários começaram a se ver sem saída. E, não aceitando mais a escravidão, os arawakes iniciaram um processo de suicídio em massa, utilizando o veneno de uma mandioca tóxica. Igualmente, se nascia alguma criança, logo era morta para não cair em mãos espanholas. Assim, em pouco mais de 20 anos da invasão, mais de 250 mil arawakes já haviam perecido. Em 1550 restavam apenas 500 indígenas, e em 1650 estavam praticamente extintos da região onde hoje é o Haiti. No total, em toda a região das Antilhas, mais de três milhões de índios havia desaparecido diante da sanha do ouro trazida pelos espanhóis. É o que fala o historiador estadunidense Samuel Eliot Morinson: “A cruel política iniciada por Colombo e continuada por seus sucessores desembocou em um genocídio completo”. 


E exatamente como Colombo exterminou os arawakes nas Antilhas, Hernán Cortéz repetiu o feito com os aztecas, zapotecas, e demais povos, no México, Francisco Pizarro destruiu os Incas na região andina e, bem mais tarde, os ingleses dizimaram os povos originários da região do que hoje são os Estados Unidos. Tudo isso em nome de uma coisa só: o ouro. Colombo iniciou, portanto, um violento e complexo sistema de tecnologia, negócios, política e cultura que dominaria o mundo desde então.