quarta-feira, 21 de março de 2018

Sobre caravanas e ódios de classe

Possivelmente dois trabalhadores

Num desses filmes de roliude chamado “Django Livre” há um personagem que espelha claramente a cara feia desse nosso mundo eivado da herança colonial e escravocrata. É o velho negro, mordomo do senhor de escravos, que tripudia dos negros da senzala e goza de prazer quando os vê passar pelas terríveis dores da tortura. Ele, como negro, e convencido da sua “inferioridade”, não suporta ver um negro livre ou um negro que se rebele contra o horror. Então, de livre vontade assume a postura do opressor. É um servo voluntário, arrastando-se atrás do patrão, tentando abocanhar as migalhas que caem da mesa colonial. Pode-se compreender que aquela seja a estratégia que ele desenvolveu para permanecer vivo, mas não é possível deixar de odiá-lo. E o final do filme representa bem isso. Ou estamos com os nossos, com nossa classe, ou não estamos. 

O mesmo sentimento me invadiu ontem ao ver centenas de comentários sobre a ação de alguns latifundiários, acompanhados de populares, no Rio Grande do Sul, contra os apoiadores da caravana do Lula. Uma cena em particular atraiu mais ferozmente os comentários dos servos voluntários de plantão: a de um jovem agricultor dando de relho em um sem-terra. Imediatamente me veio a cena do filme, quando Jango está sendo torturado e o velho mordomo vem tripudiar dele.  Um horror. Digo isso porque tenho plena certeza de que mais de noventa por cento das pessoas que divulgaram a  foto com comentários de ódio contra os sem-terra ou contra os apoiadores de Lula certamente não são donos de terra, nem donos de meios de produção. São os mordomos. Ou seja, tal qual aquele sem-terra são obrigados a vender sua força de trabalho para viver. São da mesma classe.

Não, eu não gosto do Lula. Penso que o governo petista, ao longo dos anos que esteve no poder, foi bastante responsável pela classe trabalhadora não ter avançado politicamente. Nesses anos todos os sindicatos se domesticaram e os movimentos sociais esperaram muito do governo. Um muito que não veio. Reconheço que o governo petista foi diferente dos demais governos de “casa-grande”, afinal, as tais políticas públicas conseguiram chegar a milhões de pessoas que sempre estiveram fora dos planos governamentais. Não foram as melhores políticas e ainda foram muito tímidas, mas os empobrecidos diminuíram e gente que passava fome, passou a comer. Isso foi real.

Mas, o fato concreto é que os governos petistas serviram muito mais à casa-grande que aos trabalhadores. O agronegócio cresceu, os bancos tiveram lucros astronômicos, os ricos ficaram mais ricos, a dívida não foi auditada e ainda foram aprovadas leis que penalizam os trabalhadores que lutam, como a lei antiterrorismo. 

Então porque tanto ódio contra Lula? Se ele serviu muito bem aos interesses da classe dominante? O ódio dos ricos eu entendo. Eles usam os que os servem até quando querem. E quando não querem mais, ou não precisam deles, descartam. Simples. Sempre haverá outro e outro pronto a servir. Então que um latifundiário cuspa no Lula, posso compreender. Lula não vem de sua classe. O que não compreendo é o estranho mecanismo que leva o brasileiro médio, subalterno, da classe trabalhadora, a odiar tanto esse homem, a ponto de realizar passeatas de mãos dadas com a classe que o oprime. Sim, porque entre os que disseminam horrores contra Lula e Dilma não vejo um que o odeie por ele ter governando mais para os ricos do que para os pobres. Não. É a compra cega do discursinho televisivo da “corrupção”. No geral, essas pessoas que cospem ódio sequer sabem bem como foi que os governo petistas se comportaram, para o bem ou para o mal. A impressão que dá é que o ódio ao Lula se dá porque ele tem aparência de pobre, fala como pobre, age como pobre. E aí aparece aquele sentimento do mordomo lá do filme do Tarantino. Entre os serviçais não há quem suporte ver um dos seus comendo à mesa dos patrões. O ódio não é nem pelo fato de um dos seus ter se aliado com os patrões (o que seria interessante e pedagógico), é só pelo fato e ele estar na posição de patrão sem ter cara ou jeito de patrão. A coisa é louca, mano.

As manifestações contra a caravana do Lula no Rio Grande não foram organizadas de maneira espontânea por agricultores e populares, como quer fazer crer a mídia. São manifestações organizadas por partidos políticos como o DEM, o PSDB ou o PMDB, partidos que congregam os latifundiários e a classe dominante do estado. Foram organizados por movimentos do tipo do MBL que são financiados por pessoas e entidades ligadas a esses partidos ou a organismos internacionais de direita. Portanto, são manifestações político-partidárias sim, realizadas dentro do contexto do cenário das eleições. Nenhum desses dirigentes que organizam atos contra o Lula pelo Brasil promove as manifestações porque o Lula é ladrão ou corrupto. Não. É porque eles querem pegar o lugar do Lula para serem os ladrões e os corruptos. Esse é o jogo no mundo capitalista de produção. Esse é o jogo eleitoral.

E, nesse festival de manipulação, aparecem aqueles que como o mordomo da casa-grande, acreditam firmemente que o país estará melhor na mão dos senhores de terra, dos senhores de fábricas e nos senhores de escravos. Esses precisam ser conquistados para sua própria classe. Um trabalho quase inglório, mas que precisa ser feito.  

As cenas provocadas no Rio Grande e outras que deverão vir no Brasil todo a continuar a caravana de Lula, são, quer a gente queira ou não, cenas explícitas da luta de classes. Porque os que estão do lado de Lula são conhecidos lutadores sociais, gente que também firmemente crê que, com Lula, a vida dos trabalhadores vai melhorar. São aqueles que acreditam que as transformações podem vir a conta gotas, uma melhoradinha aqui, outra ali, mesmo que as políticas públicas sejam raquíticas e insuficientes. E são tantos os que dão a cara para bater nessa luta por tão pouco. Há que respeitá-los e dialogar com eles, porque, no geral, são nossos companheiros de muitas lutas. Não são eles os inimigos.

Não creio que Lula seja a solução para o Brasil. Minhas expectativas são mais altas. Sonho e luto por transformações estruturais, radicais, que mudem verdadeiramente a face do país. Luto pela emancipação real dos trabalhadores, pelo fim da propriedade privada, pela socialização da riqueza, pelo fim da exploração. Isso não é coisa que se faz com política pública. É coisa que se faz com revolução. Por isso, caminho por outros caminhos. Mas, respeito profundamente cada companheiro ou companheira que está na estrada da defesa do petismo. Espero firmemente que, no embate cotidiano com a classe dominante, cada um e cada uma possa avançar nas expectativas. Não apenas um país “mais” justo. Não apenas um país com “mais” oportunidades para os pobres. Mas um país justo, sem pobres. Alguém pode argumentar que isso se faz passo a passo, por etapas, com calma, devagar. Mas eu acredito na possibilidade do salto, o salto abissal, que rasga a história e muda o mundo. 

Nunca estarei do lado da classe dominante. Isso é seguro. Mas, precisamos querer mais do que “um pouquinho mais”. Que as caravanas e os conflitos sirvam para essa reflexão. Que os embates sejam pedagógicos. Sabemos que é o inimigo e vamos enfrentá-lo. E há que ser juntos!



domingo, 18 de março de 2018

Sergio Weigert, mestre


Trabalho como escriba desde os 12 anos praticamente. Comecei minha sina de contadora de histórias reescrevendo os contos de Simões Lopes Neto, adaptando-os para uma linguagem falada no rádio, para um programa que o meu pai tinha na Rádio Fronteira do Sul, em São Borja. Depois, o caminho natural foi o jornalismo. Na escola, nos movimentos sociais, escrever era comigo mesmo. Mas, comecei a atuar profissionalmente, como repórter, aos 21 anos, na TV Umbú, de Caxias do Sul. E, nessa lida, sempre andei ligada às causas dos trabalhadores. Eu vinha de uma militância já bastante consolidada, seja na luta contra a ditadura ou na batalha pela anistia. Consciência de classe não me faltava. Naqueles dias tentei fazer a faculdade. Mas, em Caxias, só havia universidade particular. Fiz vestibular, passei, mas não dei conta de pagar as mensalidades. À época, chorei demais, mas o tempo mostraria que aquele mal viria para bem.

Em 1985 tive a sorte de ir trabalhar na TV Passo Fundo, onde mergulhei de cabeça na realidade dos trabalhadores sem-terra. Cobrindo a primeira grande ocupação organizada do MST, na Fazenda Anonni, todas as minhas inquietações sobre a realidade brasileira foram se consolidando na certeza de que era preciso operar uma grande transformação nesse país. A democracia chegava capenga e todo o processo de luta e repressão vivido pelos acampados de Anonni reforçaram em mim o caminho que já havia escolhido desde pequena: o da classe trabalhadora, sempre, e sem concessões.

Minha vida de repórter, mesmo dentro de uma empresa comercial ultraconservadora como a RBS, foi sempre pautada pelo compromisso de garantir espaço para as vozes dos trabalhadores e trabalhadoras se expressarem. Sempre encontrava jeito de isso acontecer. E são muitas as histórias das minhas artimanhas. Mas, apesar de todas as minhas certezas consolidadas eu sentia que precisava estudar mais e mais. Sobre o jornalismo e sobre a política. Decidi fazer vestibular para jornalismo na federal de Santa Catarina. A prova era em Chapecó, perto de Passo Fundo. E para lá fui, na esperança de passar. Seria uma federal, eu não teria de pagar nada. Era minha chance de crescer intelectualmente depois de mais de dez anos fazendo jornalismo à facão, sem formação acadêmica.

Quis o destino que eu passasse no vestibular e fosse estudar na UFSC. Lá, encontrei o homem que daria sentido a minha vida de jornalista. Ele mudou minha vida inteira, balançou todas as estruturas, fortaleceu algumas certezas e abriu para mim um caminho que nunca mais teria volta: o da filosofia. Seu nome é Sérgio Weigert. Era professor de Realidade Brasileira. Chegava à aula com o cabelo desgrenhado, gritando feito louco, nos provocando, nos incentivando a ultrapassar a mediocridade. Mandava-nos ler os textos mais incognoscíveis. E exigia compreensão. Quantas noites de chimarrão e pipoca vivemos Roseméri Laurindo e eu, tentando decifrar Horkheimer. Era como o inferno na terra.

Um dia chegou com a máxima de que índio não tinha história. Pra quê? Foi o maior furdunço na sala. Eu o odiava. E discutia com ele que aquilo era um absurdo. “Prova pra mim, então”, provocava e eu corria para a biblioteca devorar Darcy Ribeiro e tudo mais que havia sobre índios. E quando eu voltava e discutia, argumentando com vários autores, os seus olhos brilhavam de alegria. “Muito bem, guriazinha”. Era um mestre, nos fazendo descobrir as coisas por nós mesmos.

Com o passar do tempo o ódio foi virando amor. E as aulas do Sérgio passaram a ser a razão de chegar à universidade. Na cadeira de Realidade Brasileira o trabalho final foi absolutamente instigante. A tarefa era de que cada aluno apresentasse uma proposta anti-hegemônica de nação. Pensa? E nós a fizemos. Outra cadeira que ele deu foi a de Estética. Era uma viagem alucinante de filosofia e arte. E tudo era passado com uma intensidade louca. Sérgio era ele mesmo um vulcão, alegre, festivo, devorador. Passava noites e dias lendo, estudando, e chegava desvairado tentando passar para nós tudo o que descobrira nas leituras. Suas aulas eram momentos estelares. E toda aquela beleza se espraiava para além da sala, quando desfrutávamos da sua incrível biblioteca caseira. Obras completas de Lenin, Marx, Adorno, Agnes Heller, Luckás e muito mais. Estudar com Sergio era mais do que aprender, era ser, inteira e total.

Por fim, ele nos apresentou Adelmo Genro Filho. Ai foi a cereja do bolo. Porque Adelmo é seminal. É rei. É único. É o que garante um jornalismo de qualidade, ao qual me agarrei para sempre. Sérgio e Adelmo ficaram desde então colados em mim.

A universidade acabou, e os caminhos do Sergio foram seguindo novos rumos. Ele foi estudar na França. Mas, apesar da lonjura, seguia perto, até porque parte de sua biblioteca ele tinha deixado comigo, e outra parte com minha amiga Catarina. Então, a gente continuava bebendo de sua sabedoria. O tempo passou, ele voltou e enfrentou toda a dureza da falta de solidariedade no Curso de Jornalismo, quando alguns colegas queriam exonerá-lo, chamando-o de louco. Naqueles dias estivemos por perto, vivendo com ele toda a dor. Depois, ele foi para Porto Alegre, já aposentado e veio a terrível agressão que o colocou em coma.

Acompanhamos de longe, sempre torcendo para que se recuperasse. Mais tempo passou e ele foi enfrentando suas limitações. Segue firme. Vivo e ainda sedento de saber, como sempre. E ainda que esteja longe, lá em Porto Alegre, para mim, ele é o mestre da vida. Em cada confusão intelectual, cada descoberta, eu sempre penso: que diria Sergio? E busco na sua alucinada alegria de saber a força para encontrar os caminhos.

Dia desses procurando por ele na Internet, a ver se tinha alguma notícia, me deparo com sua carinha sorridente e a notícia de que os professores Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil Weigert haviam lançado um livro com alguns dos seus textos. Foi uma explosão de alegria. Saber que os escritos desse homem apaixonante agora estariam públicos e eternos. Liguei na hora para a editora para comprar o meu.

Pois ontem o livro chegou, "Marxismo e Modernidade - ensaios críticos sobre utopia e emancipação". Está entre minhas mãos, dormi abraçada nele e agora, nessa manhã de domingo, vim escrever, para dar vazão aos sentimentos. E a emoção que esse trabalho me provoca é tão intensa que não consigo parar de chorar. A alegria é oceânica.

Guardo até hoje o projeto anti-hegemônico de nação que fiz para a aula do Sergio, o qual contém um elogio e um A+. E a ele recorro sempre que preciso de força para seguir nas minhas reflexões filosóficas e na vida política. Meu mestre amado, sempre aqui. Mas, agora, com o livro, outros textos dele me acompanharão. E vou sorvê-los como se fora o chimarrão há tanto tempo esperado: devagarito, saboreando.

Obrigada por isso Salo de Carvalho. Obrigada Mariana. Sergio, agora, vive para sempre.