terça-feira, 20 de abril de 2010

Curtindo o Mazzaropi



Diante de todas as perplexidades que me vieram à cabeça depois de quatro dias discutindo sobre se havia ou não socialismo na América Latina, fui descansar a cabeça vendo filmes antigos. Então me caiu às mãos um clássico do Mazzaropi, chamado “Jeca Tatu”, realizado em 1959. Nesta película, o cinema nacional se mostra na sua plena beleza. Primeiro pela temática. Mazzaropi traz para a tela grande a vida do caipira, do homem rural, premido pelos fazendeiros que roubam terras, que enganam, que se aproveitam do homem simples do campo. Questões como a reforma agrária e a exploração dos trabalhadores rurais aparecem de forma clara, ainda que não fosse essa a intenção do cineasta. A fotografia do filme é uma belezura. A dramaticidade do preto e branco, os enquadramentos estonteantes, a plástica memorável. Coisa muito boa de se ver.

O Jeca Tatu é um pequeno agricultor que precisa comprar comida no armazém e, sem dinheiro, vai vendendo pedaços da terra, até ficar sem nada, tendo de migrar para a cidade. No filme, o dono do armazém é o safado que revende as terras ao latifundiário local. E o fazendeiro é o casca grossa que chega a incendiar a casa do Jeca para tirá-lo da terra. O inusitado é a solução que o povo local encontra para salvar o Jeca Tatu da desdita de ter de ir para a cidade. Eles se reúnem e vendem o voto a um deputado safado. Com essa composição de classe e saída ladina, o Jeca ganha uma casa nova e torna-se um bem sucedido agricultor. 1959 e parece que é hoje. Os mesmos safados de sempre e as técnicas de sobrevivência do povo oprimido.

Pouco sei sobre o Mazzaropi e suas filiações partidárias ou ideológicas, mas que seus filmes nos levam a profundas reflexões sobre a vida real do campo e da cidade, disso não tenho dúvidas. Mesmos as saídas enviesadas que os personagens tomam para resolver seus conflitos permitem longas meditações sobre o povo e o trabalhador brasileiro. Mazzaropi mesmo era um destes brasileiros reais, de vida cheia de percalços, pobreza, dureza. Fez-se sozinho, à facão, trabalhando no circo, que era sua paixão. Atuou no picadeiro até morrer e conta-se que nas lonas pobres ele não cobrava por apresentação. Produziu com dinheiro próprio todos os seus filmes, era um sonhador. Eternizou em película a pureza do caipira, os dramas do seu tempo, era um genial conhecedor da alma brasileira.

Hoje já não se vê mais os filmes do Mazzaropi na televisão, invadida pelo lixo estadunidense. É que os filmes do “Jeca” falam do Brasil profundo, expõe as feridas ainda abertas. Na sua pureza é pura rebelião, perigoso, portanto. Os personagens do Mazzaropi são aquelas criaturas que gostaríamos de ser: alegres, bondosas, generosas, cheias de pureza. É por isso que nos domingos de vadiagem é bom poder fruir desta beleza do cinema nacional. Porque de alguma forma nos encontramos com esse ser profundo que insiste em querer viver nesta selva capitalista que se tornou o mundo. Faça isso. Veja os filmes do Mazzaropi e descubra que houve um tempo neste país em que o cinema falava de nós. Hoje se fala, é fato, mas este que diz da nossa gente não encontra espaço nas salas de cinema, igualmente entupidas de lixo estadunidense.

É por isso que a cultura também tem de se rebelar. Oxalá encontrássemos saídas generosas, criativas e divertidas como as do “ Jeca Tatu”.