quinta-feira, 28 de maio de 2020

As noites e os chinelos do pai



O Alzheimer é uma doença danada que todos os dias nos coloca um desafio. Quando tu pensas que resolveu um, lá vêm mais dois. Por agora eu andava as voltas com as noites do pai. Ele levanta pelo menos umas quatro vezes para fazer xixi. Eu colocava, ao pé da cama, um desses chinelos de pano para ele ficar confortável na hora de levantar. Beleza. Dava certo. Até que ele começou a não controlar mais os jatos do xixi. Levanta, vai ao banheiro, chega ao vaso, mas o xixi sai para todos os lados, menos para dentro. Resulta que os chinelos ficavam molhados e os pés também. E quando levantava para nova sessão, o chinelo estava encharcado. Hum, problema.

Resolvi suspender o chinelo de pano, trocando por uma havaiana. Deu certo por um tempo, quando não estava frio. Vez em quando errava o dedo e saia meio troncho, mas funcionava. Fazia o xixi, molhava o pé, o chinelo e tudo mais. Mas, terminado o serviço, era só secar o pé, colocar o chinelo na água, lavar e estava pronto para a próxima mijada. Até que veio o frio. Ele, de meia, não consegue enfiar o chinelo de jeito nenhum e sai quarto afora só de meia, voltando depois com os pés molhados. Cáspite!

Comprei um chinelo de couro, desses que enfia o pé inteiro. Mas, ainda assim o xixi que escapa da calça desce perna afora e continua molhando as meias e também o chinelo, que fica todo gelado porque o couro não seca tão rápido. O problema seguia.

Então, vendo um filme, pensei: quem sabe um desses sapatos que os trabalhadores usam em frigorífico, em peixaria? Hum. Toca a procurar na internet. Achei. Fiz o pedido e ontem chegou. Um desses sapatos de borracha, tipo babuche, fechado em cima, mas aberto atrás, como um chinelo. Bora testar.

Ontem, lá se foi o seu Tavares com seu chinelo novo para as mijadinhas. Na primeira já foi aquele salseiro. Tudo fora do vaso. Volta pra cama e vou ver a situação. Sapato molhado, pé sequinho. Oba! Bastou passar um paninho molhado no calçado e tudo bem. Mais três vezes a situação se apresentou. E todo xixi fora do vaso, espalhado pelo chão. Sapato molhado, pé sequinho.

Às seis horas, hora do último xixi, eu secava o chão com um sorriso nos lábios, enquanto o sapatinho descansava sequinho ao pé da cama. Por agora, deu certo. Dez a zero pra mim. Até o próximo problema. 

terça-feira, 26 de maio de 2020

O MST e o Santin


Eu nem conhecia o Vilson Santin, mas votei nele para deputado estadual em 1990, porque sempre direcionei meu voto para os candidatos que viessem do campo, principalmente se tivessem vínculo com o MST. Naqueles anos a luta pela Reforma Agrária estava ainda no auge e um parlamentar que viesse das entranhas do movimento seria muito bom. Santin era assim. Liderança forjada desde gurizinho na luta pela terra. Foi um dos principais organizadores das primeiras ocupações acontecidas em Santa Catarina, percorrendo as quebradas do campo por mais de 90 dias, só com uma mochila nas costas e o coração cheio de esperanças.

Foi assim que ele, e mais um pequeno grupo de lutadores, arrebanhou quase duas mil pessoas para a grande empreitada. As ocupações de 1985 não foram assim como um raio num céu azul. Não. Foi coisa milimetricamente organizada, nos mínimos detalhes, para que o povo que fosse enfrentar jagunço, polícia e ódio da população tivesse tudo muito claro na cabeça sobre os perigos que iria enfrentar.

Quando Santin chegou, eleito deputado, na Assembleia, no mesmo ano em que Luci Choinaki, mulher camponesa, assumia em Brasília, o que vimos foi um homem cheio de entusiasmo, alegria, vitalidade e vontade de fazer acontecer as lutas dos trabalhadores. Na época, eu assessorava a Luci e pude acompanhar o trabalho desse homem extraordinário. Nunca, em nenhum momento, a máquina legislativa o engoliu. Ele sempre esteve à margem de todos os redemoinhos que puxam e moem gente quando nesses espaços de poder. Santin, não. Ele sempre foi a mesma pessoa, e até quando desfilava com um fino terno azul marinho, exigência do cargo, sua alma camponesa assomava, no riso fácil, na cara sapeca, no trato humano, cheio de calor. Nunca me orgulhei tanto de um voto como o que eu dei para o Santin. Naqueles dias ganhamos um parlamentar de qualidade, mas, eu, mais do que isso, encontrei um amigo, que abriu seu coração e sua casa, na qual pudemos partilhar a vida com a preciosa Jô, sua companheira, raiz de toda ternura e toda a força que envolve essa família.

Hoje conversamos por mais de hora sobre os 35 anos do MST aqui em Santa Catarina. Lembrou as histórias, os companheiros, as peripécias, as vitórias, tudo muito fresquinho na cabeça, como se ainda estivesse andando pelos caminhos do Oeste arrebanhando almas em rebelião, abençoado pelo Dom José. Porque, afinal, é o que continua fazendo ainda hoje, assentado, mas não parado. Segue dirigindo o movimento e fazendo o que mais gosta, que é encher de esperanças e vontade de luta os trabalhadores rurais. “Lá atrás, naquelas primeiras ocupações, nós fizemos um juramento, eu, o Egídio, a Irma, todos, de que, mesmo se um dia conseguíssemos terra pra nós, nunca abandonaríamos o movimento e a luta. E ninguém traiu aquele juramento. Estamos aí, Elaine”, diz, com sua alegria de menino.

O MST fez 35 anos de vida em Santa Catarina, e essas três décadas estão cheias da vida de centenas de mulheres e homens, gente como o Santin. Gente como o Parafuso, um dos fundadores do movimento nacional, que também fez sua vida por aqui no nosso estado. Gente como o Egídio Brunetto, que já encantou também e que nunca arredou pé da luta. O MST é esse espaço de belezas que conseguiu, na força da luta, garantir vida digna para milhares de pessoas. Não só para os que se levantaram e ousaram viver nos acampamentos, mas também para os que hoje vivem ao redor das cooperativas e das propriedades produtivas.

Esse sonho nascido nas madrugadas ao redor do fogo, quando os sem-terra decidiram romper todas as cercas, ainda não está completo. Mas já construiu muito. E, através do Santin, esse meu amigo/irmão, de presença constante, voz de trovão, cara vermelha de indignação e riso sapeca eu reverencio cada companheiro e companheira que um dia escolheu trilhar esse caminho sem volta da luta renhida. Viva o MST. Viva o povo sem-terra que se move, e se move, e move a terra.