segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Minuano e Tormenta

























Vivi até os 16 anos em São Borja, fronteira com a Argentina, na pampa, região de descampado. Espaço de muitos conflitos, ora de espanhóis, ora de portugueses, sempre de guaranis, charruas, minuanos e tapes. Banda oriental, terra de Manuel Artigas, el caciquillo, grande guerreiro charrua.

Além da geografia – campo aberto, sem morros ou montanhas – dois recorrentes fenômenos naturais forjam as gentes do lugar: o vento minuano e as tormentas. Quem passa por isso pode enfrentar o que mais vier nessa vida. Assim dizem os mais velhos.

O minuano é um vento forte e gelado que vem das zonas polares. É cortante, enregela ossos e alma. Quando ele sopra poucos se encorajam sair de casa. Eu não. Ainda menina, gostava de colocar o brinco de argola, sem qualquer proteção na cabeça, e andar pelas ruas vazias, afrontando sua força. O vendo assoviava, passando pelo brinco, fazendo um som de choro, um lamento, alguma coisa muito triste. Mas, ao mesmo tempo, aquele zunido me aparecia como um desafio. Avançar pelos caminhos, de cara para o vento, sozinha, era meu jeito de festejar a chegada do frio.

A “tormenta” é outro fenômeno que também forja nosso espírito. Chuva forte, vento louco, raios e trovões assustadores. Quando ela vinha todos se abrigavam nas casas, acendendo ramos bentos, fazendo ladainhas para Santa Bárbara. Minha mãe cobria todos os espelhos da casa, desligava os eletrodomésticos e fechava as cortinas. Mas, eu, não me abatia pelo medo e gostava de apreciar o espetáculo. Corria para a janela e espiava o tropel da natureza, passando em desenfreada carreira, arrastando coisas e gentes. A força incomum da Pachamama, mostrando que nada pode detê-la, muito menos a arrogância humana. Tempo de aprender que o planeta tem de ser espaço de convivência e não de destruição.

Quando tudo parava, as gentes saiam pelas ruas, olhos postos na destruição, ajudando os vizinhos que tinham tido as casas destelhadas ou derrubadas. Um mutirão de solidariedade em meio à devastação.

Essas eram cenas que se repetiam, ano a ano. O minuano no inverno, as tormentas no verão. Duas estações de embates, quando enfrentávamos o destino de viver na pampa, nos construindo como fortalezas. E, no meio disso, a alegria de viver, de resistir, de renascer. Força e sensibilidade.

Talvez por isso o Campeche me tome assim, por inteira. Aqui voeja o vento sul, esse malino, que arranca as roupas do varal, descabela e destelha. E chega de chofre, em qualquer estação. Para mim, filha do minuano, ele é só uma brisa. E me enredo na sua dança louca, tal qual fazia nos caminhos de São Borja, com o vento assoviando nas orelhas.

Agora, por tantas alterações que fazemos com a natureza, já chegam por aqui também as tempestades, como ontem. Raios, trovões e ventania. Mas nada que se compare ao tropel da tormenta fronteiriça. Por isso, espio da janela, sem nem acender ramos bentos. Enquanto a chuva bate com força, eu chimarreio e penso que a tormenta, a tormenta mesmo, aquela, da pampa, vive é em mim. E, tal como na fronteira, aparece assim, sazonal, poderosa e arrebatadora.

É bom que se tema. É bom que se tema! E para essas há que clamar à Santa Bárbara. 


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