quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Sem adeus, Mosquito... Tu vives...

Ali estávamos os dois, frente a frente. Eu, arrasada. Ele, abatido, no caixão. Lembrei-me de uma de nossas últimas conversas quando ele dizia, naquele jeito atabalhoado e gritão: “a solidão é foda, Elaine Tavares”. E ele falava da solidão que a pessoa fica quando se decide a andar na contramão. Quando tudo aponta para que a criatura aceite as coisas, não esbraveje, não enxergue, não reivindique, não se indigne – e ela insiste em não fazer parte do cordão dos escravos de Jó. Aí ela fica sozinha. A pessoa assume o status de “leproso social”. Era como ele se sentia. “Abandonam a gente”. Alguma coisa assim como a imagem dada por um poeta, do qual não lembro o nome: numa terra de fugitivos, quem fica é que parece estar fugindo.


Amilton Alexandre, o Mosquito era assim. Ele podia ter fugido para o mundo farto dos que se rendem ao sistema. Mas não, ele preferiu ficar do lado das gentes, do lado da cidade, das maiorias. Pagou alto preço por isso. E era uma dessas pessoas que não passam incólumes. Espalhafatoso, agitado, resmungão, inconveniente, excessivo. Tudo isso, é certo! Mas também era meigo, generoso, brincalhão, quase um menino, como lembrou hoje a Raquel Wandelli. Nietszche o descreve. “O super-homem é criança”. Assim, o Mosquito.


A primeira vez que o vi, não gostei dele. Era carnaval e ele comandava a folia no seu mítico bar, o Havana, reduto da cultura e da política no Desterro. Falava aos berros, xingava, esculhambava todo mundo. Eu, outra insuportável, torci o nariz. Mas, minha amiga Rose Laurindo, que é a generosidade em pessoa me dizia: “Ele é gente boa”. Fui acreditando. O tempo passou e comecei a gostar daquele homem amalucado que sonhava com uma cidade cheia de cultura, de coisas boas, de gente de bem. Com o fim do bar, o Mosquito sumiu. Mas, vez ou outra, quando acontecia alguma coisa muito escabrosa na cidade ele ligava, ou gritava da janela de um ônibus: “Elaine Tavares, tem que falar sobre isso, sobre aquilo”. Muitas das minhas pautas nasceram daquele olhar insistente que ele lançava sobre a vida da cidade. Era um repórter, dos bons.


E essa era outra de suas broncas. Ele se acreditava jornalista e queria o registro. Tivemos algumas conversas sobre isso, já que eu defendia o diploma. Tentava mostrar para ele que a questão do fim da exigência do diploma era coisa dos patrões, para explorar mais e melhor os trabalhadores, mas ele não se conformava. E mandava todos os sindicalistas “tomar no c” ... A gente ria. E eu o confirmava, dizendo que ele era mais jornalista do que uma multidão de formados. Ele ficava feliz. Gostava de ser elogiado.


Então, com o advento da tecnologia, a internet, o blog, ele pode dar vazão àquilo tudo que só esbravejava pelas ruas, nos bares, no mercado. E o seu blog “Tijoladas do Mosquito” passou a pautar a vida e a política da cidade e do estado. Mosquito matava a cobra e mostrava o pau. Dizia as denúncias com todas as letras. “Ele era muito excessivo”, dizem alguns. Excessivo? Excessivos são os filhos de uma aberração que destroem a cidade, o estado, a natureza, as gentes. Excessivos são os empresários corruptos, os devastadores de praias, os que usam da justiça para proteger os ricos, os políticos ladrões. Esses são os “excessivos”, e Mosquito os nomeava, com nome, sobrenome e CPF, acompanhado de um monte de outros adjetivos de baixo calão. Tão baixo quanto os crimes que as figuras cometem. Ainda que freqüentem os salões.


Mosquito amava a cidade. Cuidava dela como uma mãe extremada vigia seus filhotes. Era comum encontrá-lo pelo terminal urbano, tarde da noite, com seu computador levantado, mostrando alguma barbaridade. Ou então pelas ruas da cidade, registrando as falcatruas e os abusos. Ele era o vigia da beleza, do bem viver. Queria que a cidade fosse para todos e não só para alguns e não poupava os vilões e os vendilhões. Por isso, acumulou processos. Dizia o que nenhum jornalista diplomado jamais disse. Mostrava os documentos, provava.


Nas últimas semanas estava arrasado. Sem trabalho, sem dinheiro, sem o respeito dos seus colegas, ele se debatia em meio a uma série de ameaças de morte e de prisão. Não aceitava ser condenado numa ação do Marcondes de Mattos, por exemplo, que destruiu o Santinho para colocar lá um hotel cinco estrelas para usufruto só dos ricos. Na sua ingênua bondade, ele acreditava que a justiça não iria lhe dar esse golpe. Mas ela deu. Porque a justiça está quase sempre com os poderosos. Queria um emprego, o Mosquito. Mas não encontrava quem desse. Ele era um incômodo. Da sua boca poderia sair a vociferação contra qualquer um, desde que esse um fizesse alguma merda contra a cidade, contra as gentes.


Hoje, ali, na pequena capela, os amigos foram chegando. E das suas bocas saíram as palavras mais belas. “Guerreiro, lutador, generoso, criança, defensor da cidade, apaixonado por Florianópolis, carinhoso, amigo, implacável contra a injustiça”. Cada uma delas foi tecendo a fala do Padre Vilson, que montou um mosaico dessa criatura cheia de contradições, mas igualmente repleta de maravilhas. Um ser humano, de sombra e luz! E, inacreditavelmente, Mosquito permanecia quieto. Fiquei a imaginar se numa outra dimensão ele não estaria aos gritos, vociferando.


Mosquito foi embora numa tarde temporal. A velha Desterro se derretia em água e relâmpagos. Foi a “hora noa” (hora da agonia) do guerreiro jornalista. Não sabemos ainda se alguém o matou. Pode ser que ele tenha se desencantado tanto com as ações, as ameaças de morte, de prisão, o fim do blog, a falta de perspectiva de futuro e tenha decidido partir. Se foi assim, certamente seu gesto foi a definitiva banana para os seus inimigos. Ninguém iria se deliciar sobre seu despojo. O grande urso, o menino indignado, o valente boca-suja deixa a vida. Mas a vida não o deixará. Amilton Alexandre, o Mosquito, é história! Não só por ter vivido a novembrada, pelo Havana Bar, pelos seus gritos de aviso, mas pelo seu amor incondicional pela cidade, pela cultura, pela justiça. E, enquanto o corpo que o abrigava baixa ao chão eu já o imagino, vivo, articulando junto a São Pedro, alguma confusão no céu... Quem sabe um bar?... Ou um cinema? Talvez um carnaval...

22 comentários:

Kk De Paula disse...

Lindo texto.

TERRAS DE NENHÚ disse...

Linda e eficiente homenagem!
"Insurgente" e carinhosa!
Não sou de SC, vi porque um amigo enviou.
Parabéns!

Nilo Neto disse...

Oi Elaine, aqui Nilo Neto da luta antimanicomial. Adorei teu texto e postei algumas coisas sobre o tema no meu blog http://calcanhardeacrilico.blogspot.com

Anônimo disse...

Lindo texto, falanso exatamente o que ele era..uma pessoa que não se vendia por falsas promessas, um guerreiro e exelente profissional. Infelizmente os boms vãos e os ruins permanecem por ai..
Mas fica dele, a liçao de vida e o amor por essa cidade que se faz presente em todos nós.
Nunca vamos deixar de lutar.
Vai em paz, querido. Seu exemplo sempre será seguido.

Ligia Gastaldi disse...

Parabéns Elaine, teu belo texto foi o que mais bem retratou quem foi e sempre será Mosquito.

Anônimo disse...

Uma homenagem profunda, tão intensa quanto a que se destina, o guerreiro implacável da justiça social!

Filosomídia . Leo Nogueira Paqonawta disse...

É verdade... aqueles polititicos vivem bem às custas da ignorância e ingenuidade do povo, e entram para as histórias como a razão de muitas mortes que provocaram e que levam em suas costas pesadas e culpadas... Mas, "tu vives...", Mosquito... e, porque não tivesses costas largas entre aquela gente poderosa, e fostes pelo caminho dos que são poucos os que sabem seguir até o Calvário bradando pela dignidade, em suas costas de Amilton só cabem mesmo duas asinhas...

Aos polititicos do galinheiro eleitoral só cabe dizer e dar, como você disse e deu, uma bela "banana"... essa gente que fica "tomada de emoção" por não serem presas por roubar...

Inspire daí de cima que nos movamos aqui em baixo em nossas lutas na mesma pauta da dignidade, denunciando as baixarias dessa polititica feita por gente sem escrúpulos...Verdadeira justiça seja feita, a você que nos co-moveu...

E, como nos lembrou Elaine e assim é que imaginamos você - menino indignado - mandamos um abraço fraterno e respeitoso. Agora que está junto com o Pedrão aí em cima não dizemos adeus, mas até breve, Mosquito...

http://filosomidia.blogspot.com/2011/12/sem-adeus-mosquito-tu-vives-voce-nos.html

tey disse...

Não conheci o Mosquito, nem tinha ouvido falar dele uma vez que não moro em Florianópolis e tenho pouco contato com a cidade mas esse texto magnífico não só apresentou-o a mim como me fez dele sua fã, estou triste por ele e pela cidade que perdeu um grande amigo.

tey disse...

Não conheci o Mosquito e nunca tinha ouvido falar dele uma vez que além de não morar em Florianópolis tenho pouco contato com a cidade mas esse magnífico texto não só o apresentou a mim como me fez dele sua fã! Lamento sua morte duplamente, pelo desaparecimento de um ser único e pela cidade que perdeu um grande amigo!

Gatos & gatas disse...

Linda homenagem Elaine... Conheci o Mosquito na época do Bar Havana...Ele amava Floripa e sempre lutou pela justiça! É lamentável que a cidade consiga esquecer uma pessoa q só queria o bem....

luizzz R! disse...

Olá Elayne,

Belo texto, porém infelizmente não posso concordar quando inferes, no final de sua nota, os seguintes termos:

(...) Pode ser que ele tenha se desencantado tanto com as ações, as ameaças de morte, de prisão, o fim do blog, a falta de perspectiva de futuro e tenha decidido partir.(...)

Falha lógica. Muitas coisas "podem ser". Infelizmente, um belo texto, porém atado por uma simples oração.

Aquiles Lazzarotto disse...

Tenho um amigo que corresponde em tudo e por tudo à sua descrição do Mosquito. Não conheci o Mosquito, talvez por eu ser relativamente novo na blogosfera.

Pessoas como o Mosquito são raras e imprescindíveis.

Nesses 36 anos de amizade o amigo a que me referi sempre é referência na minha conduta profissional e nas minhas decisões políticas. É referência porque não abre mão de seus princípios éticos e, tal como o Mosquito, esbraveja, é severo, culto, estudioso ao extremo, inteligente ao extremo. Mas as pessoas em geral o temem, ou não gostam dele, porque ele ruge e não abre mão de suas convicções. Por ser PROFESSOR (com todas as maiúsculas), tem ajudado a formar muitos e muitos novos inconformados. Não por proselitismo, mas pelo exemplo de seu próprio percurso, pela exigência extrema para consigo mesmo.

Como o Mosquito, meu amigo gritão e bravo também é um menino que vive a observar, com a limpidez e a franqueza de uma criança, os desvãos e descalabros políticos, tendo as pessoas, a sociedade e o meio ambiente como seus "protegidos", velando por eles em todos os momentos.

Assim, presto também minha homenagem ao Mosquito, lamentando não ter tido oportunidade de conhecê-lo, mas entendendo, pelo texto aqui postado, que ele é daquelas pessoas que fazem a diferença.

São poucas as pessoas que sabem identificar e dar o devido valor a essas raridades, esses lutadores incansáveis, lutadores de uma vida inteira.

GWMachado disse...

Elaine: Parabens pelo teu belo texto historico e biografico sobre o Mosquito. Quem o conheceu e conviveu intensamente com ele, desde o 30 de novembro de 1979, sabe do seu significado... E tu o captaste muito bem. Nao foram poucas as vezes que tive que fazer a defesa do Mosquto entre os meus historicos e mais efetivos pares, diante de arroubos loucos do Mosquito e quando o defendia como sendo parte do seu lado JOVEM, revolucionario, louco, VOLUNTARISTA, etc. Mas ele era assim mesmo, ate com o seu PC em sua mesa na Kibelandia e no Mercado Publico. Um brigao generoso, louco e FRATERNO.
Do Geronimo W. MACHADO.

JAIRO VIANA disse...

Duas palavras: Muito bom!

Cavalos disse...

até ontem não conhecia o "Mosquito",confesso que muito li e me tornei sua fã.
parabéns, Floripa, por seu Mosquito

fiquem com Deus

Hortenila disse...

Eu o conhecia de vista... e pq eu o conhecia de vista?? Porque com certeza ele estava passando tentando consertar, defender ou arranjar algo que achava nao estar certo!!! Pq quase todos os homens de "bem" cedo se vão?? Indignada com muitas coisas às vezes faço de conta que nao vejo que é pra eu nao morrer cedo... que ele esteja sentado à direita de Deus, pq ele foi um homem de "Direitos"!! Que ele se sinta bem no "paradis"!!

Gilberto Motta disse...

Elaine, querida. Grande texto, infinito sentimento. Compartilho; compartilhamos todos nós que -concordando ou não com o Muska- estamos enojados com a máquina de moer carnes, ideias e sonhos. Mas vamos lá, em frente! E La Nave Vá...Abraç~]ao! Giba Motta.

Jean Scharlau disse...

Jean Scharlau disse...

E o padre, quando chegou lá encontrou a porta aberta?

A equipe de investigação procurou você e o padre Elisandro para tomar seus depoimentos?
15 de dezembro de 2011 04:14

Nahor Lopes de Souza Junior disse...

Pior que não, estou aguardando ainda!!! Provavelmente eu mesmo terei de ir para Florianópolis para auxiliar. Sobre o padre, já o escutaram.
15 de dezembro de 2011 05:32
Jean Scharlau disse...

Será que a polícia de Palhoça está fazendo o levantamento dos dados existentes na Internet? Porque deve saber que, tão importante quanto a perícia no local, o é colher o depoimento de todas as pessoas que estiveram ou se comunicaram com a vítima em período recente, bem como coletar o íntegro teor dessa comunicação e comprovar sua veracidade na medida do possível mais imediato.

Será que já tomou o depoimento de Jorge Oliveira?
Que em seu blog (http://abobado.wordpress.com/2011/12/14/as-ltimas-palavras-que-troquei-com-o-mosquito/) e também no Twitter (http://twitter.com/#!/abobado) afirma que manteve conversações com o Amilton via mensagens privadas no Twitter, onde teria tentado demovê-lo de idéias depressivas e suicidas, mas só divulgou dois trechos. Esta conversa deve estar disponível no twitter dos dois, dele e do Amilton para averiguação, já que ele mesmo relata que não fora possível conversar por telefone. Inclusive e importante, também deve estar registrado lá o pedido do Amilton para que apagasse o blog e se passara senhas de acesso, entre outros dados.
15 de dezembro de 2011 07:31

Jean Scharlau disse...

Gustavo de Carvalho Rocha said...

Leonardo,

Também notei que ele estava com um tom nos discursos que não era seu estilo. Porem, minha mãe estava comentando que ele estava falando com um colega dele pela net, quando derrepente ele parou. Ao chegar na sua casa, a porta estava aberta e o Mosquito morto. E agora?
Em:
http://www.blogger.com/comment.g?blogID=32475796&postID=6061306434343361349

Jean Scharlau disse...

http://yfrog.com/z/khoafnej

Deisi Gomes disse...

Linda homenagem e emocionante despedida!
Acho interessante deixar em aberto a questão se foi suicidio ou não. Existem pessoas que estão dando depoimentos e entrevistas afirmando que foi suicidio.
Não podemos dar o caso por encerrado, deixemos a policia trabalhar e fiquemos atentos aos resultados das investigações.Por hora, além de prematuro, é uma atitude irresponsavel fazer qualquer afirmação em relação a causa de sua morte!

Pedro Henrique Caldas disse...

Um belo epitáfio, sem dúvida, mas que gostaríamos que não tivesse sido escrito.

luizzz R! disse...

http://www.rodrigovianna.com.br/outras-palavras/a-morte-do-blogueiro-mosquito.html


Sem romance, com alto grau de realidade.