quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Nossos velhos precisam de nós


Fumando um charuto, no dia do aniversário do Che

Como diz o Ziraldo, a velhice acontece assim, de repente.  A pessoa está bem , fazendo coisas, controlando a vida, quando então, algo acontece. Com meu pai foi assim. Um dia, minha irmã o surpreendeu rasgando alguns documentos. Coisa que ele fazia cotidianamente, colocando fora os documentos já velhos, para não juntar lixo. Mas, entre os documentos rasgados, estava a escritura do único bem que ele tem: sua casa. Algo não estava normal. Pouco depois percebemos que ele estava descontrolado nos gastos, contraindo dívidas com o banco. Mais um sobressalto. Sua memória falhava e ele foi definhando. Completara 85 anos.

Levamos no médico e o diagnóstico foi Alzheimer. Prescreveu remédios fortíssimo que o tornaram um zumbi. Não andava e em pouco tempo já não conseguia nem pegar os talheres para comer. Aquilo não estava certo. Por sorte, na intuição, minha irmã suspendeu o remédio.

Foi quando decidi trazê-lo para morar comigo. Minha irmã mora no campo, sem qualquer condição estrutural de cuidar de uma pessoa idosa e doente.

Em Florianópolis consultei um jovem médico, Henrique Passos, desses, preciosos e necessários, que pensam no ser humano e não na doença. E do saco de remédios que ele trouxera, sobrou só um: o da pressão. A nova prescrição foi cuidado, atenção, conversas, passeios, estímulo artístico, interação social, alimentação saudável e balanceada. Tudo foi sendo cumprido e ele renasceu.

Ontem, lendo sobre a situação de João Gilberto, me dei conta do quanto a relação com os velhos precisa mudar. Eles definitivamente não podem ficar sozinhos. Não por um imperativo moral, mas por responsabilidade ética. A velhice tem outro ritmo, outras necessidades, outro ethos. E, a única maneira de manter a sanidade e a alegria por estar vivo é estar cercado de pessoas que lhes prestam atenção e garantem uma relação de amizade, de parceria, de companheirismo.

Há um momento em que a memória recente se vai, que as mãos ficam trêmulas, a capacidade de tomar decisões fica confusa, as funções intestinais se descontrolam. Vejo que não é demência, é simplesmente o início do apagamento da energia vital. Por isso eles precisam de gente por perto, para explicar as coisas milhões de vezes, sem irritação, para amparar o passo, para garantir o riso, para incentivar a memória, para caminhar ao sol, para brincar, para ver novela na TV, para contar das notícias, para ajudar na hora do banho.

Com meu pai tenho aprendido coisas demais. É fato que a vida da gente muda por completo e tudo o que era não é mais. Mas, ao mesmo tempo, coisas que nunca foram, passam a ser. E isso não é de todo ruim. Havia anos que eu não catava pedrinha na rua, havia anos que eu não aquietava em casa nas noites mornas da primavera, havia anos que eu não me demorava tanto para ir de um lugar ao outro, no passinho lento, parando eventualmente para ver o avião passar, ou o cachorro, ou o passarinho.

O fato é que assim como meu pai, o João Gilberto, uma hora começou a mudar, e, ao que parece não havia ninguém por perto para notar. Há que cuidar... Há que ficar por perto. Essa é uma hora que vai chegar para todos nós. E tomara que tenhamos alguém que nos observe assim, com olhar atento, pronto para nos guardar das dores e dos enganos.

O mundo capitalista nos ensina a ter muita pressa, a eliminar o entrave, o diferente, o chato. Não podemos aceitar isso. O futuro pertence aos homens lentos, dizia Milton Santos. Talvez seja isso que a velhice dos nossos queridos venha nos ensinar, na prática.  







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