Por elaine tavares
Blumenau - verão - 2004
A cena é insólita. Uma espécie de hippie - cheia de lenços coloridos, brincos e enormes colares - uma intelectual e um homem muito magrinho, de idade imponderável. Caminham os três, a passos muito lentos, no ritmo do homem. O cenário é o xopin de Blumenau - uma cidade de porte médio do interior de Santa Catarina. Com a proximidade do natal, as luzes faíscam em todo o ambiente e as gentes caminham num ritmo frenético por entre as lojas feericamente decoradas. Algumas pessoas param, observando a cena incomum. Fora do tempo, os três seguem, lentamente, em direção ao cinema. O trajeto parece interminável. As mulheres olham reverentes para o homem velhinho. Vez em quando ele para e fala alguma coisa. As mulheres estacam e escutam. Não dizem palavra. O silêncio paira depois de se erguer a voz absurdamente forte do homem velho, que pronuncia um pensar capaz de movimentar o cosmos. É que ele não é um homem comum. É, talvez, um dos últimos sábios vivos neste mundo de deus.
Montevidéu - equinócio da primavera - setembro/1905
Não poderia ser diferente. Félix Peyrallo Carbajal tinha que nascer num dia mágico, no alvorecer do século vinte. Era 23 de setembro, na charmosa Montevidéu. Enquanto o equinócio marcava o início de uma nova estação, a mãe de Félix morria ao dar a luz. Naqueles dias, aparecia na capital uruguaia o primeiro automóvel. Eram tempos estranhos. Na casa de Félix, tristeza e alegria. Vida e morte. Mas o garoto franzino não faria feio diante da mãe que nunca conheceu. Saberia respeitar a vida e vivê-la com tamanha intensidade, numa sofreguidão que sequer a velhice amainaria. O pai era violinista e chegou a ser regente da orquestra de Montevidéu. Deixou como herança, não só uma fortuna considerável em dinheiro, mas o gosto pela música, pelo belo, pela arte, pela harmonia. Morreu quando Félix tinha 14 anos e abriu a porta do mundo. Nada mais o prendia. Tinha “mucha plata” e uma vontade voraz de conhecer o mundo. Fez-se andante, filho do vento, e nunca mais parou.
Blumenau - verão - 2004
Félix está perto de completar 100 anos. Cem giros em volta do sol, seu sul. É mais lúcido do que qualquer um de nós. Mora num asilo público desde 2003. Foi levado pelo então prefeito de Blumenau Décio Lima. O Lar São Simeão, que existe desde 1954, é o mais antigo dispensário da cidade e abriga, além de Félix, mais 91 almas acima de 60 anos. A entrada é simples. Um portão de ferro, um vigilante, uma curta estrada até o alpendre. Na parte da frente, aberta, vários idosos estão sentados, olhar perdido no vazio. Poucos ligam para as pessoas que entram e menos ainda cumprimentam ao serem saudados. Na sala, um grupo está sentado em frente à televisão. Praticamente nenhum realmente vê o programa. Limitam-se a simplesmente a estar ali, perdidos, talvez, no passado ou no futuro. Mas, num canto, sob a luz de uma janela, está Félix. Tem uma mesa só para ele. Cheia de livros, papéis, lápis, canetas. Está com o rosto enterrado num papel. Enxerga mal, por causa da catarata. Tão logo nos vê, se levanta, solícito. Beija, delicadamente, a mão de cada uma. "- Senhoritas!!!!”, exclama, com um adorável sotaque espanhol. É um gentil homem. Sem que ninguém pergunte vai informando. "Estou traduzindo este texto para uma revista de Buenos Aires". E assim é. Beirando um século, o sábio anarquista trabalha a todo o vapor. Escreve, cria, lê e profere conferências.
Anos 20/30 - A belle époque
Quando decidiu sair pelo mundo, aos 17 anos, Félix Carbajal só queria saber de uma coisa: conhecimento. Não apenas ler nos livros, perdido nos caminhos de Montevidéu. Queria viver, sentir, tocar, conhecer as pessoas certas, os lugares onde a vida vibrava. Seu primeiro porto foi a Europa. Madri. Tinha dinheiro e o usaria, todo, para aprender. Estudou letras, compartilhou a moradia estudantil e a vida com figuras como Buñoel, Garcia Lorca e Pedro Garfias. Encantou-se pela poesia. Viveu toda a efervescência da cidade espanhola. Logo depois, seguiu para Paris, onde estudou na Sorbonne e viveu a "belle époque" nos braços das mulheres mais ardentes. Seu foco agora era a filosofia. Seu objetivo, viver intensamente. Peregrinou por muitos caminhos, dizendo poesia e enchendo-se de palavras. Foi aluno de Piaget e com ele estudou o que chama de “psicologia genética”. O caminho do Id para o Ego e o Super Ego. Tomou muito champanhe, amou, dividiu. Saboreou cada experiência. Encheu-se de Filosofia, Antropologia, Astronomia, Biologia, Química, Física, Matemática, Artes, Música. uff... Não há o que não saiba, e com profundidade. Fala inglês, francês, italiano, alemão, latim, grego. Dedicou sua vida a perseguir e conhecer figuras com quem pudesse sentar e fruir da boa conversa, da poesia.
Blumenau – verão – 2004
O estranho trio chega, enfim, ao cinema. Percorrera um longo caminho no passo de Félix. Ele está seguro. Entra como se fora o dono. “Aqui tengo entrada libre! Todos saben que soy un estudioso del cine”. E é assim! O sábio é frequentador assíduo das salas de cinema de Blumenau e ninguém ousa barrá-lo em qualquer delas. Vê um mesmo filme várias vezes. “Hay mucho que mirar. La fotografia, el figurino, enfin...” Na entrada, ele deixa sair sua voz de trovão. “A señorita podria llevar-me hasta la primera fila?” Passa levinho, com passos de lã. Os três vão assistir ao filme que conta a vida de Lutero, o padre que, lá no 700, questiona toda a ordem católica e cria uma nova igreja, no movimento que ficou conhecido como “Reforma Protestante”. Sentam-se na segunda fileira. Félix não vê muito bem. Reclama que a operação de catarata é uma coisa simples hoje em dia, que ele já poderia ter feito. Mas, até agora, ninguém ainda se ofereceu para fazer isso. Parece que os oftalmologistas de Blumenau ainda não perceberam que ele precisa disso, mas que, quando perceberem, farão o que deve ser feito. Fixa os olhos na tela e fica atento. Quase não pisca. Vez em quando, uma das mulheres o mira, com o canto do olho, para ver se não dormiu. Qual o quê. Está concentrado. Ora balança a cabeça, ora coça o queixo. Lutero vive seus dramas na tela.
Nasce o gnomonista – anos 40
Quando a segunda guerra acabou Félix já estava completamente sem dinheiro. Gastara tudo. Nunca teve apego a nada de material. Enquanto teve, gozou. Ficou sabendo que já não tinha mais renda em Los Angeles, EUA, quando foi ao banco sacar uns trocados: "Não há saldo, senhor". Estava arruinado. Depois disso, pôs-se a andar, vivendo como dava, na casa de um, de outro. Já era um anarquista. Sem documentos, sem diplomas, sem papéis, sem família, sem laços. Como bagagem levava unicamente a sabedoria e uma muda de roupa, sempre branca. Dos EUA foi para a América Central, atrás dos poetas, e lá começou seu trabalho de plantar relógios. O primeiro foi em León, na Nicarágua, para onde fora a fim de conhecer a casa natal do poeta Rubén Darío. Na casa onde se hospedou havia um garotinho lendo uma revista sobre relógios de sol. De brincadeira, como um presente, Félix fez um, em miniatura. Como a conferência sobre o poeta foi um sucesso, logo todos sabiam que ele fazia relógios. O prefeito o procurou e pediu para que construísse um maior, na praça da cidade. Foi o que fez e nascia aí sua profissão de gnomonista, ou seja, construtor de relógio de sol. Ele não sabe muito bem, mas acredita que já tenha feito mais de 180 relógios em praticamente todos os países da América Latina. Este é número oficial registrado pela Associação Internacional de Gnomonistas Carpe Diem que, inclusive, enviou a Félix, no início deste ano, uma carta onde o informa sobre sua inscrição como membro honorário. O presidente da entidade, que fica na Espanha, ficou assombrado com a notícia de que havia aqui, na América Latina, um gonomonista com um trabalho tão extenso. No Brasil, há relógios de Félix por vários estados, Paraíba, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.
Rio de Janeiro - anos 50
Félix sempre teve uma obsessão pela poesia e pela literatura. Sua vida foi vasculhar as terras atrás dos poetas. Viveu com Garcia Lorca, conheceu os nomes mais importantes da literatura na França, conviveu com Hemingway, amou a poetisa cubana Carilda Labra. E foi nessa caminhada atrás dos nomes das letras que chegou ao Rio. Queria falar com Manuel Bandeira. Fuçou e descobriu onde o poeta morava. Um belo dia bateu em sua porta. Disse ser um poeta também, que conhecia toda sua obra e queria "charlar". Bandeira dispensou-o, pensando ser mais um chato. "Volte outro dia, mas telefone antes". Félix curvou-se, fez uma reverência e partiu. No dia seguinte, quando o poeta abriu a porta de casa, lá estava Félix, esperando. "Dê-me três minutos. Três minutos de relógio". O poeta assentiu, e o jovem uruguaio o marcou tanto que a ele dedicou uma crônica. O estrangeiro. Está no livro Flauta de Papel, editado em 1957. Diz Bandeira. "Dei-lhe os três minutos. Uma lábia infernal... Virou pelo avesso o meu `Último poema´, Comentou a tradução do ´Torso de Apolo´, de Rilke , referiu-se com entusiasmo a uma jovem poetisa cubana, Carilda Oliver Labra, conhecia todo o mundo na América, falou de Neruda, de Leon de Greiff, de Coronel Urtecho, mostrou-me notícias de conferências suas em Belém do Pará...
... - De que vive?
- De mendicância. Tem sido assim em toda parte, será aqui também. Quando tenho fome, entro num restaurante e peço comida. Um, dois, três recusam, o quarto me atende. Quando me regalam onde dormir, durmo em cama. Senão passo a noite andando: tenho uma saúde de ferro, posso andar 25 quilômetros sem sentir fadiga. Comer, dormir não são problemas para mim. Os problemas da vida são outros.
Despediu-se sem me pedir nada. Perguntei-lhe se aceitava dinheiro para o jantar. O ´sim´ alegre e enérgico com que respondeu já era o seu agradecimento. Apertou a minha mão e antes que eu chamasse o elevador, desceu as escadas como uma bala."
Blumenau – outono – 2004 – encontro de almas
Ela se chama Roseméri Laurindo e é professora na FURB, em Blumenau e na Unidavi, em Rio do Sul. Vive no mundo das ideias, sempre pensando um jeito de melhor iluminar os caminhos das jovens almas que circulam pelos corredores da universidade. Então, um belo dia, o viu. Pareceu-lhe estranho, aquele velho, bem velhinho, magérrimo, andando no passo miúdo. Estranha figura naquelas paragens. Seguiu seu rumo, esqueceu. Então, outro dia, observou, na entrada principal, um ajuntamento. Reitor, pró-reitores, professores, alunos. Re-inauguravam um relógio de sol – coisa antiga e quase extinta - que fica ali, bem no fim da escada da entrada principal. Acercou-se e, ali estava. Ele, o velho. Parecia ainda mais mirradinho na sua roupa branca. Estacou. Ficou. Quem seria?! Não demorou muito e ele foi chamado. Era o construtor. Havia erguido aquela obra havia 35 anos, quando ainda estava no vigor dos seus 64 anos de vida. Peregrino, já havia plantado dezenas de relógios de sol pela América Latina inteira. Aquele era mais um. Então, ele falou. O corpo magrinho sumiu, a silhueta de homem velho desapareceu. Assomou sua voz de trovão, como que num encantamento. Em poucos segundos, hipnotizava a todos com sua fala sobre os quadrantes solares, o cosmos, o planeta, o universo. “Aí, ele começou a falar da ciência que se produz nas universidades e faz com que o homem possa medir o tempo. E, olhando sua obra, alertou que, apesar disso, essa mesma ciência era incapaz de compreender o movimento dos corpos humanos, que também é tempo”. Foi uma hora mágica. Aquele homem, braços abertos, a bradar: “Esa pareja (casal), estes cuerpos, estas curvas, esto, el tiempo no es capaz de medir. Como no se puede medir el movimiento de las ‘bundas’ de las mulatas de Sargentelli”. Depois, declamou poesias, falou de poetas, pensadores, filósofos, uma lista interminável. Era impossível sair dali. Rose estava tomada, arrebatada por ele. Nunca tinha ouvido alguém falar daquele jeito, com aquela paixão, com toda a sapiência. Era certo, o levaria até seus alunos.
Rio do Sul – outono – 2004
Roseméri decide carregar Félix para uma conferência em Rio do Sul, para os alunos de jornalismo. Aqueles garotos precisavam beber naquela fonte viva de quase todo o século vinte. “Ele é um sábio. Cada palavra que diz é carregada de significados. E está aqui, vivo. Eu tinha que levá-lo”. É uma novela. Félix não pode mais sair do asilo onde vive sem que tenha uma autorização especial. Para tirá-lo de lá, mesmo que para um simples passeio, é necessário assinar um documento, assumir a responsabilidade. É que ele toma remédios e precisa de cuidados. Rose não se intimida. Faz a peregrinação burocrática e lá se vai com o sábio, subindo a serra de Blumenau até Rio do Sul. No meio do caminho, o carro quebra. Félix está sereno, nem se importa. Rose se apavora. O que vai fazer com aquele homem, daquela idade, no meio do nada. “Estamos com um problema, e tudo o que eu quero é deixar o senhor confortável”. Ele ri, aquele seu riso torto, quase cínico. “Conforto? O que es esto? Yo soy un peregrino, puedo dormir en un banco, en el relento. No hay que preocupar”. Chama guincho, negocia, arranja tudo e segue a viagem. Chegam atrasados. A turma espera, ansiosa. Mas, Félix não é homem de abrir mão dos pequenos prazeres. Quer um chá. Ele comanda. Tudo para. A turma fica à espera e ele vai para o bar. Lá, promove seu ritual. “Quiero água caliente, a 100 grados. Hay que borbulhar de forma que mi mano se queme”. Quer o chá em separado e a água na chaleira. Tudo é feito como pede. A água chega, ele observa a fumaça por longos segundos, quieto. Vê se o calor lhe queima a mão, só então coloca na xícara. Calmamente sorve o chá. Passam-se 15 minutos. Ele frui, ensina que esse é o prazer da vida, observar aquilo que, de alguma maneira, move o mundo. Sem pressa. Então vai para o auditório. Um silêncio desconfiado. A gurizada se espreme entre risadas. O que pode aquele velhinho oferecer de bom? Deve estar morrendo... Então, ele senta e começa a falar. A voz ribomba pelo espaço. Por duas horas ele hipnotiza a turma. Ninguém sai.
Blumenau – Verão – 2004
O filme termina. Os três ficam até a última letra da enorme ficha técnica. Já não há mais ninguém. A moça que limpa o espaço para a próxima sessão observa sem entender aquelas três almas a mirar as letrinhas. Balança a cabeça como a dizer, loucos... Lentamente, eles saem. Seguem pelo xopin buscando um lugar para fazer um lanche. Um casal passa levando com ele um garotinho, ainda ensaiando os primeiros passos. Félix para. Fica bem na frente do menino. Eles se olham por algum tempo. O velho sorri, o menino também. Depois, o casal segue e ele fica, parado. “En este mundo, los niños son los únicos que me hacen verter una lágrima”, brada. Fala então que poderia ficar emocionado com uma nuvem, um pássaro, um rio limpo, mas que, agora, nesses tempos de guerra, de ódio, em que os Estados Unidos atacam países sem motivos, com base em mentiras, não há mais nada com que se enternecer. Só as crianças. Essas sim. Mas, só até os cinco anos. Depois disso, perdem a pureza. Passados muitos minutos e, na cadência do andar de Félix, chegam ao restaurante. Tomam uma sopa de capelletti. “Toda mi alimentación es frugal”, diz. Depois, pronuncia, lentamentente, um nome: Aparício Silva Rillo. “Te diz algo?” A mulher, criada em São Borja, terra do poeta gaúcho, assente. “Sim, é um poeta!”. Félix conta que também fez um relógio de sol em São Borja no ano de 1972. “Terra de los presidentes. Estan los tres allá. Getúlio, Jango y Brizola”. Ri um riso maroto. Sabe que Brizola nunca foi presidente. Conta que, na prefeitura, era Aparício – o poeta - quem mandava. “El prefeito, Juca, nada decidia”. E seus olhos se perdem em lembranças. Fala de Paso de los Libres. Da balsa. “Agora já tem uma ponte lá”, diz a mulher. Ele suspira. “Sí, e aún está el reloj”.
São Borja – verão – 2004
Falar em Félix Carbajal para Marco Antônio Loguercio, 46, um engenheiro agrônomo de São Borja, é provocar nele uma emoção oceânica. Ao saber que o velho sábio ainda está vivo, a voz treme de emoção. “Sou louco por ele”. Confessa que sua vida mudou depois de tê-lo conhecido, em 1996, quando voltou à fronteira depois de saber que o poeta Aparício Silva Rillo havia morrido. “Ele me ensinou a ler coisas que não estão escritas, me ensinou sobre o tempo, que não existe. Sabe, ele pode ficar seis meses olhando para uma formiga. Ele faz a gente ver o que realmente importa nessa vida. As pessoas levam uma vida inteira para aprender isso. Eu aprendi com ele e hoje a minha vida é outra”. Marco, que é genro de Rillo e herdeiro de sua obra poética, conta que Félix foi a estrela do Festival da Barranca, um encontro só de homens - poetas, compositores, intelectuais, gaúchos de todo o tipo - que acontece em São Borja, todos os anos. “Foi uma coisa linda, 260 homens reunidos e o Félix sentou numa cadeira, com aquele corpo magrinho, e começou a falar sobre o que sentiu quando chegou à barranca do rio Uruguai. Era poesia, literatura, sei lá. Aquele povo todo ficou num silêncio nunca vivido e depois de hora e meia de pura emoção, se levantaram e foram beijar o velho”. Mas a lembrança mais viva que Marco Antônio tem dele é a da despedida. Conta que havia prometido levá-lo até a balsa – naqueles dias não havia ainda a ponte – na qual ele atravessaria para Santo Tomé, na Argentina. Atrasou-se. Quando chegou à casa onde ele estava, já se havia ido. Correu até o Paso e lá estava o velho, impecável. “Por que não me esperou, Félix?” E ele quieto. Não disse palavra. Quando a balsa chegou, foi entrando, sem abraço, sem nada. “Eu corri e o apertei em meus braços, enchi ele de beijo, e ele sério”. Afastou-se e só então disse: “Yo te quiero mucho bien”. Seguiu seu rumo, entrou na balsa e sequer voltou-se para olhar o amigo. Marco ficou parado, olhando a balsa se afastar, já cheio de saudade. Lá no meio do rio, Félix virou-se, tirou o chapéu panamá que levava na cabeça e se foi, acenando. “Essa imagem não me sai da cabeça”. Na cidade de São Borja a vida segue seu rumo quase igual. O Juca, José Pereira Alvarez, de 72 anos, que o acolheu em 1972, quando era prefeito, está à frente da prefeitura outra vez. Os relógios de sol que Félix lá construiu seguem marcando o tempo da cidade fronteiriça. Um deles enfeita a frente da prefeitura e o outro está na praça do Paso, bairro que espia a Argentina, na beira da barranca do rio.
Blumenau – dezembro de 2004
Ricardo Casarini Muzy é fotógrafo e andarilho. Vive a vida fazendo artesanato, fotografando, trabalhando num bar, fazendo um bico aqui, ali. Queria conhecer o velho de quem tanto ouvira falar. Pega sua Kombi velha e segue o rumo de Blumenau. Lá recebe lições que nunca mais vai esquecer. No asilo, Félix espera. Já sabe que vão fotografá-lo. Está sentado na sua mesa a fazer uma dobradura. É seu presente de natal para a namorada Elza, que vive em Lages. “O trabalho tem uma riqueza de detalhes que é impressionante. Em cada pedaço da dobradura ele escreveu o nome dela. Uma coisa emocionante” . Félix ensina que o amor não está na cama, nem no sexo. O amor está na alma, na entrega, na capacidade de estar junto, de dividir os saberes, numa vibração que está para além do corpo, além do tempo. É assim com Elza. “Ele disse que as pessoas, no natal, compram coisas para provar que amam, mas isso não é verdade. Disse que amor era aquilo que ele fizera. Passara horas, muitas horas, construindo aquele presente. Tinha colocado ali todo o seu amor e agora o mandaria pelo correio. Uma dobradura, recheada do nome dela, cheia de mundos”. Félix sobe na Kombi como se fosse um guri, está feliz da vida. Vai até a FURB mostrar seu relógio-do-sol. Fala de sua vida, andando pelas terras da América e da Europa. Sem dinheiro, sem qualquer bem. “Nunca comprei uma casa – ele me disse - nunca comprei um carro, nunca tive nada... e tenho tudo! Ele verte felicidade, ele está repleto, nunca vai estar em solidão”.
Rivera/Uruguai – final dos anos 80
É noite, num desses típicos cafés uruguaios. Dentro dele, Félix conversa com Eduardo Galeano, enquanto bebem uma garrafa de vinho. Confessa que está preocupado. Sente-se muito bem naquele lugar e isso não é bom. Vai dando uma vontade de querer ficar, atado a alguma mulher ou a uma mesa de café. Os dois poetas riem e falam a noite toda. Da vida, do amor e de como é bom estar nesse mundo. No dia seguinte, Félix se vai. Galeano fica e a ele dedica uma crônica que está eternizada no livro “Janelas”. Chama-se “O Andante” e diz: Don Félix vai deixando, na sua passagem, relógios de sol. Esse raro uruguaio que não é aposentado e nem quer sê-lo, vivia disso: fazia quadrantes, relógios sem máquinas, e os oferecia às praças dos povos. Não para medir o tempo, costume que a ele parecia bobo, mas pelo simples gosto de revelar os movimentos da terra, que se volteia como uma mulher, e pelo desejo de dividir os segredos do céu.
...Já a tentação de ficar estava dando a ordem de ir: - o novo, o novo, o novo, bradou, golpeando a mesa com suas mãos de criança. Para ir-se preferia o amanhecer. Quando o sol chegava ele se ia. Nem bem abriam as portas da estação de ônibus ou trem, don Félix mostrava os poucos trocados que havia juntado e dizia ao vendedor: Até onde chegue!
Blumenau – verão 2004
A noite caminha, vagarosa, como Félix. No xopin, os três terminam a sopa. Hora de voltar para casa. O sábio segue falando de Goethe, Montaigne, Platão, Lorca, Aristóteles, Alarcón, Unamuno. Está alegre feito um menino. Principia uma brincadeira. “Diga uma palabra, cualquier, la que venga en la cabeza”. “Cachoeira”, diz a mulher. Prontamente ele conta uma piada que tem como tema a cachoeira. E assim repete com mais outra palavra, para a outra mulher. Os risos ecoam. As pessoas olham. Então se dá o direito de dizer a sua palavra e outra piada. Mais risadas. Ele pede uma tônica, um copo com um limão espremido e açúcar. Quando chega, dispõe cada coisa a sua frente e inicia mais um ritual. Coloca a tônica no copo com limão, depois o açúcar e pede que uma das mulheres mexa. Toma o refresco, vagarosamente. Pede a sobremesa e diz que é tempo de ir. Levantam-se a retomam o longo trajeto até o estacionamento, passo a passo, miúdo. Ele está leve. Insiste em contar uma piada que lhe contara o velho Piaget. “Él era muy serio, pero, vez en cuando salía con una piada”. Conta que um gato vinha passando e outro estava sobre o muro. O que descansava no muro cumprimentou: miaaauuuu! E o outro respondeu: Au au! “Que pasa, dice el gato. Estoy aprendiendo lenguas, dice el otro”. E ri, um riso de cristal. No carro, uma das mulheres tenta ajudá-lo com o cinto de segurança. Ele rejeita, ríspido. Fica em silêncio. Passam-se eternos minutos. Então ele fala. “A un niño, de seis o noventa años, se les deja hacer las cosas solos. Si te piden ayuda, ayuda. Pero si no, dejalos!” Mais uma lição. Faltam dois minutos para a meia-noite quando chegam ao asilo. Rose brinca: “A cinderela está chegando”. Ele ri, faceiro. Pede que ela pare o carro. “Mira la luna, que és?” É crescente. “Mira”. E ficam os três a olhar a lua no céu. O tempo do relógio passando. Então suspiram e entram. Ele desce. Os funcionários do asilo vêm, solícitos. Querem que ele entre. “No, debo despedirme de las señoritas”. Beija a mão de cada uma e fica em pé, esperando que o carro dê a volta. Na saída, no portão, as duas se voltam para um último aceno. Ele tira do bolso um lenço branco e fica acenando, com um doce riso no rosto, até que o carro desapareça na curva. As duas mulheres seguem em silêncio, cada uma carregada de mundos em si. O tempo, agora, tem outro significado.
N.E – Félix encantou no ano seguinte, em agosto de 2005. Vive por toda a América baixa, nos seus relógios de sol.
Um comentário:
Elaine: sou um dos afortunados que conheceu Don Felix. Um grão de areia no seu Saara de convertidos. Parabéns pela sua sensibilidade ante um de poucos.
Fernando Cannella
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